A ocupação militar do Iraque amontoa cadáveres de soldados invasores no pântano da guerrilha e dos atentados; a desvalorização do dólar reafirma a estagnação econômica (2003) na maioria dos países da zona do euro; o crescimento do PIB dos EUA bateu no pico de 7,2% (9/2003); o Japão contabiliza US$ 600 bilhões em reservas e a China, célere, ultrapassa os US$ 300 bilhões; a Bolívia radicaliza a generalização do sentimento continental antinorte-americano e antineoliberal; Bogotá – pela esquerda – derrota o candidato dos ianques.

Sapatos (ainda) sujos de sangue, nada restara ao secretário de Estado, Colin Powell, aparentemente resignado: “Se a América Latina quer ir à esquerda, que assim seja”; há quem queira ir pela direita, declarou. “Realismo”?

Sobre isso, vejamos um resumo das linhas centrais de um debate. No formidável Vinte anos de crise – 1919-1939, o historiador Edward Carr interpretava a gênese da ação realista como ênfase no poder irresistível das forças existentes e o credo na inevitabilidade das tendências.

Enxergando inépcia na soberania de outrem, o realismo na ideologia das potências hegemônicas vê na soberania dos Estados uma barreira ao gozo de sua própria posição de predomínio.
Trinta anos depois, Harry Magdoff, intitulou seu livro A era do imperialismo.

A economia da política externa dos Estados Unidos (Hucitec, 1978, p. 21). Lá dissera que as novas características da engrenagem monopolística estadunidense necessitavam de um poder de classe para além da opção “realista”.

Mas a utopia do idealismo wilsoniano seria sempre deplorada pelos geopolíticos realistas, assegura Joseph Nye (O paradoxo do poder americano), ideólogo e presidente do Conselho Nacional de Segurança do governo Clinton. Nye, todavia, assume posição “centrista” frente à evolução da política externa norte-americana: sem se constranger com a supremacia atual dos EUA tece em seu livro duras críticas ao “unilateralismo” republicano (Tony Judt, Política Externa).

Realismo e idealismo, do ponto de vista da condução doutrinária da América do Norte, em boa hora profundamente reexaminados por Cristina Pecequilo, A política externa dos Estados Unidos, e que aqui analisaremos apenas sob dois aspectos. Porque se não é novidade ver as duas vertentes como nucleares na trajetória da inserção imperial, importa situá-las nos padrões evolutivos e identificar com segurança as rotas de vôo da “águia”.

No sentido indicado, o livro é um sofisticado radar: a) o “ninho” (1776, 1861-65, 1865-1889, 1889-1918) reproduz constitutivamente uma nova nação, voraz porta-bandeira da experiência republicana, democrática, liberal e sempre opositora da velha Europa de raízes feudais; b) afora o breve interregno de Woodrow Wilson (1918-1921), no fundamental a tendência isolacionista, ou não “internacionalista”, foi reafirmada até 1945 (Pecequilo, p.p. 25 a 117). Ou seja, se por um lado a Doutrina Monroe (1823), e entre 1897-8 a expansão imperial para o Pacífico (Filipinas) e a Guerra Hispano-Americana (Cuba) marcaram um “padrão histórico” não anexacionista, mas regionalmente sistêmico, por outro: a) Democracia; b) Segurança Coletiva; e c) Autodeterminação, configuravam o núcleo idealista alternativo de Wilson (p. 94).

De outra parte, os EUA, não obstante sua entrada tardia na I Guerra Mundial (1917), foram fundamentais na resolução do conflito em favor da Grã-Bretanha e França e nos esboços de paz. Segundo Pecequilo, ali os EUA assumiram pela primeira vez a liderança ativa e correspondente à sua posição relativa na hierarquia do poder internacional (p. 99).

Insistindo – pois o mais recente da política externa dos EUA é mais conhecido –, não é exagero ver agora ecos das origens imperiais expansionistas: a) o direito divino à expansão; b) a predestinação geográfica; c) o ritmo de crescimento natural dos EUA; d) a expansão recompensada pelo trabalho virtuoso (p. 65). Impressionante: escutam-se hoje os discursos de G. W. Bush!

A reatualização permanente, desde o pós-II Guerra, dos princípios da política externa dos EUA – “inicialmente lançados por Wilson” (p. 122) –, caracterizam-se por: a) a construção da ordem e contenção; e b) a hegemonia e o “internacionalismo”. Ou ascensão, consolidação, e exercício da hegemonia, de “caráter peculiar”, diz Pecequilo. O que se visualiza em sua análise do período da “Guerra fria”, e no posterior.

O estudo de Cristina Pecequilo, que alcança o finalzinho da década passada, é um vasto trabalho de rigorosa pesquisa.