A sociedade urbano-industrial e o metabolismo urbano
O Brasil torna-se, hoje, intensivamente um país urbano, com quase 80% de sua população vivendo em cidades. Esse dado aponta para um grande desafio a ser enfrentado por governantes no fim desse século e início do próximo milênio. Por isso, propõe-se aqui esboçar algumas considerações acerca do que se pode chamar metabolismo urbano nas grandes cidades, numa perspectiva brasileira para os anos vindouros.
A maior parte dos estudos de ecologia urbana, realizados no passado até início dos anos 70, silenciava sobre as conseqüências negativas da excessiva concentração humana em espaços relativamente reduzidos. Como não existia uma consciência ambiental mais difundida na sociedade e, sobretudo, na mídia, numerosos problemas do ambiente urbano-industrial eram relegados a um tratamento meramente técnico como se fossem coisas menores, pouco dignas de consideração acadêmica. Constatou-se, inclusive, ao princípio, uma forte reação das elites em relação àqueles que se atreviam a aprofundar a discussão nas questões ambientais e ecológicas.
A grande mudança ocorrida no tratamento da ecologia urbana, nos últimos vinte anos, deveu-se à emergência da consciência ambientalista ecológica. Pode-se dizer que a nova ecologia urbana compreende o estudo das formas de projeção da sociedade e das funções econômico-sociais sobre o espaço e o ambiente das cidades, envolvendo a funcionalidade do organismo urbano em todos os sentidos. Nessas condições, faz-se necessária uma seriedade maior dos acadêmicos, técnicos e governantes, no conhecimento integrado dos ecossistemas urbanos. De agora em diante, todas as lideranças vinculadas às tarefas de gerenciamento de uma determinada porção do território têm de visualizar o mosaico dos sistemas ecológicos que participam da organização da dinâmica do espaço de sua responsabilidade mais direta.
Não se trata de excluir os estudos de ecologia social metropolitana, mas de realizar acréscimos indispensáveis para o entendimento de propostas objetivas destinadas à solução das questões ambientais nas áreas de grandes concentrações de homens e atividades econômicas do mundo urbano-industrial. Abordagens que modernamente, são designadas por estudos de metabolismo urbano, quer se trate de Hong Kong ou de Paris, com um máximo de aplicabilidade para grandes cidades, como é o caso de São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Manaus ou Porto Alegre. Sob a condição de que ocorra sempre uma interação e imbricação entre a ecologia social e as peculiaridades do metabolismo urbano, em cada uma dessas grandes aglomerações humanas.
A única estratégia para se crescer nos problemas da ecologia urbana, entendida mais realística e participativamente, reside em um tratamento permanente do metabolismo urbano. Na verdade, as questões referentes às desigualdades sociais – (re)educação das massas, desemprego, transportes coletivos e metabolismo urbano –, formam um quinteto central entre os problemas a serem considerados para garantir a sustentabilidade do mundo urbano-industrial, considerado na sua funcionalidade e em seu futuro.
Na expressão metabolismo urbano estão incluídos todos os processos de saneamento básico, dotados de tecnicidade específica.
O metabolismo urbano volta-se ao ambiente total de organismo metropolitano – antevisto do centro para a periferia e vice-versa – onde se processa o dia-a-dia dos homens em suas funções biológicas, assim como nas multivariadas funções de trabalho, circulação, consumismo e práticas sociais e culturais. Razão pela qual os estudos sobre o metabolismo urbano, no contexto das grandes metrópoles do mundo subdesenvolvido, passam a ter valor de referência e de propostas balanceadas para garantir a boa funcionalidade da vida metropolitana. Nesse sentido, há que se perceber e avaliar a diversidade e o volume de tudo aquilo que entra no organismo urbano (água potável, energia solar, precipitações pluviais, água para indústrias, alimentos, matéria-prima, produtos industrializados e homens). A seguir, como tarefa básica, há que se atentar para os fluxos internos que representam a própria funcionalidade e dinâmica da metrópole.
Trata-se de uma fantástica sobreposição de metabolismos que se somam e interagem: o metabolismo industrial, específico para cada tipo de fábrica; o metabolismo de circulação interna de veículos de diferentes portes e potencial poluitivo; uma circulação externa que perpassa pelo organismo urbano, para atingir outras regiões e quadrantes do país; e um sistema de drenagem urbana para afunilizar e canalizar esgotos domésticos e efluentes industriais, até estações de tratamento d’águas ou cursos d’água de reduzido volume hídrico, sujeitos a uma enorme e permanente poluição. Para não falar na gigantesca trama das ligações energéticas que garante a movimentação das indústrias, a iluminação pública, a funcionalidade do comércio, desde o menor dos botequins até os grandes shoppings centers, e penetra pelas paredes das casas garantindo o funcionamento das luminárias e dos artefatos eletrodomésticos.
Poucos se dão conta, ainda, do que seja o gigantismo do sistema de edução de águas tratadas para múltiplos usos no espaço total do organismo urbano metropolitano. Este é um setor em que, muitas vezes, a velocidade da urbanização dos espaços públicos apresenta descompasso em relação às ligações. Assim, asfaltam-se ruas e, logo depois, é necessário recortar o asfaltado para ligações de encanamentos para novas residências que se multiplicam em todos os tipos de áreas e terrenos. Para poder fazer com que água tratada chegue às favelas, a administração pública usa artifícios muitas vezes impensados, colocando tubos plásticos corrugados, que seguidamente se rompem deixando extravasar o precioso e disputado líquido. Tudo isso provocando grandes dificuldades de gerenciamento, ao par com repetidas reclamações e protestos da comunidade.
O metabolismo dos grandes organismos urbanos se completa por uma série de diferentes tipos de descargas, relacionadas a processos biológicos, atividades industriais e comerciais, circulação de veículos e resíduos de todos os tipos. Tudo o que entrou e transitou através de fluxos complexos terá de sair sob a forma de materiais secundários, profundamente modificados pela metabolização. E nesse sentido, numa grande metrópole, com milhões de habitantes acontecem incontáveis processos metabólicos derivados das próprias condições biológicas dos homens, de suas inúmeras atividades no mundo urbano, das tecnologias que respondem pela industrialização e do uso de veículos automotores. São milhares ou milhões de automóveis que transitam no corpo urbano metropolitano em deslocações quase contínuas – por todas as horas do dia, dos meses e dos anos – expelindo gases para a atmosfera, criando impactos altamente negativos ao ambiente urbano. Efluentes industriais, na maior parte dos casos não-tratados, escorrem para riachos e córregos, chegando aos rios de baixo volume d’água (como os casos do Tietê ou do Pinheiros, em São Paulo). A pluma das chaminés das instalações industriais acrescenta gases e particulados ao espaço aéreo urbano metropolitano o qual, de per si, já está saturado pelas emanações dos canos de descargas dos veículos automotores. Por outro lado, cerca de 75% dos resíduos sólidos no Brasil são depositados em lixões empíricos a céu aberto: vale assinalar que não existe forma de descarte de lixo mais arcaica e incomodante do que estes lixões: neles é empilhado, caoticamente, o lixo orgânico doméstico, misturado a papéis, papelões, plásticos, vidros e latas. Materiais que, de resto, incluem grande quantidade de componentes não-degradáveis ou de difícil e demorada degradação. Assinale-se, ainda, a presença do lixo industrial, do lixo hospitalar e dos entulhos da construção civil.
O lixo urbano constitui-se numa questão de saneamento básico de difícil solução. Para se ter uma idéia, numa cidade como São Paulo, estima-se em oito mil toneladas de lixo diário a ser descartado. No Brasil, fala-se em 242 mil toneladas por dia de lixo. O pior é que se trata de um tipo obrigatório de descarte que faz crescer e multiplicar os sítios para a postagem. Sendo, ademais, um tipo terminal de metabolismo urbano que não apresenta condições para ser exportado para áreas distantes. Lixões ou aterros sanitários, por melhor que sejam manejados, acabam por desvalorizar os espaços ao derredor. Os odores das emanações gasosas do lixo (metano) e do chorume (líquido preto gerado do próprio lixo, de natureza altamente poluente) empestam os ares dos arredores dos lixões, ao mesmo tempo em que acontece proliferação de ratos e insetos. Enfim, um foco de insanidade que coloca em perigo a saúde pública regional. E, por último, uma pequena área de atração dramática para os desesperados catadores de lixo, que tentam se apoiar em uma das mais tristes estratégias de sobrevivência exibidas em países subdesenvolvidos.
Em áreas metropolitanas de grande adensamento construtivo não existem condições psicossociais e administrativas para os municípios vizinhos aceitarem o lixo daqueles que não têm mais espaços disponíveis para a postagem dos resíduos sólidos produzidos em seu próprio território. Essa dificuldade deriva, sobretudo, da valorização, às vezes exagerada, da terra urbana e da expectativa de lucros pelos proprietários de glebas periurbanas municipais. A verdade é que os lixões aviltam os preços dos espaços fundiários congelados para futuros loteamentos. Disso resulta uma escolha socialmente injusta, ou seja, a colocação de lixões em terrenos baldios nas proximidades das favelas ou bairros carentes.
Em algumas cidades brasileiras, os depósitos de lixo foram colocados em sítios de várzeas, sujeitos a inundações freqüentes; acontece assim um ampliado chorume que se expande sazonalmente por um largo círculo da região.
Assim, desde o extremo norte do Brasil até o extremo sul, observam-se problemas relacionados à necessidade inadiável de descarte de resíduos sólidos. Note-se, porém, que, mesmo no Primeiro Mundo, existem problemas e dúvidas sobre o tipo de tratamento a ser dado aos descartes dos resíduos sólidos de sua complexa vida urbano-industrial.
A literatura disponível para o estudo do metabolismo das grandes cidades brasileiras é, infelizmente, extremamente reduzida. Existe, entretanto, uma espécie de bibliografia “fantasma”, de caráter eminentemente técnico, que não é encontrada em bibliografias, mas que permanece nos arquivos mortos ou estantes mal cuidadas de repartições burocráticas. Nos últimos tempos, as empresas de consultoria têm tido um cuidado especial na reunião desse material alternativo, considerado essencial para estudos, compilações e projetos. Note-se, porém, se tratar de relatórios técnicos que, embora relevantes, foram elaborados em diferentes épocas e lugares e se referem a setores restritos. Notícias de jornais, ainda que fragmentárias, são importantes para a cronologia dos eventos mais berrantes, aqui considerados como processos espasmódicos: grandes enchentes, chuvaradas excepcionais, escorregamentos de terras em áreas urbanas, estiagens catastróficas para a agricultura e a pecuária regionais e, sobretudo, os períodos de grandes secas ou repiquetes de secas nos sertões nordestinos, com fortes implicações sociais para o mundo urbano regional ou nacional.
Num país de memória curta como o nosso não é de se desprezar os registros feitos em periódicos, seja da grande imprensa, seja nos jornais locais, muito ativos, em nossas diferentes regiões. Mais recentemente, na era da televisão e da informatização, aparecem modos mais vivos e permanentemente (re)visitáveis para constatações sobre ocorrências de catástrofes com suas dramáticas conseqüências para as comunidades.
Falando-se de metabolismo urbano, cada caso é um caso. A magnitude dos problemas depende das condições do sítio urbano, da hidrologia e da fisiologia da paisagem.
Mais do que isso: depende da estrutura, do volume e da funcionalidade do organismo urbano. Pressupõe inquirições holísticas e quantitativas. Não se devem confundir as pesquisas sobre o metabolismo urbano com alguns problemas específicos de cada centro urbano; mas não é possível ignorá-los. Há numerosos exemplos disso. Vejamos alguns.
As enchentes do rio Itajaí, SC, no sítio urbano de Blumenau; a poluição cumulativa da Baía de Guanabara e da Baixada Santista; as dificuldades de Santos e São Vicente, (SP); em relação aos resíduos sólidos; a criticidade das condições climáticas locais de Cubatão, (SP), Volta Redonda, (RJ), Votorantim, SP, cidades do ABC paulista, Paulínia, (SP); e região industrial situada ao norte de Porto Alegre, (RS); as dificuldades de cidades muito próximas de indústrias ditas “potencialmente poluidoras” (Jacareí, Paulínia, Sorocaba, Salto, Santo André, São Caetano, Guaíba). Na região de Cubatão-Piassaguera algumas indústrias poluem o ar, os rios, o solo e afetam a saúde dos trabalhadores, crianças e velhos. O custo real dos processos difusos de poluição aérea de Cubatão e Serra da Paranapiacaba jamais poderão ser avaliados.
Estudos de metabolismo urbano, por tudo isso, interessam profundamente às prefeituras municipais; de tal modo que as mesmas podem criar facilidades ao desenvolvimento das pesquisas por parte de jovens universitários. Face ao caráter fragmentário do conhecimento, dados e informações, a primeira tarefa para efetivação de um estudo reside no rastreamento de relatórios e informes não encontráveis em bibliotecas públicas ou em acervos universitários. E a própria reunião desses dados dispersos representa uma colaboração significativa para as autoridades públicas interessadas em dominar o conhecimento objetivo da dinâmica interna de sua cidade.
É difícil pensar que não existam ainda bons e atualizados estudos sobre metabolismo urbano de Manaus, Salvador ou Fortaleza. Inexplicável, ainda, a não disponibilidade de trabalhos desse tipo sobre cidades brasileiras localizadas em espaços insulares, tais como Santos-São Vicente, Florianópolis, Vitória e São Luiz do Maranhão. E outras localidades e sítios similares, onde o metabolismo urbano se complica em função da intervenção diária das marés ou da oscilação sazonal das cheias, exigüidade dos espaços urbanizáveis, interferência da especulação fundiário-urbana e congelamento planejado de vazios intra-urbanos.
Enfim, convém trabalhar desde já para esclarecer e conscientizar autoridades e formadores de opinião, com o objetivo de o porvir do ambiente urbano brasileiro não vir a se constituir num caos e num exemplo dramático de uma nação que esqueceu de pensar o seu futuro.
Aziz Ab’Saber é geógrafo e presidente de honra da SBPC.
EDIÇÃO 71, NOV/DEZ/JAN, 2003-2004, PÁGINAS 54, 55, 56, 57