Talvez só uma lenda
Diziam da beleza dela
buscando sorvê-la,
buscavam saqueá-la.
Já que a selva é assim
ocorreu dela
saquear também.
Assim narcisos, vampiros
ao chegarem em seus castelos
já despidos
dando suspiros
pelo dever cumprido
ao se contemplarem no espelho
davam gritos de pavor
e horror
ao perceberem no pescoço
marcas dos dentes
da frágil donzela
possuída.
É por isso
que pouca gente
entende
aquela expressão
— jocosa dela —
sempre dita
a gargalhadas:
a de que tem
sangue azul
nas veias.
Pelo que viu e viveu
e de ouvir cantar,
na acesa polêmica
acerca
do formato da Terra,
partilhava da opinião
de que se tratava de uma esfera
azul e linda.
Mas as queimadas
das florestas,
as guerras e as pestes
tragando mares e nações,
as matanças
das crianças
nas escadarias
das Catedrais
foram esculpindo, nos olhos dela,
tristes vitrais.
Então os verdes deles,
como que espantados com
o que cintilavam,
foram se refugiando
nos ermos
perdidos de sua alma
e só fulguraram
em momentos raros
quando a aragem da felicidade
esvoaçava
os cabelos castanhos
dela.
Imagem errada dela
terá, entretanto,
o mundo
se julgá-la
frágil.
Outro dia
encontrou no centro da cidade
um animal ferido.
Depois de ser tratado
por uma semana,
o bicho readquiriu
a capacidade de voar e cavalgar.
Certa feita,
quando passeava pela praia,
viu uma estrela
desabar no oceano.
Ouvindo os gritos
de socorro daquele
animal cósmico,
mergulhou no mar,
arrastou a estrela
à branca areia da praia
e a devolveu ao céu.
Incandescentes, contagia de alegria
e lascívia as festas.
Girava girava girava
com sua saia de extravagantes matizes.
Se havia moços tristes,
se condoia daquilo.
Achava um despropósito
a vida ser desperdiçada assim
e os embriagava de vinho e gozo.
As iniqüidades,
a força e a maldade dos caras
e a fragilidade dos bons
a entristeciam,
faziam-na esquivar da vida.
Se ia ao mar,
evitava
as altas ondas
e ficava flutuando
nas marolas das enseadas.
Outra vez
agia de forma oposta:
entrava num bloco de carnaval,
se fantasiava dela mesma,
injetava alegria nas veias.
Girava girava girava
e num rodopio
caía em si
deprimida
de tantas gargalhadas.
Era uma mescla de eras,
de ervas.
Bruxa e princesa,
amante do vinho e da água,
do delírio e da realidade.
Não se sabe se ela existiu,
talvez seja uma lenda.
Verbos do Amor & Outros Versos – Adalberto Monteiro
Goiânia – 1997
Adalberto Monteiro, Jornalista e poeta. É da direção nacional do PCdoB. Presidente da Fundação Maurício Grabois. Editor da Revista Princípios. Publicou três livros de poemas: Os Sonhos e os Séculos(1991); Os Verbos do Amor &outros versos(1997) e As delícias do amargo & uma homenagem(2007).