Imperialismo, universidade e pensamento crítico
1 O auge do capitalismo como modo de produção progressista, que conseguiu deixar o feudalismo superado e esquecido no passado da humanidade, ocorreu nos fins do século XIX, quando sua irracionalidade começou a ultrapassar suas qualidades.
V. Lênin foi o primeiro a perceber esta guinada ao analisar sua fase imperialista, iniciada no longo período depressivo mundial de 1873 a 1896 e o primeiro a dirigir uma revolução socialista vitoriosa (URSS), abrindo a era da transição capitalismo-socialismo, dentro da qual nós vivemos. Mas o imperialismo impôs a guerra ao socialismo, pois seu nascimento era intolerável, bem como impôs a guerra ao longo do século XX às novas nações que lutavam para se libertar da exploração colonial e social.
Mesmo inferiorizado materialmente diante das potências capitalistas, o socialismo, superior moralmente, deixou ao longo do século XX uma brilhante história de resistência e criatividade: 1) Trotsky organizou o Exército Vermelho, sem ter tido experiência militar anterior e, mobilizando milhões de camponeses, derrotou as tropas czaristas e imperialistas (Inglaterra, Japão, EUA, etc), garantindo, à custa de milhões de mortos, a vitória da revolução soviética (1918-21); 2) na segunda guerra mundial a máquina de guerra alemã foi expulsa da URSS e derrotada na batalha de Berlim pelo general soviético Zhukov; 3) o general Mac Arthur, ocupante do Japão, foi derrotado na guerra da Coréia, depois de propor o lançamento de bombas atômicas na China; 4) o general Giap, inicialmente apenas professor de história, derrotou no Vietnã os maiores generais franceses e norte-americanos da época.
O papel destrutivo do imperialismo continuou mesmo após a queda da URSS, ocorrida devido à traição da sua burocracia corrupta, justificando a retomada nos dias de hoje da palavra de ordem “socialismo ou barbárie”, de Rosa Luxemburgo.
2 O maior inimigo da humanidade, o mais destrutivo e o mais corruptor, é atualmente o imperialismo norte-americano. Mas ele é celebrado pelos seus intelectuais domesticados, tanto na metrópole quanto na periferia, como defensor da democracia e da liberdade, assim como havia se erigido em defensor da “civilização ocidental e cristã” após a segunda guerra mundial, diante do chamado “perigo” soviético. (1) Hoje em dia, seus intelectuais se esforçam em eliminar do vocabulário acadêmico expressões como imperialismo, centro-periferia, Terceiro Mundo, socialismo, etc. (2) Chegaram perto de obter êxito, usando o rolo compressor do “pensamento único”, expressão cunhada por Ignácio Ramonet, do jornal Le Monde Diplomatique. Mas para aqueles que não são ingênuos, nem incautos, o terrorismo do chamado pensamento único não foi surpreendente. Dimitrov, o dirigente búlgaro da Internacional comunista, já alertava na década de 30 para a ressurreição do fascismo, ainda mais agressivo, a partir do “outro lado do Atlântico”, num futuro próximo, que já está aí. Por acaso George W. Bush e Ariel Sharon não seriam neo-nazistas fanáticos?
A crise do petróleo (1973-74) surpreendeu o capitalismo norte-americano diante do novo período depressivo mundial que se abriu acompanhado: 1) da expansão geopolítica da URSS em todos os quadrantes do Mundo; 2) da concorrência do Japão e da Alemanha nos mercados mundiais; e 3) das lutas de libertação nacional, que haviam levado a sua fragorosa derrota militar no Vietnã. Depois de alguns anos indefinidos (governo Carter), os EUA a partir de Ronald Reagan (1980-88) passaram a reagir aos citados desafios de maneira estratégica e planejada: retomada da corrida armamentista, reestruturação industrial toyotista (3), combinação de protecionismo e abertura comercial, desregulação das relações trabalhistas, financeira e de certos setores produtivos, um novo papel dos seus intelectuais domesticados, etc.
3 Um novo papel dos intelectuais no centro do sistema capitalista? A batalha das idéias foi fundamental à vitória da contra-revolução reaganiana, com destaque às duas idéias-força principais: neoliberalismo e globalização.
As idéias neoliberais são antigas, muito anteriores ao período Reagan, mas foram insistentemente divulgadas nos EUA por M. Friedman e aplicadas com resultados desastrosos na Argentina (Martinez de Hoz) e no Chile (Pinochet), como assinalei anteriormente (4). No período Reagan não foi aplicado nenhum neoliberalismo puro, mas sim combinado planificadamente com idéias keynesianas, como a política de corrida armamentista, sustentada por gigantesco endividamento público.
Entretanto durante os anos Reagan e nos seguintes, as universidades norte-americanas foram estimuladas a produzir “idéias” visando à retomada da hegemonia econômico-política dos EUA, que estava em erosão acelerada nos anos 70. A mais importante das idéias nasceu nas escolas de administração de empresas (Harvard, Yale, etc) e recebeu o nome de “globalização”, dando a entender que se vivia uma era de enfraquecimento das fronteiras nacionais e do surgimento de um mercado global no Mundo. Nada mais falso, se consideramos a constituição do Nafta (EUA, Canadá e México), o fortalecimento da chamada Fortaleza Europa, zonas comerciais continentais protegidas e as tentativas recentes na Ásia. Mas nada mais útil aos interesses dos EUA como justificativa para a abertura dos mercados estrangeiros aos seus interesses comerciais e financeiros.
Na verdade é necessário assinalar que no período depressivo mundial iniciado em 1973-74 vem ocorrendo no centro do sistema capitalista uma renovação tecnológica acelerada, apesar da lentidão do ritmo da produção, paralelamente ao ritmo mais veloz dos investimentos estrangeiros e do comércio internacional e ainda mais veloz das transações financeiras. Assim sendo as empresas tornaram-se muito mais agressivas, num salve-se quem puder, que tem acelerado falências, aquisições e fusões, fortalecendo algumas nações e enfraquecendo outras. Esse processo acelerado de concentração e centralização do capital está levando, em futuro próximo, ao aparecimento em cada setor econômico (telecomunicações, computadores, transporte aéreo, automobilístico, etc, etc) de cartéis ao nível da tríade (EUA, Europa e Japão), vale dizer de um hiperimperialismo como imaginou Kautsky no início do século XX (5).
4 A idéia de globalização foi criada pelos economistas de direita das universidades norte-americanas, o que estimulou os cientistas políticos da mesma posição ideológica a fabricar “teorias” que ao mesmo tempo fossem úteis aos seus patrões e também rendessem alguns dólares para suas pesquisas, especialmente após a queda da URSS.
Francis Fukuyama se tornou famoso com suas idéias de “fim da história”, analisadas e desmascaradas por P. Anderson. Samuel Huntington, seguindo as pegadas de B. Lewis (As raízes do ódio muçulmano, um título edificante, como se vê) produziu O choque de civilizações (1996), concentrando sua atenção no conflito entre duas delas, o Islã e o Ocidente. O livro conforme argumentação de Edward Said (6) é um verdadeiro “choque de ignorância” em relação à temática das civilizações que podem tanto estar em choque, como em colaboração. Huntington não sabe que o mundo carolíngeo, núcleo inicial do chamado “Ocidente”, recebeu a herança greco-romana através dos árabes.
Emm. de Martonne (A evolução da geografia) ressalta o papel dos geógrafos árabes, Ibn Khaldoun e Ibn Bathouta entre outros, como grandes viajantes e pontes entre a geografia da Antiguidade e a geografia dos tempos modernos. J. Brunhes, um dos pais da geografia francesa, mostrou a importância fundamental dos árabes na difusão dos sistemas de irrigação, comparando o norte da África (Marrocos etc) com a península ibérica. Mas afinal, quantos norte-americanos sabem que a arquitetura românica européia tem raízes árabes ou que a basílica de São Marcos, em Veneza, é arquitetura bizantina? Esta ignorância combinada com sua arrogância é responsável pela tolerância ao saque da biblioteca nacional de Bagdá, que guardava acervo de 4000 anos das civilizações da Mesopotânia.
É chocante imaginar que as universidades norte-americanas formem e estimulem esse tipo de intelectuais ignorantes e subservientes. O capitalismo norte-americano não só incorporou sob suas asas as pesquisas das chamadas Ciências exatas nos laboratórios das grandes empresas (GE, Bell, IBM etc), como está absorvendo as chamadas humanidades, levando ao desaparecimento dos intelectuais independentes (7).
5 O apodrecimento do capitalismo, mais visível nas fases depressivas da economia mundial, acelerou o processo de rebaixamento da universidade à subalternidade e à perda de independência, visível nos salários arrochados pagos aos professores, levando muitos a verdadeiros negócios paralelos.
No seu retorno do exílio (1977) M. Santos percebeu o quanto o Brasil havia piorado ética e moralmente, inclusive na Universidade. Tendo assistido e participado dos debates sobre a guerra do Vietnã que se travavam nas universidades norte-americanas (1973-74), havia ficado impressionado com a assembléia universitária que ocorreu no MIT (Boston) que cobrava de uma alta autoridade universitária explicações sobre financiamento de suas pesquisas, que resultavam em fabricação de balas militares ainda mais destrutivas do que as precedentes, numa grata demonstração de democracia. No seu último contato com a universidade norte-americana (Califórnia 1997-98) notou o alto grau de conformismo e de burocratização, quando professores vizinhos se comunicavam hierarquicamente por memorandos, sem se verem ou se falarem.
Ora, a comparação entre a Universidade brasileira que havia deixado em 1964 quando do seu exílio e a Universidade que encontrou quando do seu retorno provocava uma grande preocupação em M. Santos diante do aumento da produção “intelectual” que ele chamava de gastrointestinal; isto é, mestrados, doutorados e livres-docências destinados a uma ascensão acadêmica carreirista (8). A sua preocupação com o destino da universidade se intensificou nos últimos anos de sua vida, daí ter dado ênfase ao tema no seu discurso por ocasião do título de professor emérito da FFLCH-USP (1997), chamando a atenção dos intelectuais para o risco de instrumentalização do seu trabalho pelo mercado, pela militância, pela política, pelo público, pelas mídias e pela carreira. E neste último perigo assinalou a forte culpa da universidade, pela insistência excessiva em reuniões e relatórios burocráticos e a busca frenética dos professores de aparecer, ainda que os trabalhos oferecidos fossem os mesmos, multiplicados agora pelas inovações tecnológicas, que facilitam a reprodução maquiada de um único artigo em vários congressos. Esse carreirismo acaba obliterando o pensamento crítico e abrangente. (9)
No caso da FFLCH da USP temos a opção de darmos continuidade à obra grandiosa dos nossos mestres, como Antônio Cândido, Milton Santos, Aziz Ab’Saber, Florestan Fernandes entre outros, ou afundarmos no pântano dos FHC, Gianotti, Braz de Araújo, ex-marxistas arrependidos.
Armen Mamigonian é professor do departamento de geografia da USP. Este artigo foi publicado originalmente na revista Ciência Geográfica.
Notas
(1) Nos anos seguintes à guerra, paralelamente aos agressivos e fascistóides políticos norte-americanos (Forrestal e sobretudo os macartistas), proliferaram os pregadores evangélicos (lembrando os celebrizados na “Estrada do Tabaco” por Esrskine Caldwell), sendo que um deles percorreu o mundo divulgando a “sua” religião, o chamado “rearmamento moral”, que no Brasil recebeu o merecido comentário de Millor Fernandes: “Sabemos quem entra com as armas, mas cabe perguntar: quem entra com a moral?”
(2) J. Barrat-Brown, sociólogo inglês, já havia chamado a atenção nos anos 70 para o desprestígio intelectual e a revalorização do termo imperialismo conforme as conjunturas políticas.
(3) Reestruturação que intelectuais de esquerda moderadíssima (M. Storper, M. Scott, D. Harvey), chamaram docilmente de “flexibilização”, pós-fordismo e outras coisas do gênero.
(4) A. Mamigonian: “A América latina e a economia mundial: notas sobre os casos chileno, mexicano e brasileiro”, Geosul-UFSC, nº 28, 1999, pp. 139-151.
(5) A. Mamigonian: “Capitalismo e socialismo nos fins do século XX (visão marxista)”, Ciência Geográfica, AGB-Bauru, 2001.
(6) E. W. Said: Cultura e Política. São Paulo, 2003, pp. 42-47.
(7) Russel Jacoby: Os últimos intelectuais. Trajetória-EdUSP e O fim da utopia, Ed. Record, 2001.
(8) Entrevista à Geosul, nº 12/13 (1991-92), UFSC.
(9) A voz do professor emérito, Jornal da USP, 8 a 14.9.1997
EDIÇÃO 71, NOV/DEZ/JAN, 2003-2004, PÁGINAS 70, 71, 72