Bolívia – Lições da insurreição popular de outubro
Os acontecimentos de setembro e outubro de 2003 já estão inscritos na história de Bolívia com traços indeléveis. A historiografia atual, para dar-lhes a valorização adequada – historicamente falando – exigiria um certo distanciamento do tempo. Contudo, os tempos políticos bolivianos exigem ser valorizados mais rapidamente, sobretudo se pensarmos que em outubro a história não acabou nem Carlos Mesa é o último mandatário. Haverá novos governos e novos personagens preparados por processos políticos até que se chegue a uma radical transformação da sociedade boliviana. Esta, não pode permanecer paralisada neste sistema capitalista injusto, explorador e excludente da maioria esmagadora de sua própria gente. E nem a Bolívia pode continuar sendo uma republiqueta à mercê do imperialismo e suas transnacionais.
Primeiramente deve-se apreciar em que consistiu o terremoto social de outubro – que derrubou um presidente eleito de acordo com as regras demoburguesas e que contava com respaldo de todas as “cartas democráticas” da OEA e de outras agências submissas ao império; apesar do respaldo incondicional do Departamento de Estado, através de sua embaixada em La Paz. Um traço sobressalente é que as massas estavam nas ruas combatendo, com a inquebrantável decisão de alcançar seus objetivos que, nos últimos dias da convulsão, foram concentrados num só: derrubar Sanchez de Lozada.
Essa eclosão social teve vários nomes: levante, sublevação, rebelião, insurreição, revolução e até manifestação estrondosa, revolta, agitação. Obviamente, os últimos termos são totalmente impróprios. Portanto, é evidente a necessidade de uma precisão do termo para saber do que estamos falando e da definição, de acordo com isso, de uma conduta política correta.
Todos os elementos presentes nessa mobilização permitem que se fale com maior pertinência de uma rebelião ou insurreição, em qualquer caso, popular. Poderia até ser utilizado o termo revolução. Os bolcheviques o utilizaram para definir os acontecimentos de 1905 que não obtiveram a queda do czarismo nem modificaram a super-estrutura e nem, muito menos, a estrutura da Rússia de então. Com eles, estreou, isto sim, uma forma de poder político: os sovietes. Poderíamos, ainda, citar os exemplos que a história registra nos clássicos do marxismo, como as revoluções de 1830 e 1848 em Alemanha, França etc. Todavia, antes de qualquer um deles – ninguém discute – há o da primeira revolução proletária: a Comuna de Paris de 1870, onde, inequivocamente, uma classe substitui outra no domínio da sociedade – principal sintoma de uma revolução política.
Com vistas ao estouro social de outubro preferimos o conceito de insurreição por corresponder muito mais ao conteúdo e aos objetivos das forças sociais e políticas que, nesse caso, questionam uma determinada conformação do poder político. Corresponde, igualmente, tanto à memória histórica das massas bolivianas quanto ao estado e disposição da consciência social numa determinada conjuntura. Noutras palavras, a insurreição – quando o questionamento pertence ao povo oprimido e explorado – é o conjunto de ações e movimentos, armados ou não, das classes e massas populares para derrubar um governo (às vezes somente um presidente e sua equipe) e com isso tentar pôr fim a um modo de governo contrário aos interesses e idéias dos insurretos. Por conseguinte, a Insurreição de Outubro não admite nenhum outro qualificativo, a não ser o de Popular. Chamá-la de frustrada, inconclusa e até de atraiçoada não contribui para esclarecer nada. Pelo contrário, pode predispor, prematuramente, para atitudes inadequadas ou para a formação de juízos que não têm nada a ver com a realidade.
Para realizar uma insurreição se requer um marco social e político que não pode ser definido de outra maneira que não seja como uma situação revolucionária. Numa definição ligeira, ela se dá quando: a) os de baixo já não querem continuar na situação em que estão vivendo até aquele momento e os de cima já não podem continuar mandando como sempre o fizeram. São traços da situação revolucionária, quando: b) se apresenta uma extrema agudização dos sofrimentos e necessidades insatisfeitas, sobretudo das massas populares; e c) uma notável elevação da atividade política das massas (greves, paralisações, marchas, manifestações, comícios, bloqueios etc) que envolve paulatinamente setores habitualmente passivos ou desinteressados.
A situação revolucionária é um fenômeno político complexo que abrange aspectos objetivos e subjetivos. São objetivos, sobretudo, os acima mencionados. Os subjetivos se referem, fundamentalmente, aos graus de disposição e à preparação (orgânica e articulada) das classes progressistas e forças revolucionárias. A disposição é um elemento subjetivo, do âmbito da psicologia e, no caso que tratamos, da psicologia coletiva. Contém, sobretudo, elementos volitivos e afetivos; em outras palavras, são próprios da situação revolucionária a vontade de lutar e a coragem para enfrentar o adversário em qualquer circunstância. Essa disposição inabalável se apoderou das massas. Faltou organização e articulação do centro dirigente; os principais líderes atuaram por outros juízos. Por sua psicologia e concepção, não demonstraram predisposição de trabalhar em conjunto; prevalecia, pelo contrário, um indissimulado afã de protagonismo individualista. Este defeito esteve presente ao longo de todo o processo insurrecional. Os três núcleos dirigentes – Malku Quispe, na Rádio San Grabiel de El Alto; Evo Morales e o MAS em Cochabamba; e COB, com Jaime Solares à frente – praticavam, o que, com a melhor boa vontade, se pode denominar uma competição por jogar o papel de vanguarda dirigente. Nunca se chegou a uma concordância que satisfaça os requisitos da batalha popular. O mais reticente foi Felipe Quispe e o menos concentrado, Jaime Solares. Ao fim e ao cabo, cada um deles refletia sua formação pessoal e sua inserção classista.
Nesta análise é imprescindível sublinhar a atividade da COB ao jogar papel de articuladora, ignorando as omissões. Depois do histórico Amplo de Huanuni (17-09-03), com a decisão de participar nas manifestações do 19 e formular a consigna principal do movimento: “a saída de Sanchez de Lozada”, a COB, por meio de greve geral por tempo indeterminado, unificou nacionalmente o protesto. Longínquos centros mineiros, bem como outros pontos dos vales e do oriente, se somaram ao movimento convocado pela COB – demonstrando o restabelecimento de sua imagem. Contudo, nem as articulações, nem as convocatórias – quem quer que seja que as tenha feito – superaram a enorme espontaneidade e improvisação ocorridas quando as massas insurretas foram acionadas. O final vitorioso foi permitido, na verdade, por uma convergência imposta de fato pelo ritmo e a orientação geral da luta nas ruas. Pode-se afirmar que as massas não prestaram atenção em quem orientava as mobilizações – só lhes interessava alcançar os objetivos que haviam fixado.
Outra problematização, ainda, é necessária: no início da luta havia muitos objetivos e consignas; porém, conforme avançava o processo e a crise amadurecia as consignas foram se condensando. Se na fase inicial predominaram as que se referiam a temas relativamente concretos, com um acento muito setorial ou regional, no período de resolução da crise as consignas políticas se impuseram com alto grau de abstração (propriedade do gás, sua industrialização; Alca etc) para serem arrematadas numa só: a renúncia de Sanchez de Lozada. Um elemento que jogou papel catalisador do movimento foi a ação premeditada do governo que buscou, primeiro, desgastá-lo (“podem marchar dois meses!”) e, depois, simplesmente esmagá-lo a sangue e fogo (“há que se meter bala!”). As mortes de Warista, Ventilla e, sobretudo o massacre de 11 e 12 em El Alto (em dois dias cerca de 50 mortos), fizeram transbordar a fúria popular. A brutalidade não os amedrontou, os encorajou.
Como todo processo social, a insurreição possui premissas, marcos e regularidades indissimuláveis. Os que a buscam conscientemente devem ter a habilidade de saber detectá-los com oportunidade e ponderação. A premissa principal é que deve haver um nível crítico de consciência política refletido na assimilação, pelas massas, da necessidade de se oporem e modificar as políticas imperantes; identificar seus autores e executores e tomar consciência de que os procedimentos de solução que estabelecem os detentores de poder não apenas são não permanentes como também são ardilosos (diálogos, mesas redondas, acordos setoriais etc). Na Bolívia opor-se ao neoliberalismo e assinalar o seu caráter nocivo para o país e o povo, em 1985, era domínio de alguns. Em 1996, embora tivesse aumentado a consciência e a quantidade de pessoas que se opunham à privatização das empresas estatais estratégicas, sua força foi insuficiente para derrotar os planos de Sanchez de Lozada. A frente formada por este era extensa e sólida. Contava com o apoio da oposição – oposição dentro do próprio esquema político e que não questiona de substancial (ADN, MIR).
Um dos problemas, que se repete com maior freqüência, é que sobre a base do terreno demonstrado, a insurreição começa com ações espontâneas que surgem aqui e ali sem que nenhum centro as organize. Isso confirmou o Outubro boliviano e não é nenhuma novidade – aconteceu antes na história dos confrontos sociais bolivianos. Depois das ações espontâneas, o movimento vai se incorporando a novos contingentes e se organiza, sobretudo com ações solidárias. É notável a participação de certos setores territoriais, sobretudo na cidade de El Alto e nas conhecidas ladeiras da cidade de La Paz. O elemento humano dessas áreas tem uma dupla característica: primeiro, são pessoas de parcos recursos, a massa da pobreza, e o seu modo de vida os coloca, de maneira genérica, entre os trabalhadores (operários, uma ampla gama de assalariados – por exemplo, professores, funcionários públicos); pessoas de muitos ofícios, artesãos e outros, até assalariados das classes médias. São trabalhadores e pobres e, ao mesmo tempo, têm uma referência nacional-étnica: são aimará na sua maioria. Um problema não resolvido é saber em que grau a referência (complexa categoria predominantemente objetiva) é assumida pelas pessoas e os grupos, sobretudo primários, como identidade (categoria da subjetividade individual e grupal) numa formação social como a boliviana.
A partir de muitos fatos, concluímos que a condição social é assumida sobre a base da identidade nacional-étnica. Contudo, é preciso levar em consideração a diversidade de situações dos indivíduos e grupos que influem de diferentes maneiras sobre o desenvolvimento e a organização dessas complexas formações sócio-psicológicas. São maneiras diferentes, conforme transcorram esses processos no campo e na cidade. Nas regiões nacional-étnicas de maior homogeneidade, como acontece no campo, o processo de formação da auto-identidade ocorre com maior facilidade. Na cidade, ao contrário, o ser social (no conceito de Marx) é mais complexo, tanto pela composição nacional-étnica quanto pela variedade da formação sócio-econômica. Em todo caso, o estabelecimento da identidade nacional-étnica, como a formação da consciência de classe não tem sólidas sustentações, nem materiais nem ideológicas, como para gerar no sujeito, política e socialmente ativo, disjuntivas torturantes. A partir de qualquer uma de suas situações a sua luta aponta para os mesmos objetivos, seja a partir do sindicato e de outras organizações sociais, ou a partir daquelas que tiveram uma referência nacional-étnica. O que interessa é o resultado final: predominou o conteúdo social, adotando uma forma patriótica. Em Outubro prevaleceu, pois, a consigna do “gás para os bolivianos” que supera, evidentemente, as fronteiras das identidades nacionais.
A forte tônica social foi reforçada de maneira notável pelo ingresso na liça dos destacamentos do proletariado mineiro. Essa presença reviveu conhecidos episódios das lutas sociais bolivianas. A característica central, e a diferença, ao mesmo tempo, em relação às marchas de protesto já ocorridas sobre La Paz, foi que os mineiros tinham com que se defender. Tradicionais e profissionais manejadores da dinamite contribuíram para que o destacamento do exército, localizado em Patacamaya, vacilasse e, finalmente, abrisse caminho aos marcheiros mineiros, junto a alguns milhares de outros que haviam sido retidos pelo destacamento militar nesse trecho do caminho. O episódio de Patacamaya tem importância maior do que a que lhe foi atribuída: a presença mineira – que de simples protesto passou a uma espécie de ofensiva armada e, apesar das primeiras baixas (fala-se em 7 mortos) – modificou a qualificação da marcha sobre La Paz. Em segundo lugar está o peso do número de pessoas: calcula-se que em 16 de outubro havia mais de 5000 pessoas, sem contar os mineiros e cooperativados mineiros.
Em terceiro lugar, a mudança da posição dos comandantes do destacamento militar de aproximadamente 400 efetivos. Apesar de ter havido cerca de 7 baixas, frearam o seu acionar mortífero na madrugada de 17 e se negaram a continuar matando as pessoas. Haviam recebido o apoio (ou a ordem) de um “comando paralelo” que rompeu com o ministro de Defesa Sanchez Berzain e com o próprio presidente Sanchez de Lozada. Houve um tenebroso cálculo: eliminar a área mesmo à custa da morte de 2000 pessoas. Isso foi demais para a idéia da “reação proporcional” à qual se apegava o “comando paralelo”. A situação das forças armadas em Outubro ratifica o que se conhece pela experiência boliviana e internacional. Para que um movimento popular ou revolucionário triunfe uma parte daquelas deve se neutralizar ou passar ao largo dos insurgentes; em síntese, deve se produzir uma divisão em seu seio, deixar de funcionar a verticalidade do mando e quebrar o princípio de subordinação ao poder constituído. Quando as colunas populares de Putacamaya, presididas pelos mineiros, haviam retomado o avanço a La Paz, para “tomar o Palácio Quemado” e que havia sido permitido pelo exército, Sanchez de Lozada soube que sua sorte estava selada.
Na insurgência de Outubro também é preciso sublinhar o papel das mulheres e da juventude. Como já mostramos anteriormente nenhum setor, nem nacional nem social, pertencente ao próprio povo, esteve ausente ou ficou neutro na batalha. Sempre se afirmou não haver revolução ou insurreição ou grande ação popular uma igual à outra. Em Outubro, pode-se falar da significativa presença feminina. As mulheres se destacaram por estarem nas primeiras linhas de combate, nas marchas, na organização da solidariedade e nas manifestações da resistência pacífica, como as greves de fome. Nesta última forma de luta, sobretudo, mostrou-se a decisão feminina e o apagamento de ambas as diferenças: as sociais e as de nacionalidade.
Obviamente, a participação juvenil foi muito importante, porém, para não prolongar nossa análise, destacaremos que o grupo juvenil mais numeroso, mais organizado e com mais consciência dos objetivos da mobilização foi sem dúvida alguma, o da Universidade Pública de El Alto.
A ascensão de Mesa à presidência da República, pelas vias constitucionais, mais que uma mudança de fundo é uma vitória popular que conseguiu derrubar Sanchez de Lozada.
Apesar do cenário não ser o mesmo, pois a presidência de Mesa é resultado de uma insurreição popular que não buscou de maneira ex profesa essa saída, mas que foi uma admissão madura, por parte das massas, porque não se podia ir mais adiante, quase tudo permanece em seu lugar. Os quadros do chamado “gonismo” ainda dominam a situação e os planos anteriores continuam vigentes. A oligarquia criola e o imperialismo foram severamente insultados pelas massas, porém, conservam seu poder e influência e se aprontam, a todo vapor, a contra-atacar e, se necessário, derrubar Mesa.
Este, não dá mostras de ter se desprendido de suas origens e de sua inserção de classe e sua formação ideológica. Todavia, é prisioneiro das pressões de ambos os pólos da confrontação social. O povo manteve vigentes suas bandeiras e suas reivindicações. Para o povo não se trata de ter um presidente lúcido, mestre em história, hábil comunicador e apresentável do ponto de vista dos direitos civis e humanos. Trata-se de derrotar efetivamente o neoliberalismo, resgatar a soberania nacional, particularmente o domínio dos hidrocarburetos, dirigir-se ao verdadeiro desenvolvimento nacional para honrar os interesses nacionais e populares; reconquistar uma verdadeira democracia de massas e projetar a Bolívia numa verdadeira integração latino-americana. A Insurreição de Outubro demonstrou que isso é possível; faz falta a preparação das massas no sentido orgânico e programático, unir-se programática e instrumentalmente para que não se caia no meio do caminho novamente.
Marcos Domich é secretário-geral do Partido Comunista da Bolívia. Tradução de Maria Lucilia Ruy.
EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 56, 57, 58, 59