Chegamos ao Cumbre, estado de Sergipe, no meio da tarde. Aportamos à casa de tio Afonso, cujo nome verdadeiro era Vicente – (no nordeste tem destas coisas: o sujeito nasce com um nome e resolve, por conta própria ou por determinação popular, adotar outro. Veja o senhor que não se trata de apelido: é outro nome mesmo).

      Ti’Afonso estava na cadeira de balanço. Foi logo se levantando e dizendo o nome da sobrinha, minha mãe. Abraços, cumprimentos, lembranças.

      Depois do café e do suco, a família reunida foi em demanda de outro parente. Caminhados uns bons metros, minha mãe estanca. Lá adiante vem um sujeito miúdo, calçado de havaianas e com uma espingarda de caça às costas. Passou “pula rente” , como se pronuncia por lá, tocou a ponta do chapéu e soltou um “Tarde”.

      – Ei, tio! – era minha mãe, entre série e risonha, fazendo-se de enfezada.

      O homem parou, voltou-se de cenho franzido e perguntou incrédulo:

      – A senhora me conhece?

      – Sou eu, Lourdes, sua sobrinha.

      – Lourdes?!

      – Sim.

      – De Carmozita?

      – Sim.

      – Ô, minha fia! – e abriu os braços magros – E esses? São seus minino?

      – São, são sim.

      – Ê, meu Deus! Bóra! Bóra lá pra casa!

      E fomos todos tomar mais café com macaxeira e batata doce.

      Seu nome, nunca soube. Nem minha mãe lembra. Pra todo mundo era Ti’ Zé Ferro. E não perguntassem a razão do apelido. Devia ser a mesma que transformou Vicente em Afonso.

      Tio Zé Ferro aparentava uma pobreza extrema. Mas não chegava a isso: tinha suas pequenas posses. Dentre elas, um sitiozinho mais distante, onde criava galinhas, algum pouco gado, cultivava pés de milho e algumas tarefas de feijão. Era um terreno cercado, com duas ou três mangueiras, uma casa de taipa de porte médio, cheia de gancho pra rede. Tudo isso era guardado por um cão de pêlo creme, com manchas café-com-leite. Seu nome? Cão, simplesmente, que pra obedecer a Zé Ferro bastava isso e a devida inflexão de voz.

      – Vamo almoçá, gente?

      Depois da viagem, nada mais justo. Contudo, acostumado a ver mãe levar matulas pra cima e pra baixo aqui em São Paulo, me perguntei de onde ia sair o rango. Tio Zé Ferro deu o comando:

      – Cão! – e apontou uma galinha.

      O animal disparou em demanda da presa. Ela, em defesa da própria vida, se meteu nas capoeiras, procurou se misturar às outras, saltou em curtos planeios – tudo pra ver se despistava seu predador. Mas ele estava ferreamente determinado. Não importava se existia uma galinha mais gorda ou mais vistosa; não importavam os garranchos e os carrapichos. Ao cabo de 10 minutos, ele a cercou e a tombou. Com a pata sobre a presa – viva e sem um arranhão – aguardava o dono, de língua de fora e olhar menino.

      Tio Zé Ferro não disse nada. Pegou a ave pelos pés e entregou à esposa para que tratasse. Fitou-nos satisfeito consigo e com seus domínios. Ofereceu cachaça aos homens e suco a mulheres e crianças. Enquanto o sol descia, a galinha cheirava no fogão à lenha.

      Enquanto devorava meu bocado com feijão e farinha, admirava do alto de meus onze anos aquele homem franzino. E só agora vim entender a razão de seu nome.