Dona Paulina
Ponto de contato entre uma e outra crença, dona Paulina transitava pela nave da capela, de terço em punho, entoando baixinho louvores aos orixás. Não via nisso nenhuma heresia. Estava convicta de que quanto mais deuses conjugasse, melhor seria a vida.
Havia quem a censurasse. Onde já se viu misturar essas feitiçarias de preto com os ritos sagrados da santa madre igreja cristã? Mas ela nem xite para as opiniões ortodoxas. Deus tinha cor por acaso? E não era Ele misericordioso?
Sua principal adversária era dona Quiquinha, filha de italianos, branca quase que nem leite. Os olhos eram duas contas azuis quase cinzas. A boca de lábios finos sempre crispada soltava erres trinados e vogais cantadas de condenação aos hábitos profanadores da negra atrevida.
– Não sei o que veio fazer aqui em nossa paróquia. Por que não ficou lá na de São Benedito?
– Ah, dona Quiquinha, que implicância! Deixa a mulher! Cada qual com sua crença.
– Pois que cada um cuide de sua crença em seu lugar. Essas misturas não agradam nenhum pouco a Nosso Senhor.
– Ma vamo comê, Quicá. Dêxa a dona pra lá. Manja, bela! Manja que te fa bene, ãn!
Um dos fronts de combate mais acirrados entre Paulina e Quiquinha era os dos quitutes para as festas da Igreja. A italiana chegava com massas, tortas e doces de ovos. A negra chegava com alguidares de vatapá, acarajés e doces de frutas.
O padre, temeroso da língua afiada de dona Quiquinha, evitava a contragosto a barraca de dona Paulina, aromática e opulenta, sempre cheia de gente e que rendia uns bons trocados para a obra do Senhor. Findo o fuzuê, a velha, sempre discreta, dava um jeito de levar um prato com um pouco de cada coisa para a sacristia, onde ele e seu auxiliar, devotados à contabilidade da festa, se locupletavam nas oferendas saborosas.
Numa dessas noites, o sacristão, farto de tanto abará, começou a ter umas estremeções, revirou os olhos, pôs as mãos na cintura e danou-se a emitir grunhidos. O pároco saltou de banda, persignou-se e arregalou olhos de espanto para dona Paulina.
– Deixa, meu santo. Deixa, que o sprito montou no cavalo. Deixa.
O sacristão soltava gritos agudos e se ria jogando a cabeça para trás. Pediu um cigarro para “mãe Paulina”, que tirou um do cós da saia e cedeu.
– É um Exu fêmea – sentenciou.
– O que isso quer dizer? – perguntou o vigário.
– Que seu sacristão é perobo.
– É o quê?
– Perobo, fruta, efeminado.
O padre lançou um olhar de esguelha para o seu secretário. Seria possível? Seu Clemente, viado?
– Vansucê tá pirdido na luiz, mizifio. Vamo descarregá essa cruiz!
E seu Clemente danou a alisar o padre, a dar-lhe abraços, a bater cabeça com ele. De repente, agarrou seus culhões e soltou um guincho. O padre, paralisado de dor e espanto, clamou pelo auxílio de dona Paulina, que fez-lhe um sinal para que tivesse calma e fé.
Depois de muito assobiar e sacudir, o sacristão largou o padre, deu dois trancos no próprio corpo e despertou. Olhou em torno, a boca suja de farinha e recendendo a tabaco, e perguntou o que foi.
– Nada, meu fio. Senta aí e descansa. Vem cá, meu santo. Senta aqui também pra acarmá os nervo.
O padre, transido de terror, pediu num lamento para ficar só. Dona Paulina, compassiva, levou consigo seu Clemente pacificado. Deixou com o representante de Deus todas as vozes e tambores ancestrais.
No dia seguinte, na casa em frente à igreja, dona Quiquinha amanhecia febril e esquecida de suas receitas e compromissos de fé. Agarrou seu Genaro no banheiro e foram glórias e hosanas nas alturas.