Memórias de um crente pobre
Irmão Batuta é adepto de uma igreja protestante. Pobre, cursou até o terceiro ano do fundamental. Pedreiro de profissão, trabalha em obra desde que se lembra. Começou como servente, aprendeu o ofício de assentar tijolos e até hoje encara qualquer obra, de reforma de casa a construção de edifício.
Irmão Batuta fez-se crente por conta de um chamado. Passava diante do templo, ouviu música e entrou. Sentou lá no fundo e ouviu, após os cânticos, a preleção do ancião que ocupava o púlpito. Gostou do que viu. Sentiu-se tocado pelas palavras e pelo ambiente. Dali a semanas, batizou-se.
O novo adepto reparou que todos os homens vinham de terno para o culto. Todos bem asseados, calçados, camisas passadas a ferro e em ordem. Foi a um brechó na intenção de comprar jogo completo, incluindo sapato preto de couro. O dinheiro só deu pra camisa e paletó.
O conjunto tornou-se seu uniforme de orações. Bate-torce-vira-e-veste de duas vezes por semana, a camisa não suportou tanto suor e água sanitária: partiu-se nas costas. Irmão Batuta não se fez de rogado: cerziu-a uma, duas, três vezes, até que costas de camisa não mais existissem. Resolveu recortar a peça, de modo que ela só tivesse a frente, o que deixava suas costas descobertas. Metia as franjas por dentro da calça e vestia o paletó, escondendo a nudez parcial do tronco. Perfeito.
Um dia, irmão Batuta foi convidado a orar no interior do estado. Envergou seu uniforme de ver deus, subiu na van que o levaria do Planalto de Piratininga para o oeste, oito horas de viagem. Chegaram todos por volta das duas da tarde, sol alto, calor abafado. Foram almoçar. Na mesa, todos os rapazes e senhores tiraram o paletó. Menos, por razões óbvias, irmão Batuta. Vexado, o homem suava em bicas na mesa comprida e apinhada de comensais; a careca negra, molhada, luzia.
– O irmão não prefere tirar o paletó?
Era uma irmãzinha, nova, loirinha, de uns olhos cheios de cordialidade preocupada.
– Não, irmã, deus abençoe – foi a resposta de Batuta, já sem saber do que se servir, do arroz, ou das batatas.
Passados poucos minutos, a mocinha volta:
– O irmão não quer mesmo tirar o paletó? Olha que está muito quente.
– Não, irmã, deus abençoe.
Dali a pouco, olha ela de novo:
– O irmão tá suando muito. Não quer me dar seu paletó?
– Não, irmã, muito obrigado, deus abençoe!
Mais um pouco, ela volta:
– Irmão…
– Irmã! Irmãziinhaa… eu… não quero… tirar… o… PALETÓ! DEUS… ABENÇO-E!!
A tal da irmãzinha ficou estatelada uns segundos, mão no ar, piscando muito. Um dos presentes, de susto, errou a boca e meteu o garfo no nariz. Um outro engasgou-se com o suco. Um terceiro ficou a meio caminho entre a terrina de feijão e seu assento, segurando a concha, de bunda empinada, numa posição ridícula.
Suando muito, Batuta, já de pé, se enxugava com o guardanapo. Pediu licença, foi ao banheiro, tirou o paletó. Ainda abafado, despiu a meia camisa, depois as calças, a cueca, ficou nu, só de sapato. Pensou em Adão e o amaldiçoou: “Por causa de que foi morder aquela maçã, o infeliz? Ah, mas culpada é Eva, aquela…”. Lembrou da irmãzinha. Sentiu pena. Que culpa tinha ela de ele não ter camisa?
De repente, um susto: “E quando for a hora de dormir, meu Deus? Muitos num só quarto, como vai ser? Dormir de paletó, nesse calor?”
– Oh, Senhor, dai uma luz a esse seu servo!
Ficou um bom tempo ali, nu, de sapatos, ajoelhado, mãos juntas em comunhão. Como a única luz do ambiente fosse a do teto, resolveu vestir-se, sair de fininho e tomar uma boleia de caminhão de volta para a Capital, com o firme propósito de nunca mais aceitar convite para atividades sociais.
Não, não abandonou a igreja. Mas que ficou mais safo com Deus, ah, isso ele lá ficou.