A crítica de MARX à naturalização do histórico (final)
Na seqüência de sua análise, MARX (1987a: 7) afirma também que os economistas separam produção e distribuição e consideram a produção “como regida por leis eternas da natureza, independentes da história, ocasião esta que serve para introduzir subrepticiamente as relações burguesas como leis naturais imutáveis da sociedade in abstracto”.
Outro procedimento utilizado pelos economistas clássicos – e criticado por Marx – é o de análise unilateral da relação entre produção e consumo, isto é, entre oferta e demanda. Também esse procedimento faz parte do processo ideológico de naturalização das relações capitalistas de produção. Primeiramente afirma-se que toda a produção está direcionada para a satisfação nas necessidades dos seres humanos. Em seguida, quase que imperceptivelmente, essas necessidades são reduzidas a necessidades imediatamente individuais. Por fim, as necessidades individuais são vistas como tendo uma origem natural, não induzida. Na ótica dos economistas, a produção seria determinada pelo consumo, isto é, pelas necessidades naturais do indivíduo consumidor:
“Produção, distribuição, troca e consumo formam assim um silogismo com todas as regras: a produção é o termo universal; a distribuição e o câmbio são o termo particular e o consumo é o termo singular com o qual o todo se completa. Nisto há sem dúvida um encadeamento, porém não é superficial. A produção está determinada por leis gerais da natureza; a distribuição resulta da contingência social e por isso pode exercer sobre a produção uma ação mais ou menos estimulante; a troca se situa entre as duas como um movimento formalmente social e o ato final do consumo, que é concebido não somente como término, mas também como objetivo final, situa-se, para dizer a verdade, fora da economia, salvo quando, por sua vez, reage sobre o ponto de partida e inaugura novamente o processo.” (MARX, 1987a: 9-10)
Importante observar que o consumo, ou seja, o momento do processo no qual são satisfeitas as necessidades do indivíduo, é considerado, pelo raciocínio criticado por Marx, como um momento fora da economia, isto é, não determinado pela produção, distribuição e troca. O consumo, enquanto momento individual passa a ser visto, portanto, como determinado por características exclusivamente naturais. Esse raciocínio, menos do que resultado de um simplismo, consiste no resultado da concepção de homem, de indivíduo e de sociedade defendida pelos economistas clássicos. Trata-se de uma concepção na qual a organização da sociedade resulta, em última instância, do fato dos indivíduos buscarem a satisfação de suas necessidades e interesses particulares, sendo estes concebidos como naturais e não como produtos resultantes da forma dominante de produção de uma certa sociedade. Acreditamos não estar exagerando quando vemos na crítica de Marx a essa concepção dos economistas clássicos uma atualíssima referência para a crítica às concepções hegemônicas, nos dias de hoje, nos vários campos do pensamento, inclusive o do pensamento pedagógico. A concepção individualizante, porém, não se faz presente apenas quando as análises centram-se na abstração de indivíduos isolados, mas quando, mesmo analisando-se o coletivo e as relações interpessoais, as relações entre indivíduo e sociedade são interpretadas como resultando das necessidades individuais, tomadas como ponto de partida. A concepção individualizante é difundida de muitas formas entre elas através da difusão da ideologia do sucesso individual, que preconiza ser esse sucesso resultante da existência, no indivíduo, de algumas qualidades (quase poderíamos dizer “virtudes”) como espírito empreendedor, criatividade, otimismo, perseverança, autoconfiança, disposição para o trabalho, domínio de técnicas atuais (tanto aquelas relativas à produção propriamente dita como aquelas relativas ao gerenciamento do empreendimento) e, principalmente, crença no princípio de que a sociedade só pode progredir se forem respeitadas as leis do mercado.
Essa ideologia tem sido reiteradamente apresentada pelos meios de comunicação de massa, podendo ser citados aqui dois exemplos. O primeiro é o de uma matéria publicitária que era veiculada pela Rede Globo de Televisão, aos sábados à noite, antes do noticiário nacional, isto é, no chamado horário nobre da TV, intitulada “Gente Que Faz” – tendo sido patrocinada por um banco que, por ironia, acabou quebrando e sendo incorporado por um grupo financeiro multinacional. A essência desse programa consistia em mostrar histórias de indivíduos que, em busca de realização de algum “ideal” – não importando qual (montar um negócio, desenvolver um trabalho de assistência social etc) – enfrentavam todos os obstáculos e alcançavam o êxito. Ao final de cada história o locutor sempre encerrava dizendo: “Fulano é gente que faz”. Nele, o objetivo ideológico é claro: tratava-se de difundir exemplos de pessoas que, ao invés de ficarem criticando o governo, criticando o capitalismo, criticando a situação econômica etc, arregaçavam as mangas e faziam algo para alcançarem seu ideal.
Não é mero acaso que atualmente seja tão difundido em educação, o discurso voltado para as características definidoras de um bom professor, de um professor que reflete sobre sua prática e realiza um trabalho de qualidade, mesmo em condições adversas. Há uma variante desse discurso: ao invés de se falar num professor que é gente que faz, fala-se de uma escola onde os professores coletivamente, de preferência de mãos dadas com a comunidade, transformam aquela escola em exemplo de sucesso escolar. Em nome da superação dos discursos imobilistas é adotado um outro onde a passagem do fracasso ao sucesso torna-se uma questão de força de vontade de alguns indivíduos, ou melhor, de um coletivo, de uma comunidade. O resultado ideológico, pretendido ou não, é bastante claro: o descompromisso do Estado, a despolitização dos problemas educacionais e a abdicação do ideal de lutar por uma transformação radical da sociedade, pela superação do capitalismo e pela construção de uma sociedade socialista. A saída passa a ser as soluções locais, comunitárias, individuais.
Um segundo exemplo da difusão da ideologia do sucesso individual é o do programa Pequenas Empresas, Grandes Negócios, exibido pela mesma emissora. Nossa interpretação é a de que esse programa tem por objetivo principal difundir, entre os que são, ou desejam ser, microempresários não os conhecimentos técnicos, mas sim a ideologia segundo a qual deixar de ser trabalhador assalariado para tornar-se empresário é um sonho ao alcance de todos, bastando, para isso, que o indivíduo possua as virtudes acima arroladas. O ideário neoliberal (que retoma as idéias defendidas pelo liberalismo clássico) faz da difusão dessa crença uma arma de luta ideológica contra todos aqueles que apontam para o agravamento das desigualdades sociais produzido pelo capitalismo mundializado.
Segundo o ideário neoliberal, trata-se de educar os indivíduos de maneira a torná-los melhor preparados para disputar seu lugar ao sol no mundo da competitividade. Para isso as virtudes mencionadas são indispensáveis. Mesmo depois de todas as críticas à noção de escola redentora, à idéia de que a educação escolar teria o poder, por si só, de criar uma sociedade democrática, a educação volta novamente a ser encarada como capaz de produzir a superação da exclusão social. Com essa concepção procura-se convencer as pessoas de que a exclusão não seria um processo inerente à economia neoliberal. Tudo resume-se em criar uma nova mentalidade nos indivíduos, adequada ao novo século que se aproxima.
O discurso ideológico contemporâneo não pode, é claro, ser comparado ponto a ponto ao discurso liberal dos séculos XVIII e XIX; mas a essência é a mesma, a despeito de todos os artifícios retóricos e simbólicos atualmente utilizados. O ambiente ideológico do mundo neoliberal é constituído por discursos aparentemente não articulados entre si, até pelo fato de serem utilizados em momentos distintos. Assim, por exemplo, para a defesa das políticas neoliberais é apresentado, de forma agressiva, o pressuposto de que a sociedade deve ser organizada com base na auto-regulação produzida pelas leis do mercado. No plano ético-filosófico são difundidos os livros sobre as virtudes (para adultos e crianças), a partir da crença de que o aperfeiçoamento da sociedade depende basicamente do desenvolvimento da moralidade individual. No plano sócio-político o aperfeiçoamento da sociedade democrática é apresentado como dependente também da adoção, por todos os indivíduos, de atitudes regidas por princípios como solidariedade e tolerância.
No terceiro Manuscrito Econômico-Filosófico de 1844, Marx já havia caracterizado que, no capitalismo, os diversos círculos da atividade humana tornam-se alienados e, na realidade, o que determina as atividades sociais são as relações econômicas. Assim, os economistas, ao retirarem de sua análise da sociedade qualquer princípio moral externo à lógica de reprodução do capital, apenas estão deixando de lado a falsa e hipócrita moral burguesa:
“Se pergunto ao economista: obedeço às leis econômicas se consigo dinheiro com a entrega, com a venda de meu corpo ao prazer alheio? (os operários fabris em França chamam a prostituição de suas esposas e filhas de enésima hora de trabalho, o que é literalmente certo); não atuo de modo econômico ao vender meu amigo aos marroquinos? (e a venda direta dos homens na qualidade de comércio de recrutas, etc., tem lugar em todos os países civilizados), assim o economista me responde: não ages contra minhas leis, mas olha o que dizem a senhora Moral e a senhora Religião; minha moral e minha religião econômicas não têm nada que censurar-te. Mas em quem tenho eu que acreditar então, na economia política ou na moral? A moral da economia política é o ganho, o trabalho e a poupança, a sobriedade, mas a economia política promete satisfazer as minhas necessidades. A economia política da moral é a riqueza de boa consciência, de virtude, etc. Mas como posso ser virtuoso, se não sou? Como posso ter boa consciência, se não sei nada? Tudo isso está fundado na essência da alienação: cada uma aplica-me uma medida diferente e oposta, a moral aplica-me uma e a economia política outra, porque cada uma destas é uma determinada alienação do homem e fixa um círculo particular da atividade essencial alienada; cada uma delas se relaciona de forma alienada com a outra alienação (…) Assim o senhor Michel Chevalier acusa Ricardo de fazer abstração da moral. Ricardo, no entanto, deixa a economia política falar sua linguagem própria. Se esta não fala moralmente, a culpa não é de Ricardo. M. Chevalier faz abstração da economia política enquanto moraliza, mas necessária e efetivamente, faz abstração da moral, enquanto pratica a economia política.
A relação da economia política com a moral, quando não é arbitrária, casual e por isso infundada e não científica, quando não é uma aparência, mas quando é considerada essencial, não pode ser senão a relação das leis econômicas com a moral. Que pode fazer Ricardo se esta relação não existe ou se o que existe é antes o contrário? Além disso, também a oposição entre economia política e moral é só uma aparência, e assim sendo, não há oposição alguma. A economia política apenas expressa ao seu modo as leis morais.” (MARX, 1978a:19)
A naturalização das relações capitalistas de produção e a naturalização do mercado mundializado, através do procedimento de considerar a produção organizada com o objetivo de atender às necessidades individuais, leva também à concepção de que a ética é um problema de moralidade individual, cabendo ao indivíduo procurar agir moralmente, estabelecendo limites à lógica do lucro. Mas como pode falar em ética e virtude uma sociedade que não se escandaliza com a venda do trabalho, isto é, com a subordinação da atividade de trabalho ao seu valor de troca? Uma sociedade que não se escandaliza com o fato da produção de alimentos ser determinada pela lucratividade? Uma sociedade que não se escandaliza com o fato de a educação e a saúde transformarem-se em mercadorias?
Como afirmou Marx na passagem acima citada, mesmo quem defenda um discurso moralizante, ao agir no âmbito econômico não pode deixar de levar em conta a lógica do capitalismo, cuja moral é a da acumulação, da rentabilidade e do lucro. Em última instância, a lógica econômica do capitalismo não é harmonizável com princípios éticos, como solidariedade, fraternidade e justiça. Mas o capitalismo precisa da coexistência dos dois tipos de discurso, o econômico-pragmático e o discurso moral, pois o segundo é necessário particularmente para evitar o total esfacelamento do tecido social que resultaria da radicalização do próprio princípio liberal, segundo o qual o progresso social resulta da busca incessante de satisfação das necessidades e interesses pessoais.
A questão das necessidades e interesses individuais está, portanto, na base de sustentação do edifício ideológico liberal e neoliberal, fato esse que fica evidente na crítica de Marx à maneira como os economistas clássicos analisavam a questão das relações entre produção, distribuição, troca e consumo. Vimos que, nos Grundisse, Marx critica os economistas por naturalizarem a produção e por apresentá-la como voltada para a satisfação do consumo individual. A inconsistência dessa concepção reside no escamoteamento do fato de a produção não ter como objetivo principal a realização dos indivíduos, mas sim o aumento de riqueza, o aumento de capital. Além disso, as necessidades e interesses individuais são, também eles, determinados pela forma de a sociedade organizar sua produção.
O procedimento de naturalização, que situa nos indivíduos a origem de processos que abarcam a sociedade como um todo, acaba também por naturalizar o indivíduo e, nesse sentido, torna-se incapaz de compreender o processo histórico e social de formação da individualidade. MARX (1987a:83-84) mostra com clareza esse processo, ao analisar como os economistas clássicos interpretam, enquanto efetivação de um atributo da natureza humana, a produção de uma sociedade na qual o trabalho é trocado por mercadorias, tornando-se, nessa sociedade, a troca de mercadorias a relação social universal e tornando-se o valor de troca a mediação universal entre os homens. Os economistas clássicos acreditavam que o interesse geral seria uma resultante do fato de cada indivíduo perseguir seu interesse particular. Marx criticava essa concepção, afirmando: nessa “guerra de todos contra todos”, onde cada um perseguiria seu próprio e egoísta interesse particular, a resultante final seria não uma afirmação do interesse geral, mas sim uma “negação geral”, pois as ações de cada indivíduo constituiriam um obstáculo à satisfação dos interesses de outros indivíduos.
Assim, para Marx, a relação entre interesse particular e o todo da sociedade deveria ser vista sob outro ângulo: o de que o interesse particular já constitui, em si mesmo, algo determinado pela reprodução da sociedade:
“A redução de todos os produtos e de todas as atividades a valores de troca pressupõe tanto a dissolução de todas as rígidas relações de dependência pessoais (históricas) na produção, como a dependência recíproca geral dos produtores. Não somente a produção de cada indivíduo depende da produção de todos os outros, mas também a transformação de seu produto em meio de vida pessoal passa a depender do consumo de todos os demais. Os preços são coisas antigas, o mesmo que a troca; porém tanto a determinação progressiva de uns, através dos custos de produção como o predomínio da outra sobre todas as relações de produção se desenvolvem plenamente pela primeira vez, e seguem desenvolvendo-se cada vez mais plenamente, somente na sociedade burguesa, na sociedade da livre concorrência. O que Adam Smith, à maneira tão própria do século XVIII, situa no período pré-histórico e faz preceder a história, é sobretudo o produto desta. Esta dependência recíproca se expressa na necessidade permanente da troca e no valor de troca como mediador generalizado. Os economistas expressam este fato do modo seguinte: cada um persegue seu interesse privado e somente seu interesse privado, e desse modo, sem sabe-lo, serve ao interesse privado de todos, ao interesse geral. O válido desta afirmação não está no fato de que cada um perseguindo seu interesse privado se alcança a totalidade dos interesses privados, isto é, o interesse geral. Desta frase abstrata se poderia melhor deduzir que cada um obstaculiza reciprocamente o interesse do outro, de tal modo que, em lugar de uma afirmação geral, resulta deste bellum omnium contra omnes (guerra de todos contra todos); isto sim uma negação geral. O ponto verdadeiro está sobretudo em que o próprio interesse privado é já um interesse socialmente determinado e pode ser alcançado somente no âmbito das condições que fixa a sociedade com os meios que ela oferece; está ligado, por conseguinte, à reprodução destas condições e destes meios. Trata-se dos interesses dos indivíduos particulares; porém seu conteúdo, assim como sua forma e os meios de sua realização, estão dados pelas condições sociais independentes de todos.” (MARX:1987 a:83-84)
Como fica evidente nessa citação, Marx já havia caracterizado no século passado – portanto, bem antes do tão propalado discurso da globalização –, que uma conseqüência intrínseca à lógica de expansão do capital é de tornar cada indivíduo dependente do conjunto da produção econômica pela mediação do valor de troca que se universaliza, derrubando todos os outros laços humanos que possam ser obstáculo ao domínio do capital. A reprodução do capital, isto é, a produção econômica, determina o conteúdo dos interesses individuais, sua forma e também os meios de sua realização. Por essa razão, não têm consistência as tentativas de justificar e defender a sociedade regida pelas leis do mercado através do argumento de essa sociedade organizar-se de maneira a atender aos interesses e às necessidades individuais. Esse argumento parte de uma análise unilateral, como se o momento do consumo, ou seja, o momento da satisfação da necessidade pessoal, fosse algo que estivesse fora da esfera das determinações econômicas. Esse argumento não contempla o fato de que se, por um lado, precisa existir o consumo individual para que haja a produção, por outro, a produção determina os padrões culturais de satisfação até mesmo das necessidades individuais de origem biológica e cria necessidades inteiramente novas, sem qualquer origem biológica. Isso sem entrar aqui no caso, também analisado por Marx, da existência do consumo produtivo, ou melhor, do consumo necessário ao próprio processo de produção.
Na mesma linha de raciocínio, entendemos não ter consistência o ideário que afirma serem, em nossa sociedade, a produção e a difusão de bens culturais determinadas pela demanda, ou seja, pela “democrática satisfação das preferências individuais”. Repetimos o argumento apresentado por Marx: se, por um lado, não existe produção sem consumidor, por outro lado, as necessidades e as preferências do consumidor vão sendo historicamente determinadas pela produção.
Após analisar as formas pelas quais o consumo produz a produção, Marx focaliza, nos Grundrisse, as três formas pelas quais a produção produz o consumo:
“Pelo lado da produção a isto corresponde: 1) Que ela proporciona ao consumo seu material, seu objeto. Um consumo sem objeto não é um consumo; em conseqüência, neste aspecto a produção cria, produz o consumo. 2) Porém não é somente o objeto que é criado pela produção para o consumo. Ela dá também ao consumo seu caráter determinado, seu finish [acabamento]. Do mesmo modo que o consumo dava ao produto seu finish como produto, a produção dá seu finish ao consumo. Em suma, o objeto não é um objeto em geral, mas sim um objeto determinado, que deve ser consumido de uma maneira determinada. A fome é fome, porém a fome que se satisfaz com carne cozida, comida com garfo e faca, é uma fome muito diferente da que devora carne crua com ajuda de unhas e dentes. Não é unicamente o objeto do consumo, mas também o modo de consumo, que a produção produz não somente objetiva mas também subjetivamente. A produção cria, pois, o consumidor. 3) A produção não somente provê um material à necessidade, mas também uma necessidade ao material. Quando o consumo emerge de sua primeira forma imediata e de sua rudeza natural – e o fato de retardar-se nessa fase seria o resultado de uma produção que não superou a rudeza natural – é mediado como impulso para o objeto. O objeto da arte – da mesma maneira que qualquer outro produto – cria um povo sensível à arte, capaz do gozo estético.” (MARX, 1987a:12) Essa análise feita por Marx, da dialética entre produção e consumo vai frontalmente contra a naturalização das necessidades humanas. A abordagem naturalizante dos economistas clássicos vê a produção social organizada para atender às necessidades naturais dos indivíduos.
Nessa concepção, o ponto de partida que determina o social são as necessidades individuais, vistas como naturais, primárias, imediatas, não produzidas. Marx desfaz essa concepção naturalizante ao mostrar que entre as necessidades e o consumo existe a mediação da produção. Mediação essa que se torna determinante do consumo ao criar os objetos para o mesmo, as formas pelas quais esses objetos serão consumidos e a necessidade que impulsiona o indivíduo a consumir esses objetos. Essa análise de Marx é válida tanto no sentido do processo de humanização, isto é, de desenvolvimento do gênero humano (o surgimento, ao longo da história, de necessidades cada vez mais elevadas) como também no sentido específico do processo de alienação das necessidades na sociedade capitalista, onde a produção de mercadorias leva à produção de necessidades alienantes e consumistas nos indivíduos.
A referência de Marx à produção da arte, da obra de arte, como, ao mesmo tempo, a produção da sensibilidade estética, do “consumo” estético, mostra que a análise marxiana da dialética entre produção e consumo aplica-se tanto à produção material propriamente dita, como à produção intelectual, isto é, à produção não material. Assim, entendemos ser legítimo aplicar essa análise à educação em geral e também à educação escolar em particular. Já há algum tempo temos defendido a tese de que a educação escolar deve ser vista não de forma unilateral, não como um processo de satisfação das necessidades espontâneas dos indivíduos, mas sim como um processo que produza necessidades cada vez mais elevadas nos indivíduos, cada vez mais enriquecedoras. A educação enriquece o indivíduo fazendo com que ele se aproprie de determinados conhecimentos e fazendo com que essa apropriação, por sua vez, gere a necessidade de novos conhecimentos que ultrapassem, cada vez mais, o pragmatismo imediatista da vida cotidiana e aproximem o indivíduo das obras mais elevadas produzidas pelo pensamento humano.
A produção dessas necessidades não se realiza sem que o processo educativo conduza o indivíduo ao interior do universo de determinado conhecimento que se pretenda transmitir. O exemplo da obra de arte, dado por Marx, é bastante ilustrativo, com a ressalva de que não basta a existência da obra, é preciso que a sociedade, como ele disse, “crie um povo sensível à arte, capaz do gozo estético”. A sociedade atual é pródiga em mecanismos que fazem o contrário, isto é, criam entre a maioria da população e os bens culturais elevados da humanidade uma barreira quase intransponível, constituída pela difusão maciça de lixo cultural e pela precariedade da educação escolar.
O lema do “aprender a aprender” não considera o processo descrito por Marx, onde a produção cria o consumidor. Numa sociedade onde a difusão dos bens culturais é mediatizada pelo valor de troca, isto é, pela lucratividade imediata, a afirmação de que os indivíduos que aprendam a aprender terão todo acesso ao conhecimento através dos múltiplos e modernos meios de transmissão de informações e de conhecimentos, não passa de uma afirmação reveladora de grande ingenuidade ou, o que é pior, de grande cinismo. Quanto mais a difusão do conhecimento for regida pelas leis de mercado, mais superficializado e imediatista vai se tornando o conhecimento oferecido aos indivíduos e mais superficiais e imediatistas vão se tornando as necessidades intelectuais desses indivíduos.
Temos, assim, um círculo vicioso onde o objetivo do lucro imediato vai gerando produtos mais ampla e facilmente consumíveis e, por sua vez, as necessidades e as preferências dos indivíduos vão empobrecendo-se cada vez mais. Nesse contexto, defender o “aprender a aprender” é decretar a derrota do saber e contribuir decisivamente para o processo de esvaziamento dos indivíduos. Processo esse gerado pelo fato do valor de troca ser a mediação universal na sociedade capitalista.
Newton Duarte é doutor e Livre Docente em Educação pela UNICAMP e professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESP/Araraquara. Texto referente ao item 2 do capítulo 3 do livro: Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações pós-modernas e neoliberais da teoria vigotskiana. Campinas: Autores Associados. 2000 – p. 128-157.
Bibliografia
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1978b. “Para a crítica da economia política”. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. São Paulo: Abril Cultural, p. 135-257 (Coleção Os Pensadores).
1987a. Elementos fundamentales para la crítica de la economia política (Grundrisse – 1857-1858). 2ª ed. México: Siglo XXI, vol. 1.
1987c. “Crítica do direito do Estado de Hegel”. In: Escritos de juventud. México: Fondo de Cultura Económica, p. 319-438.
KANT, I. 1994. Ideas para una Historia Universal en Clave Cosmopolita y otros escritos sobre filosofia de la historia. 2ª ed. Madri: Tecnos.
EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 69, 70, 71, 72, 73, 74