A superação subjetiva e objetiva das relações sociais capitalistas e da alienação delas decorrente torna-se um processo particularmente difícil pelo fato de que no capitalismo as relações sociais aparecem aos indivíduos como se fossem relações entre coisas, entre entidades naturais. (1) O fetichismo faz com que os homens, tanto em sua vida cotidiana como em seu pensamento, não percebam as relações mediadas pelo valor de troca como relações sociais, isto é, como produtos históricos da ação humana. Ao invés disso, os homens naturalizam o valor de troca, como se ele fosse uma propriedade natural, física, das coisas:

“Finalmente, o trabalho que põe valor de troca se caracteriza pela apresentação, por assim dizer às avessas, da relação social das pessoas, ou seja, como uma relação social entre coisas. Somente na medida em que um valor de uso se relaciona com um outro como valor de troca é que o trabalho das diferentes pessoas se relaciona entre si como igual e geral. Por isso, se é correto dizer que o valor de troca é uma relação entre pessoas, é preciso, contudo, acrescentar: relação encoberta por coisas. Assim como uma libra de ferro e uma libra de ouro possuem o mesmo peso, apesar da diferença de suas propriedades físicas e químicas, do mesmo modo dois valores de uso de mercadorias que contenham o mesmo tempo de trabalho possuem o mesmo valor de troca. O valor de troca aparece assim como determinidade social natural dos valores de uso, determinidade que lhes corresponde como coisas e em razão do que se substituem entre si em determinadas relações quantitativas; no processo de troca, formam equivalentes, da mesma maneira que substâncias químicas simples se combinam em determinadas proporções quantitativas formando equivalentes químicos. Não é outra coisa senão a rotina da vida cotidiana o que faz parecer trivial e óbvio o fato de uma relação social de produção assumir a forma de um objeto; de tal maneira que a relação das pessoas em seu trabalho se apresenta como sendo um relacionamento de coisas consigo mesmas e de coisas com pessoas.” (MARX, 1978b:140-141)

O fetichismo é uma relação alienada e alienante que os homens estabelecem com a mercadoria, enquanto objetivação humana, pelo fato do próprio processo de objetivação ocorrer no capitalismo sob relações sociais de dominação, isto é, sob a forma de apropriação privada dos meios de produção e do produto do trabalho. As relações sociais alienadas assumem, assim, a aparência de fenômenos da natureza. Estamos perante a questão da naturalização das relações sociais, que na sociedade capitalista invade todo o pensamento dos indivíduos pertencentes a essa sociedade, desde o pensamento cotidiano até a arte, a ciência e a filosofia. A reprodução ideológica do fetichismo se realiza através das muitas formas de naturalização dos fenômenos humanos que, ao invés de serem analisados como fenômenos históricos e sociais, são encarados como fenômenos naturais.

Entretanto, na maioria das vezes essa naturalização do social não ocorre de maneira franca e direta, mas sim através de muitos e intrincados subterfúgios, dificultando bastante o trabalho de análise crítica. Além disso, a naturalização daquilo que é histórico e social é um recurso ideológico que pode ter significados diferentes, dependendo do contexto em que é utilizado, bem como dos motivos que levaram à sua utilização. Essa diversidade dos significados que a naturalização do social pode assumir nos vários contextos históricos jamais elimina, porém, seu caráter alienante, contido na transformação, no plano ideológico, de algo criado pelo homem em algo que teria sido produzido pela natureza, retirando do ser humano a crença na possibilidade de transformação daquilo que ele próprio produziu.

A utilização do recurso da naturalização não implica, entretanto, a ausência do reconhecimento de que o homem vive em sociedade. Não se trata de considerar naturalizantes apenas as concepções que não façam referência à vida coletiva, às interações entre os indivíduos. A referência ao coletivo e às chamadas “interações sociais” (reduzidas ao significado de relações interindividuais) não significa, em absoluto, a superação da naturalização, pois esta se faz presente quando a sociedade é considerada resultante de atributos naturais e universais aos seres humanos. A universalidade do ser humano, ao invés de ser vista como resultante de um processo histórico, é vista como o pressuposto da vida social, isto é, como características naturais, universais e eternas da condição humana. Como já foi dito anteriormente, a concepção piagetiana das relações entre indivíduo e sociedade apóia-se também em um pressuposto naturalizante, qual seja: a interação entre indivíduo e meio realiza-se através de uma dinâmica universal para todas as interações entre um organismo e o meio ambiente. Tal dinâmica é caracterizada no modelo interacionista como sendo a da interação adaptativa, através dos processos de assimilação e acomodação, gerando uma constante equilibração majorante, isto é, uma equilibração em níveis superiores de desenvolvimento.

Essas categorias do modelo interacionista são chamadas por Piaget de “invariantes funcionais” (PIAGET, 1982), justamente por serem universais. Em Piaget, portanto, a universalidade do modelo interacionista é um pressuposto básico na análise tanto da filogênese como da ontogênese.
Como anunciamos no início deste texto, neste segundo item procuraremos elementos teórico-metodológicos para a crítica à naturalização do social na crítica feita por Marx, nos Grundrisse, à naturalização do capitalismo presente nos economistas clássicos.

A crítica de Marx ao procedimento de naturalização presente nos economistas clássicos não se limita à questão epistemológica da necessidade de métodos de análise específicos para os fenômenos sociais. Essa questão epistemológica é enfocada por Marx num quadro mais amplo onde a crítica ao procedimento de naturalização é, ao mesmo tempo, uma crítica a uma filosofia a-histórica do ser humano e a uma posição ideológica de legitimação da perpetuação da sociedade capitalista.

Para facilitar a compreensão da crítica feita por Marx, nos Grundrisse, aos economistas clássicos e também das implicações da mesma ao tema de nosso trabalho, julgamos relevante apresentar, de início, algumas passagens de Adam Smith, copiadas por Marx (1978a:24-25) no terceiro Manuscrito Econômico-Filosófico de 1844. A apresentação dessas passagens justifica-se, pois o fato de Marx as ter copiado mostra tê-las considerado representativas do pensamento de Adam Smith, especialmente no que se refere à questão da naturalização do social(2):

“A divisão do trabalho não deve sua origem à sabedoria humana. É a conseqüência necessária, lenta e gradual da propensão para a troca e para o tráfico recíproco dos produtos. Esta propensão para negociar é provavelmente uma conseqüência necessária do uso da razão e da palavra. É comum a todos os homens e não se dá em nenhum animal. O animal, tão logo se faça adulto, vive de seu próprio esforço. O homem necessita constantemente do apoio dos demais, e esperaria em vão se fosse contar com sua mera benevolência. É muito mais seguro dirigir-se a seu interesse pessoal e convencê-los de que fazer o que deles se espera os beneficia a si mesmos. Quando nos dirigimos aos demais, não o fazemos à sua humanidade, mas sim a seu egoísmo; nunca lhes falamos de nossas necessidades, mas sim da sua conveniência. De qualquer modo, é através da troca, do comércio, do tráfico, que recebemos a maior parte dos bons serviços que reciprocamente necessitamos, é esta propensão para o tráfico que deu origem à divisão do trabalho. Assim, por exemplo, em uma tribo de caçadores ou pastores há alguém que faz arcos e flechas com mais rapidez e habilidade que os demais.

Freqüentemente troca estes instrumentos com seus companheiros por gado e caça, e rapidamente se dá conta de que por este meio consegue maior quantidade destes produtos, do que se ele mesmo fosse caçar. Com um cálculo interessado passa a fazer da fabricação de arcos, etc., sua ocupação principal. A diferença dos talentos naturais entre os indivíduos não é tanto a causa, como o efeito da divisão do trabalho (…) Sem a disposição dos homens para o comércio e a troca, cada um se veria obrigado a satisfazer por si mesmo todas as necessidades e comodidades da vida. Todos teriam que realizar a mesma tarefa e não se teria produzido esta grande diferença de ocupações que é a única que pode engendrar a grande diferença de talentos. E, assim como é essa propensão para a troca que engendra a diversidade de talentos entre os homens, é também essa propensão que faz útil tal diversidade. Muitas raças animais, ainda que pertencentes à mesma espécie, receberam da natureza uma diversidade de caráter muito mais evidenciada que aquela que se pode encontrar entre os homens não civilizados. Por natureza não existe entre um filósofo e um carregador de fardos nem a metade da diferença que há entre um mastim e um galgo, entre um galgo e um perdigueiro ou entre qualquer destes e um cão pastor. Contudo, estas diferentes raças, ainda que pertencendo todas a uma mesma espécie, não têm utilidade umas para as outras. O mastim não acrescenta nenhuma vantagem à sua força por servir-se da ligeireza do galgo, etc. Os efeitos destes diferentes talentos ou graus de inteligência não comportam um denominador comum, porque falta a capacidade ou a propensão para a troca e para o comércio e não podem, portanto, contribuir em nada para a vantagem ou a comodidade geral da espécie (…). Cada animal deve alimentar-se e proteger-se a si mesmo, independentemente dos demais; não pode obter a mínima vantagem da diversidade de talentos que a natureza distribui entre seus semelhantes.

Entre os homens, ao contrário, os talentos mais diversos são úteis uns aos outros, porque, mediante esta propensão geral para o comércio e para a troca, os diferentes produtos dos diferentes tipos de atividade podem ser postos, por assim dizer, em uma massa comum, à qual cada um pode ir comprar uma parte dos produtos da indústria dos demais, de acordo com suas necessidades. Como esta propensão para a troca dá origem à divisão do trabalho, o crescimento desta divisão estará sempre limitado pela expansão da capacidade de trocar ou, dito em outras palavras, pela expansão do mercado. Se o mercado é muito pequeno, ninguém se animará a dedicar-se inteiramente a uma única ocupação, frente ao temor de não poder trocar aquela parte da sua produção que excede às suas necessidades pelo excedente da produção de outro que desejaria adquirir (…) [Marx:] “Numa situação de maior progresso:” [Adam Smith:] Todo homem vive da troca e se converte em uma espécie de comerciante e a própria sociedade é realmente uma sociedade mercantil.” (MARX, 1978a: 24-25)

As palavras de Adam Smith traduzem uma concepção na qual a troca e o mercado são vistos como pertencentes à natureza do ser humano e, portanto, características essenciais do desenvolvimento individual e da sociedade. O enriquecimento comum resulta, segundo essa concepção, do egoísmo de cada um, pois cada indivíduo só faz algo por outro quando isso lhe trouxer algum benefício. A divisão do trabalho desenvolve os talentos individuais e enriquece a sociedade, pois produz a diversidade. O que possibilita ao indivíduo humano poder – diferentemente dos animais –, beneficiar-se dos diferentes talentos de outros indivíduos humanos é essa tendência à troca, que faz com que os produtos da atividade de cada indivíduo sejam postos no mercado, onde cada um busca aquilo que for de seu interesse e satisfaça alguma necessidade sua. O desenvolvimento dos indivíduos estará sempre limitado pelo desenvolvimento do mercado, isto é, os indivíduos só se motivarão a produzir se o mercado for ampliando-se cada vez mais, para que aumente o número de consumidores e de produtores.

Essa concepção defendida por Adam Smith no século XVIII aproxima-se em muito do discurso hegemônico na sociedade atual. E tal aproximação não se limita ao discurso imediatamente econômico, de defesa do livre mercado enquanto aquele que poderia, de forma natural, regular a sociedade e permitir o desenvolvimento dos talentos individuais. Diríamos que esse paradigma do homem como um ser que possui uma tendência natural à troca está presente na mentalidade atual em muitos campos do conhecimento e não com menos intensidade no campo educacional. Uma das tônicas do discurso pedagógico contemporâneo reside na idéia de interação que é vista como uma forma de troca – troca de saberes, de experiências, de informações, de gestos afetivos, de histórias pessoais etc. A incorporação de Vigotski ao ideário pedagógico tem sido, em boa parte, motivada por essa valorização da troca (3), ainda que muitos afirmem ser essa valorização resultado daquela incorporação. O trabalho educativo, nessa perspectiva, para efetivar-se enquanto processo democrático e emancipatório, deve caracterizar-se por uma multiplicidade de interações comunicativas, de trocas. A idéia de troca, numa sociedade como a nossa, remete necessariamente à idéia de mercado, pois este é o local por excelência da troca. Talvez não seja por acaso que alguns educadores – como, por exemplo, NOGUEIRA (1993) –, apresentem estudos que focalizam “processos de negociação” na sala de aula como estudos que estariam apoiados na teoria vigotskiana. Seria mera coincidência que a educação seja vista como troca, como negociação, em tempos onde é feita a apologia do mercado mundializado?

Temos insistido, neste trabalho, na idéia de que o lema “aprender a aprender” apóia-se em concepções naturalizantes das relações entre indivíduo e sociedade.

Acrescentamos agora a essa afirmação a de que o “aprender a aprender” está inserido no universo ideológico da naturalização do mercado. “Aprender a aprender” significa, na verdade, aprender a buscar, por si mesmo, entre as ofertas do mercado do conhecimento, as informações e os saberes necessários à adaptação a um determinado tipo de atividade. No “aprender a aprender”, conhecer é interagir, é trocar. Assim, o lema “aprender a aprender” mantém grande sintonia com as idéias do homem como um comerciante e da sociedade como uma sociedade mercantil.

Vejamos agora de que forma Marx desenvolve sua crítica à naturalização do social efetuada pelos economistas clássicos. Inicialmente MARX (1987a: 3-4) critica Adam Smith e Ricardo por partirem, em suas análises econômicas, da pressuposição da existência primitiva de caçadores e pescadores individuais e isolados:

“Indivíduos que produzem em sociedade, ou seja, a produção dos indivíduos socialmente determinada: este é naturalmente o ponto de partida. O caçador ou o pescador sós e isolados, com os quais começam Smith e Ricardo, pertencem às imaginações desprovidas de fantasia que produziram as robinsonadas do século XVIII, as quais, diferentemente do que acreditam os historiadores da civilização, de modo algum expressam uma simples reação contra um excesso de refinamento e um retorno a uma mal entendida vida natural. O contrato social de Rousseau, que põe em relação e conexão, através do contrato, sujeitos por natureza independentes, tampouco repousa sobre semelhante naturalismo. Este é somente a aparência, e a aparência puramente estética, das grandes e pequenas robinsonadas. Trata-se, na realidade, mais de uma antecipação da “sociedade civil” que se preparava desde o século XVI e que no século XVIII marchava a passos de gigante para sua maturidade. Nesta sociedade da livre competição, cada indivíduo aparece como desprendido dos laços naturais, etc, que nas épocas históricas precedentes fazem dele uma parte integrante de um conglomerado humano determinado e circunscrito. Aos profetas do século XVIII, sobre cujos ombros ainda se apóiam totalmente Smith e Ricardo, este indivíduo do século XVIII – que é o produto, por um lado, da dissolução das formas de sociedade feudais e, por outro, das novas forças produtivas desenvolvidas a partir do século XVI – lhes aparece como um ideal cuja existência teria pertencido ao passado. Não como um resultado histórico, mas como um ponto de partida da história. Segundo a concepção que tivessem da natureza humana o indivíduo aparecia como conforme à natureza, enquanto posto pela natureza e não enquanto produto da história. Até hoje, esta ilusão tem sido própria de toda nova época.”

Essa citação é bastante ilustrativa quanto ao tipo de crítica desenvolvida por Marx às concepções que utilizam como recurso ideológico à naturalização do social, do histórico. O indivíduo isolado, isto é, o indivíduo que age em função de seus fins particulares, é visto pela Economia Política não como um produto histórico, mas sim como o ponto de partida da história humana. Como vimos nas anteriormente citadas passagens de Adam Smith copiadas por Marx, aquele entendia que a espécie humana possuísse uma propensão natural para a troca, o que acabaria por satisfazer as necessidades individuais, produzir a divisão do trabalho e assim impulsionar o progresso social. Essa propensão natural à troca estaria dada já no ponto de partida a todos os indivíduos humanos. Marx ironiza essa concepção e a chama de “robinsonadas”, numa alusão à imagem do indivíduo civilizado que se vê perdido e sozinho numa ilha. Marx, porém, não apenas critica Smith e Ricardo por situarem o indivíduo mercador (propenso à troca), no ponto de partida da Economia Política, ele também critica aqueles que consideram as “robinsonadas” apenas um resultado de uma aspiração romântica a um retorno a um estado primitivo de liberdade do ser humano, vivendo em contato direto com a natureza, aspiração essa que seria uma espécie de reação ao excesso de refinamento da sociedade européia do século XVIII. Se as robinsonadas tivessem esse significado, não passariam de devaneios românticos e desprovidos de real importância histórica. Mas, para Marx, elas não significavam um retorno a um passado idílico que nunca existiu, mas sim uma antecipação profética dos desdobramentos da sociedade burguesa, da sociedade capitalista.

Os profetas do século XVIII foram capazes de captar os germens, já existentes àquela época, do que seria a sociedade burguesa em sua maturidade, isto é, uma sociedade na qual imperaria a competição e na qual seriam rompidos todos os tipos de laços que, em sociedades precedentes, caracterizavam o indivíduo como ser pertencente de forma indissociável a determinada comunidade natural. Robinson perdido na ilha é uma metáfora do indivíduo na sociedade burguesa. A individualidade, tal como ela se configura na sociedade burguesa, aparece aos profetas do século XVIII como algo que teria existido no passado, que teria existido no início da história, assim como Adão no paraíso; quando, na verdade, esses pensadores estavam traduzindo um produto histórico, um produto do processo de gênese e desenvolvimento do capitalismo. Cabe aqui uma menção ao uso que Marx faz da expressão “sociedade civil”. Em MARX (1987a:481) em nota de fim de texto, é apresentada a informação de que essa expressão estaria sendo utilizada na mesma acepção de Hegel. Interessante notar aqui, que MARX (1987c:354-355), na obra Crítica do Direito do Estado de Hegel, escrita em 1843, cita uma passagem onde Hegel caracteriza a sociedade civil, diferenciando-a do Estado: “como a sociedade civil é o palanque do interesse privado individual de todos contra todos, é aqui onde tem seu assento o conflito entre este interesse privado e os assuntos particulares comuns e entres estes juntos e aquele com os pontos de vista e as ordens superiores do Estado”. Marx, analisando essa passagem diz ser curioso Hegel apresentar “a definição de sociedade civil como o bellum omnium contra omnes”, isto é, guerra de todos contra todos. Mais adiante, ainda neste item, mostraremos que Marx, ao estudar os economistas, caracterizou a concepção destes de sociedade também como uma guerra de todos contra todos, utilizando, inclusive, a mesma expressão em latim.

Assinalamos também que uma concepção similar a essa já havia sido defendida por KANT (1994: 3-23) em um texto escrito em 1784, no campo da Filosofia da História. Nesse texto ele defende a posição de que a história humana é guiada por uma intenção da Natureza:
“Pouco imaginam os homens (enquanto indivíduos e inclusive como povos) que, ao perseguir cada qual sua própria intenção segundo seu parecer e, com freqüência, contra os outros, seguem sem o perceber – como um fio condutor – a intenção da Natureza, que lhes é desconhecida e trabalham em prol da mesma, de tal forma que lhes seria de pouca importância conhecê-la.” (KANT, 1994: 4)

Para Kant, os seres humanos não agiriam movidos pelo instinto, como os animais, nem como “cidadãos racionais do mundo, segundo um plano globalmente concertado” (idem, p. 4-5). Assim, a história humana aparentaria, à primeira vista, ser uma realidade absurda, fruto de uma mente enlouquecida. Caberia à filosofia da história tentar decifrar a intenção da Natureza que guiaria, como um fio condutor, a história humana. Não vamos aqui analisar os nove princípios formulados por Kant para essa análise filosófica da intenção da Natureza em relação ao desenvolvimento da humanidade.

Apenas destacaremos que, na perspectiva kantiana, o motor do desenvolvimento humano residiria na luta entre duas tendências opostas, existentes no ser humano: a tendência à socialização e a tendência ao individualismo. Luta essa por Kant denominada “insociável sociabilidade”:
“O meio do qual se serve a Natureza para levar a cabo o desenvolvimento de todas as suas disposições é o antagonismo das mesmas dentro da sociedade, na medida em que esse antagonismo acaba por converter-se na causa de uma ordem legal daquelas disposições. Entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos homens, isto é, que sua inclinação a viver em sociedade seja inseparável de uma hostilidade que ameaça constantemente dissolver essa sociedade. Que tal disposição esteja subjacente à natureza humana é algo bastante óbvio. O homem tem uma tendência a socializar-se, porque em tal estado sente mais sua condição de homem ao experimentar o desenvolvimento de suas disposições naturais. Porém também tem uma forte inclinação a individualizar-se (isolar-se), porque encontra simultaneamente em si mesmo a insociável qualidade de submeter tudo a seu mero capricho e como sabe que é propenso a opor-se aos demais, espera encontrar essa mesma resistência por parte dos outros.” (idem, p. 8-9)

Kant, ao defender tal concepção da história humana, aproxima-se bastante da perspectiva dos economistas burgueses, que viam na luta de cada indivíduo por seus interesses particulares, o motor do desenvolvimento humano. Para Kant, a resistência que os outros seres humanos oferecerão ao egoísmo do indivíduo, fará com que ele tenha de lutar e, dessa forma, desenvolver as disposições a ele dadas pela Natureza:

“O homem quer concórdia, porém a Natureza sabe melhor o que convém à sua espécie e quer discórdia. O homem pretende viver cômoda e prazerosamente, mas a Natureza decide que deve abandonar a frouxidão e o ocioso conformismo, entregando-se ao trabalho e padecendo as fadigas que sejam precisas para encontrar com prudência os meios de apartar-se de tais penalidades. Os impulsos naturais encaminhados a esse fim, as fontes da insociabilidade e da resistência generalizada (fontes das quais emanam tantos males mas que também incitam a uma nova tensão das forças e, por conseguinte, a um maior desenvolvimento das disposições naturais) revelam a organização de um sábio criador (…) tal como as árvores logram em meio ao bosque um belo e reto crescimento, precisamente porque cada uma tenta privar a outra do ar e do sol, obrigando-se mutuamente a buscar ambas as coisas acima de si, em lugar de crescer atrofiadas, torcidas e encurvadas como aquelas que estendem caprichosamente seus galhos em liberdade e apartadas das outras; de modo semelhante toda a cultura e a arte que adornam à humanidade, assim como a mais bela ordem social, são frutos da insociabilidade, em virtude da qual a humanidade se vê obrigada a autodisciplinar-se e a desenvolver plenamente os germens da Natureza graças a tão imperiosa arte.” (idem, p. 10-1)

Retomando a questão do recurso da naturalização, segundo nossa interpretação, Marx procurava mostrar que esse recurso traduzia uma determinada configuração histórica das relações sociais. Assim, um discurso que aparentemente estaria abordando características humanas universais, como fez Kant nas passagens acima citadas – características essas naturais e, portanto, independentes das particularidades contextuais –, pode estar, na realidade, justamente expressando processos historicamente surgidos e existentes na sociedade que produz esse discurso. A sociedade burguesa produz a concepção de que a luta entre os indivíduos é própria da natureza humana e, nessa luta, cada indivíduo persegue seus interesses particulares. Surge assim a concepção de que o desenvolvimento tanto do gênero humano quanto de cada indivíduo é fruto dessa constante tensão entre individualismo e convivência social. Aquilo que é uma característica específica à organização social capitalista, é universalizado, no plano ideológico, a toda a história humana, transformando a competição própria da sociedade mercantil em algo natural ao ser humano em toda e qualquer época. Nos Grundrisse, MARX (1987a:4) mostra que a Economia Política, ao elaborar seu discurso partindo de um primitivo produtor individual isolado, na verdade estaria traduzindo um produto da sociedade capitalista, ou seja, a possibilidade, produzida pelo desenvolvimento social, dos indivíduos agirem em função de seus fins privados:

“Quanto mais longe recuamos na História, tanto mais aparece o indivíduo – e por conseguinte também o indivíduo produtor – como dependente e formando parte de um todo maior: em primeiro lugar e de uma maneira todavia muito inteiramente natural, da família e dessa família ampliada que é a tribo; mais tarde, das comunidades em suas distintas formas, resultado do antagonismo e da fusão das tribos. Somente ao chegar ao século XVIII, com a sociedade civil, as diferentes formas de conexão social aparecem ao indivíduo como um simples meio para alcançar seus fins privados, como uma necessidade exterior. Porém, a época que gera este ponto de vista, esta idéia do indivíduo isolado, é precisamente aquela na qual as relações sociais (universais segundo este ponto de vista) chegaram ao mais alto grau de desenvolvimento alcançado até o presente.”

Ao contrário do que procuram mostrar os economistas clássicos, o produtor voltado prioritariamente à satisfação de seus fins privados, o produtor isolado que, depois, estabelece uma relação com outros produtores, não existe no início do processo histórico. Marx mostra que quanto mais recuamos na história mais o indivíduo aparecerá indiferenciado; mais se encontrará em um estado de fusão completa com a comunidade natural à qual pertence. Tanto a idéia de um produtor isolado como a possibilidade objetiva do indivíduo perseguir seus fins privados, fazendo das “diversas formas de conexão social” os meios para alcançar esses fins, são produtos da sociedade burguesa, do capitalismo; são, portanto, produtos do desenvolvimento histórico da produção.

Assim, a naturalização, ao invés de significar uma tentativa de retorno a um primitivo estágio natural, significa a tentativa de justificação, através da eternização e da universalização, de uma determinada realidade, apresentado-a como correspondente à natureza humana. A naturalização não é o retorno à natureza, mas sim a consideração como natural, isto é, como pressuposto da vida social, daquilo que é histórico, produto do desenrolar histórico das relações sociais.

E, como já assinalamos, o recurso à naturalização contém, com freqüência, também o processo de universalização a-histórica de determinadas características específicas da sociedade capitalista. Marx analisa isso ao criticar o recurso então utilizado pelos economistas de partirem, em seus trabalhos, sempre de considerações óbvias sobre a produção em geral para então justificarem as relações capitalistas como sendo universais para as sociedades humanas. MARX (1987a: 5-6) considera ter sua validade a análise dos elementos comuns à produção material em toda e qualquer época histórica, mas alerta para a necessidade de não se esquecer das diferenças que distinguem uma época histórica de outra:

“Neste esquecimento reside, por exemplo, toda a sabedoria dos economistas modernos que demonstram a eternidade e a harmonia das condições sociais existentes. Um exemplo. Nenhuma produção é possível sem um instrumento de produção, ainda que este instrumento seja somente a mão. Nenhuma é possível sem trabalho passado, acumulado, ainda que este trabalho seja somente a destreza que o exercício repetido desenvolveu e concentrou na mão do selvagem. O capital, entre outras coisas, é também um instrumento de produção, é também um trabalho passado objetivado. De tal modo, o capital é uma relação natural, universal e eterna; porém o é se deixo de lado o específico, o que faz de um “instrumento de produção”, do “trabalho acumulado”, um capital.”

Segundo entendemos, nesse trecho Marx estabelece a distinção entre dois tipos de análise. Um focaliza os aspectos universais da atividade de produção dos meios materiais necessários à existência humana; outro focaliza as formas particulares assumidas por esses aspectos em cada momento histórico. Esses aspectos universais não existem, é claro, na forma de pura universalidade, mas sim enquanto realidades sociais determinadas, específicas. Como apontou Marx, não existe produção sem trabalho passado, acumulado, objetivado (nesse momento Marx utiliza os três termos como sinônimos), mas o trabalho objetivado não existe em sua forma pura e sim em formas concretas, seja como habilidade adquirida pela repetição, seja como um instrumento de trabalho, seja como capital.

Assim, não existe a produção em geral, mas os aspectos comuns a todas as formas históricas de produção. Entretanto, a análise desses aspectos comuns não é suficiente para a compreensão de uma determinada forma histórica de produção como, por exemplo, o capitalismo. Analisar o capital considerando apenas o fato de ele ser trabalho objetivado é deixar de lado os elementos históricos mais importantes que caracterizam a especificidade do capital perante outras formas históricas de trabalho objetivado e, principalmente, essa análise não permite a compreensão da necessidade de superação dessa forma específica de acumulação de trabalho objetivado caracterizada como capitalismo. O equívoco dos economistas não residiu em considerar que existam aspectos universais da atividade produtiva humana, mas sim em pretender universalizar a configuração histórica que esses aspectos assumiram no capitalismo. (continua)

Newton Duarte é doutor e Livre Docente em Educação pela UNICAMP e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP/Araraquara.

Notas
(1) Esse processo de fetichismo foi analisado por Marx no item 4 do capítulo sobre a mercadoria, no primeiro volume de O Capital (MARX, 1983:70-78), publicado pela primeira vez em 1867 e também no capítulo sobre a mercadoria do livro Para a Crítica da Economia Política (MARX, 1978b), publicado pela primeira vez em 1859. Não poderemos, obviamente, aprofundar aqui a análise da questão do fetichismo na teoria de Marx e recomendamos, ao leitor interessado nessa questão, o livro de José Paulo Neto Capitalismo e Reificação (NETO, 1981) e o de Isaak Ilich Rubin A Teoria Marxista do Valor (RUBIN, 1987). Para uma leitura detalhada de O Capital, de Marx, recomendamos, como bibliografia de apoio, o livro de Francisco José Soares TEIXEIRA (1995), intitulado Pensando Com Marx: Uma Leitura Crítico-Comentada de O Capital.
(2) Essas passagens encontram-se no livro Uma Investigação Sobre a Natureza e Causas da Riqueza das Nações, de Adam Smith, mais especificamente passagens do livro I, capítulos 2 e 3, intitulados, respectivamente: “Do Princípio que dá Ocasião à Divisão do Trabalho” e “Que a Divisão do Trabalho é Limitada pela Extensão do Mercado” (SMITH, 1981:7-13). Posto que nosso objetivo, ao apresentar os trechos copiados por Marx é mostrar aspectos da leitura que Marx fazia do pensamento de Adam Smith, aspectos esses relevantes para a compreensão da crítica marxiana à naturalização do capitalismo, não nos deteremos em pequenas diferenças entre o texto dos trechos copiados por Marx e a tradução por nós acima citada, dessa obra de Adam Smith. Essas diferenças não prejudicam a compreensão das idéias de Adam Smith expressas nessas passagens.
(3) Parece-nos ser esse também o motivo que tem levado a alguns educadores a buscar em Bakhtin apoio para a concepção do ato pedagógico como um processo dialógico.

Bibliografia
MARX, K.
1978a. “Manuscritos econômico-filosóficos (Terceiro manuscrito)”. In Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, p. 3-48 (coleção Os Pensadores).
1978b. “Para a crítica da economia política”. In Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, p. 135-257 (Coleção Os Pensadores).
1987a. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse – 1857-1858). 2 ed. México: Siglo XXI, vol. 1.
1987c. “Crítica do direito do Estado de Hegel”. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura Económica, p. 319-438.
KANT, I.
1994. Ideas para una Historia Universal en Clave Cosmopolita y otros escritos sobre filosofia de la historia. 2 ed. Madri: Tecnos.

EDIÇÃO 71, NOV/DEZ/JAN, 2003-2004, PÁGINAS 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69