Amanda
Da porta do quarto, Amanda olhava o corredor. No silêncio que as paredes recolhiam, o tigre da passadeira rugia para o caçador inglês que disparava. Na cômoda sob o quadro impressionista, um jarro inútil decorava de azul o ambiente. Em tudo imperava um ar equilibrado, filho do comedimento e do bom gosto.
Amanda esperou. Mais um pouquinho, os sons começariam. Toda quinta-feira era assim. Do quarto de seus pais, vinham grunhidos, ofegos, notas agudas e graves, por vezes um gemido doído e palavras ininteligíveis.
Hoje, se aproximaria. Olharia por aquele buraco de fechadura para saber o que exatamente acontecia. Já havia preparado tudo: sumira com a chave da porta para que nada obstruísse sua visão; fizera toda sua lição mais cedo e, para espanto dos pais, recolhera-se às nove horas em ponto.
Lógico que do alto de seus seis anos sabia que eles faziam sexo. Certo dia, desconfiada, perguntara ao pai sobre suas atividades trancado no quarto com sua mãe. Ele respondera tranqüilamente:
– A gente fica namorando.
– E precisa fechar a porta para namorar?
– É que a gente quer ficar sozinho. Não quer que ninguém veja.
– Vocês têm vergonha?
– É, pode ser.
– Pode ser, ou é.
– É – respondeu, sorrindo.
– Mas eu vejo vocês namorando na sala, sem vergonha nenhuma…
– Mas é um namoro levinho. No quarto a gente namora mais…
– Pesado?
– Mais pertinho, com mais beijos.
– Que nem na novela.
– Mais ou menos.
– Mais, ou menos?
– Mais.
É justamente esse “mais” que ela queria saber como era. Porque nas novelas não tinham esses gemidos todos. Num filme, ela havia visto uma moça fazer uma cara de muita dor, mas tinha uma música que não deixava ouvir nada.
O silêncio não cedia. Impaciente, chegou até a porta. Olhou pelo orifício. O pai estava sentado, nu, cotovelos nos joelhos, mãos pendentes, cabeça baixa. A mãe, de camisola, fazia carinho em seus cabelos.
Não entendeu nada. Como passar a mão no cabelo de alguém pode ser um namoro mais pesado? E os gemidos? Vai ver, tava só começando. Esperou. Nada. O pai se deitou, a mãe também. Apagaram o abajur e o silêncio dilatou-se. Frustrada, voltou para o seu quarto.
Dia seguinte, à mesa do café, olhou para o pai com um rancor visível.
– O que foi, minha linda? – perguntou o pai incauto.
– Ela tá assim desde que levantou. – informou a mãe.
– Teve pesadelo, foi isso?
– …
– Tá zangada comigo?
– …
– Papai fez alguma coisa?
– Ser humano dá defeito? – perguntou ríspida.
– Como assim?
– Defeito, enguiço. Ser humano enguiça?
O pai olhou ressabiado.
– Tá falando de quê, Amanda?
– Acho que de vez em quando tem coisa que não funciona. Ser humano deve ser igual, né? Por exemplo – e olhou o pai nos olhos – a gente tá namorando, beija, abraça e de repente, sei lá, alguma coisa não acontece, e a gente fica triste, chateada, e…
A mãe, a essa altura, fazia força para segurar o riso. O pai, paralisado, roxo de vergonha, olhava a filha com uma mescla de sentimentos que não conseguia definir. Algo assim entre a perplexidade e o desejo de furar uns olhos infantis. Amanda pressentiu o perigo.
– Bom, deixa eu me arrumar, que tenho que ir pra escola.
Levantou-se, aproximou-se do pai e completou:
– Fica preocupado não. Defeitos acontecem.
Saiu. A mãe, já dobrada numa banqueta, disparou a dar risadas.