O ano de 2003 começou no Brasil sob o signo da esperança. Em toda a história do país, jamais ocorrera alteração tão profunda na composição do seu Governo central quanto aquela, em que um operário, fundador e dirigente de um partido de esquerda, o PT, com a participação aberta dos comunistas do PCdoB, chegara à Presidência da República.

Um acontecimento de transcendência mundial.

Passado um ano, a esperança não se desfez, setores populares chegam a pensar que agora é a hora de o prometido acontecer; mas o governo da mudança não se apresentou como se esperava. Sua orientação foi objeto de disputa. Mudanças ocorreram, é verdade, mas em aspectos importantes prevaleceu a continuidade da política do governo passado. Daí é que ganha relevo examinar os desafios e perspectivas de 2004.

Circunstâncias especiais compuseram o quadro em que se deu a vitória de Luiz Inácio em 2002. O modelo neoliberal perdia força no mundo. Na América Latina provocara um cortejo de fracassos. O Brasil, estagnado, vivia sob a ameaça de uma crise institucional, que poderia levá-lo à insolvência, o que certamente ocorreria, segundo grupos dominantes, se Lula fosse eleito presidente.

A campanha de Lula embandeirou-se da idéia da mudança, com a qual galvanizou o povo. No quadro existente, entendeu corretamente ser necessário ampliar o espectro das forças aliadas e buscou o apoio de setores ao centro e ao centro-esquerda, como o PL. O PT, partido-líder da campanha, sentiu a necessidade de assumir compromissos com a ordem econômica dominante, e o fez unilateralmente, declarando-se disposto a cumprir os contratos feitos sob a égide do FMI.

Quando as urnas foram abertas, configurou-se resultado disforme. Estrondosa vitória teve o candidato mudancista à presidência, Lula, mas as forças que o apoiaram ficaram longe de ganhar a maior parte dos governos estaduais: não conseguiram vitória em estado algum dos mais importantes e nem elegeram a maioria no Congresso. Tornou-se irrecusável a busca de entendimentos para se formar maioria no Parlamento e na sociedade – sem o que não se governaria. Nessa situação, os defensores da linha do “cumprir os contratos” ganharam força.

O Governo Lula surgiu, assim, com um duplo compromisso: com o povo, onde a ênfase era por mudanças, desenvolvimento, emprego, afastamento da linha neoliberal e resgate da soberania nacional; e com os setores dominantes, onde o acento estava na estabilização, no respeito ao sistema imperante, no cumprimento dos contratos vigentes.

A atividade governamental esteve desde seu início, marcada pela disputa, tensionada por políticas diferentes. Fatos, medidas, caminhos e opiniões apareciam ligados a dois processos contraditórios, que se desenvolviam entrelaçados, mas distintos.

Uma mudança de logo aconteceu, e importante: as privatizações foram suspensas, o desmonte do Estado brasileiro, nesse aspecto fundamental, foi contido. O espectro da venda e entrega das estatais estratégicas, das que restaram, e que eram as maiores, deixou de existir. Entretanto, na definição do rumo para enfrentar o endividamento externo e supostamente retomar o desenvolvimento do país, o Banco Central e o Ministério da Fazenda transformaram-se em pólos de decisão e definiram uma política macro-econômica que, com variações, continuava a linha do governo passado. Persistiram as políticas monetária e fiscal recessivas e os grandes superávites primários, obtidos com drásticos cortes de investimentos e despesas e com enorme esforço exportador – tudo para garantir pagamento de juros e dívidas.

Resultou que os investimentos no país foram os menores dos últimos anos, enquanto a balança comercial registrou saldo recorde. Os compromissos internacionais foram “honrados”, chegaram fartos elogios do FMI e 2003 findou-se com o Brasil crescendo, aproximadamente, zero.
No plano externo o Brasil passou a praticar outra política, de corte soberano, independente, definida em função dos interesses nacionais. Em questão central e simbólica, como a da guerra ao Iraque, rompeu com a política de subalternidade que em geral teve no passado frente aos EUA e tomou posição contrária à agressão americana.

Perfilou-se em posição igualmente oposta à do governo Bush em várias outras oportunidades, como na postura de amizade a Cuba, na solidariedade ativa à Argentina e no apoio à legalidade na Venezuela, ameaçada por agências americanas especializadas em desestabilizar governos não subalternos.

Um novo quadro de aliados o Brasil procura formar. Prioriza suas relações com a América do Sul, empenhando-se pelo fortalecimento do Mercosul e procurando estender sua atuação a outros países hemisféricos, como os do Pacto Andino. Amplia horizontes, aprofundando relações com China, Índia, Rússia e África do Sul, aproximando-se de outros países da África e do Oriente Médio, não deixando de entender-se com Nações européias e mantendo atitude de respeito e reciprocidade com os Estados Unidos. No concerto internacional, toma iniciativa de organizar, junto com a China e a Índia, o G-21, que apareceu pela primeira vez em setembro de 2003, em Cancun, em reunião da Organização Mundial do Comércio, quando impediu que acordos leoninos fossem selados no âmbito da OMC. Embora sem romper com a Alca, consegue esmaecer o ímpeto americano por fundá-la rapidamente, repondo-a em discussão, reexaminando-a, subordinando-a a outras iniciativas.

A movimentação de Lula no círculo internacional tem sido um fator de fortalecimento da multilateralidade no mundo e tem colocado o Presidente do Brasil como um político de projeção intercontinental, que participa, lidera e articula blocos de força e toma posição independente frente aos grandes temas da atualidade.

Os resultados da política econômica não foram bons. As taxas de juros foram mantidas entre as mais elevadas do mundo, por vezes a mais elevada. Em juros, desembolsamos R$145,18 bilhões em 2003, um pouco mais que 27% do montante despendido em 2002, que foi de R$114 bilhões, e 68,8% a mais que o pago em 2001, que foi R$86 bilhões. (1) O país continuou estagnado, as grandes estatais, mesmo com dinheiro em caixa, continuaram sem poder fazer os investimentos que podiam e precisavam, por conta de acordo com o FMI, que conta seus investimentos como despesas a serem cerceadas. A formação bruta do capital fixo caiu 7% relativamente a 2002.

E o crescimento zero, ou um pouco mais que isso, fez a economia brasileira cravar 25 anos seguidos sem crescimento, ou crescimento pífio. Uma lástima.

As conseqüências sociais da continuidade desse quadro recessivo não foram pequenas. O espectro dos serviços básicos prestados à população – deteriorado sob Fernando Henrique –, em geral assim permaneceu, ou mudou pouco. O poder aquisitivo da população continuou caindo – com a extraordinária exceção dos banqueiros, situados entre os mais bem aquinhoados do mundo. A classe média não se recuperou, segue extorquida, sofrendo as conseqüências de uma reforma previdenciária que lhe tirou direitos, pagando alta e crescente carga tributária e injusta tabela de imposto de renda não atualizada. O desemprego brutal, herdado do governo passado, aumentou, no registro mais pungente dos problemas não resolvidos, mormente porque Lula, durante a campanha eleitoral, se comprometeu com a criação de dez milhões de empregos.

À política econômica continuísta credita-se, em geral, a relativa estabilidade da moeda, a queda do risco-Brasil, o crédito internacional reaberto e, sobretudo, a inflação contida e baixa. São indicadores inequivocamente positivos, mas que não devem ser superestimados. Tampouco devem ser menosprezados – tanto mais que setores dominantes alardearam na campanha de 2002 que o país cairia no caos se Lula fosse eleito Presidente. O caos não veio e o Governo Lula demonstrou capacidade em manter a situação sob controle. Mas os indicadores referidos, positivos que são, carecem de maior significado se examinados na sua relação com a retomada do desenvolvimento do país, que não se deu. E a retomada do desenvolvimento é o desafio maior à frente do Governo Lula, a perspectiva mais acalentada por todos. E é um anseio que tem raízes em nossa história.

Desde o fim da II Guerra Mundial até a década de 70, nosso país foi dos que mais cresceram no mundo – foi o que mais cresceu, em diversos anos. Naquelas três décadas, crescemos mais que o Japão, mais que os Estados Unidos. E de repente deixou de crescer, ou passou a índices de crescimento absolutamente deploráveis. Em 1977, foi iniciada uma trajetória de declínio que até hoje não parou. A década de oitenta foi toda perdida, a de noventa, também. E terminou o terceiro ano do século XXI com a economia praticamente estagnada. Analistas da cena internacional são mais ou menos unânimes em apontar que nas próximas três ou quatro décadas os países do chamado Bric (Brasil, Rússia, Índia e China) terão um lugar proeminente no mundo. A Rússia, depois de amargar grave crise, cresceu agora em 2003, em torno de 7%. A Índia, da mesma forma. A China, seguindo caminho próprio e desconsiderando recomendações do FMI, em 2003 cresceu a 9,1% de seu PIB, percorrendo 24 anos consecutivos de crescimento, à espantosa média de 8 a 9% ao ano. E o Brasil, o outro país do Bric, é o único que não cresce, há 25 anos. Por onde se vê que a retomada do desenvolvimento é nosso desafio central. Recomeçar a crescer, significa irmos ao encontro da nossa identidade, da nossa tradição de Nação que trabalha, mas que quer desfrutar dos frutos de seu trabalho. Daí por que um governo como o de Lula, tem que pôr em tensão suas forças para promover a retomada do desenvolvimento, com criação de emprego e inclusão social. O ano de 2004 aparece como aquele em que ocorrerá essa retomada.

No âmbito governamental, todos aparentemente expressam acordo com a importância e urgência desse crescimento, mas as forças da dualidade tensionam-se, ao apresentarem proposições diferentes no seu encaminhamento prático.

A política emanada do Ministério da Fazenda e do Banco Central prega o ajuste fiscal e o controle das dívidas como fatores que criariam as condições de estabilidade no país e de risco baixo, a partir do que o mercado teria confiança em investir e promover o desenvolvimento. O Estado entraria com participação complementar.

Raciocínio diverso formulam setores desenvolvimentistas, dentro e fora do governo, tendo mais visibilidade os que se situam no BNDES, no Ministério de Minas e Energia, no Itamarati. Para esses, não será o controle do endividamento que propiciará o desenvolvimento, mas o desenvolvimento que levará ao controle da dívida. E a lição que os desenvolvimentistas sustentam, e que emana da experiência dos que crescem, é a de que, para crescer é absolutamente indispensável destravar os investimentos. E os nossos estão travados. O risco-Brasil caiu sistematicamente nesse primeiro ano do Governo Lula; mas, apesar disso, o Investimento Externo Direto também caiu – a tal ponto que em 2003 ficou por volta de US$10,4 bilhões, abaixo dos $US14,1 bilhões de 2002 e bem abaixo dos US$24,7 bilhões de 2001.

Situam-se como animadoras as perspectivas de 2004, no que diz respeito às possibilidades da retomada do desenvolvimento. O BNDES, que sob o Governo Lula voltou a ser um banco financiador de desenvolvimento brasileiro, está armado de um orçamento de R$47,3 bilhões para investir em setores produtivos. Da reunião da Cúpula das Américas, em Monterrey, no México, neste início de ano, vem a informação, com a qual se comprometeu o Diretor-Gerente do FMI, Horst Kohler, de que investimentos estatais em infra-estrutura serão de agora em diante excluídos das contas de déficit público dos países da América Latina. Na verdade, computar como despesas os investimentos das estatais, como faz o FMI, é uma punição clamorosa para com os países em desenvolvimento. A nova postura, quando se concretizar, pode ajudar a desencadear o processo de investimentos entre nós, a partir da iniciativa estatal, que poderá despertar mais investimentos da iniciativa privada.

O Instituto de Finanças Internacionais, em Washington, informou que os investidores ali organizados planejam colocar no Brasil US$21,5 bilhões, 106% a mais que o efetuado em 2003. Embora quase a metade desse total seja de capital financeiro, US$11 bilhões serão destinados ao setor produtivo, 37,5% a mais que em 2003. Por outro lado, o IBGE já revela crescimento dos investimentos a partir do terceiro trimestre do ano passado. Na construção civil, em setembro de 2003, esse acréscimo foi de 5,1%, relativamente a agosto do mesmo ano. E, mais expressivo ainda, foi o aumento da absorção doméstica de bens de capital (produção, mais importação, menos exportação de bens de capital), que chegou a 11,4% em setembro, relativamente a agosto. A tônica dos discursos do Presidente Lula tem sido a de que 2003 foi o ano de plantar e 2004 será o de colher. Na verdade, há razões para se acreditar que em 2004 poderemos reencontrar a senda do desenvolvimento. Entretanto, questões importantes ainda serão objeto de disputas, algumas das quais devem ser realçadas. Em primeiro lugar, o Acordo com o FMI. A prorrogação do dito acordo pegou o próprio Lula de surpresa, quando fazia viagem internacional e declarara que decisão sobre o assunto não seria tomada com ele fora do Brasil. E foi. Patenteada ficou a desenvoltura com que o núcleo do Ministério da Fazenda e do Banco Central toca, por conta própria, a política macro-econômica. Como está, o Acordo é compromisso de cunho recessivo, que pode atrapalhar, e muito, o esforço desenvolvimentista.

Em segundo lugar, a implantação de uma política industrial. Esta parece nunca ter contado com o apoio da equipe econômica, que desconfiaria de demasiado intervencionismo estatal em semelhante proposição. Agora, entretanto, já no início de 2004, duas notícias importantes apareceram. O ministro do Desenvolvimento enfatizou a necessidade de uma política industrial e expôs o ponto de vista de seu Ministério a respeito de quatro setores prioritários, onde o Brasil conta com vantagens comparativas para se desenvolver: bens de capital, software, semicondutores e fármacos e medicamentos. E o Ministério da Fazenda aceitou essa posição, admitindo até incentivos fiscais para setores determinados, dentro de uma política que seria lançada a partir de abril.

Em terceiro lugar vem o tratamento da dívida pública. O pagamento dos serviços e das amortizações dessa dívida tem sido gargalo histórico que tem impedido o crescimento brasileiro nas últimas décadas. O tema da dívida tem sido sempre acompanhado por uma ofensiva ideológica tão estridente quanto falsa. Dizem que qualquer ressalva quanto à disposição de “honrar” os compromissos poderia nos retirar o apoio externo, afugentar os investimentos e nos levar à estagnação. Na verdade, a estagnação está aí, há 25 anos. A despeito de todas as mesuras que fazemos aos credores dessa dívida, e apesar das montanhas de juros que pagamos em dia, nenhum apoio recebemos para alavancar nosso crescimento. O “desastre” que sucederia a países que decretassem a moratória ou reformulassem sua dívida não sucedeu, por exemplo, com o México, com a Rússia ou com a Argentina, que voltaram a crescer a níveis elevados depois da moratória que tiveram de fazer. No caso brasileiro, o assunto merece exame mais minucioso. Mas não se pode desconsiderar que enquanto alguns defendem, dentro do governo, o compromisso inquestionável com os esquemas das dívidas, forças há que defendem, também dentro do governo, como o PCdoB – e brasileiros há que formulam, apoiando o governo, como Celso Furtado –, que o Brasil deve questionar o esquema atual de pagamento de sua dívida. Celso Furtado chega a dizer ser necessário preparar uma reformulação da dívida e uma moratória, enquanto o ex-presidente José Sarney, também governista, em recente entrevista afirmou ser preciso “rediscutir os prazos e a estrutura da dívida”, sem o que (…) estamos realmente condenados a renunciar ao destino nacional”. (2)

Em quarto lugar, a substituição de importações. O Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial calculou que o impacto da substituição de importações em nossa balança comercial, feita em duas rodadas – em 1999 e depois em 2002 e 2003 –, foi de US$10 bilhões, US$5 bilhões em cada uma. No período, as importações caíram de US$58 bilhões, em 1998, para US$48 bilhões, em 2003. A Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores (Anfavea) informa que a importação de veículos saiu de 22,6%, em 1998, e passou a 5,3%, em 2003. (3)

Estudos mostram, contudo, que semelhante substituição de importações deu-se por conta exclusivamente do câmbio, configurando o que os analistas chamam de “substituição fácil”. Com a economia crescendo em 2004, seguramente haverá aumento da importação, mas especialistas assinalam que a substituição ocorrida foi ainda “muito restrita” e que “o requisito básico para substituição de importações é investimento”. (4)

Em quinto lugar, o estímulo à construção civil. Entre os quatro setores prioritários apresentados pelo Ministério do Desenvolvimento como estratégicos, e já vistos acima, não está o da construção civil. Pela capacidade de incorporar mão-de-obra e pela enorme demanda que tem o país na construção de moradias, a construção civil não pode ficar fora dos setores prioritários para receber investimentos. A Fundação João Pinheiro, de Belo Horizonte, fez levantamento sobre o déficit de residências no Brasil, chegando ao número de 6,7 milhões. A região de maior carência é o Nordeste, que precisa de 40% do total, sendo que o Sudeste, a mais rica, necessita de 35% do mesmo montante. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo realizou um evento no final do ano passado onde apresentou um plano para construção de 4,5 milhões de moradias, a ser realizado em cinco anos, a um custo de R$88 bilhões, que geraria 3,6 milhões de empregos diretos. Entre 1998 e 2000, a participação média da construção civil no PIB brasileiro foi de 13,2% – igual à de uma região como o Nordeste. Ademais, a agilização da construção civil pode ser feita sem incremento de importação, vez que o setor importa apenas 7,1% do que usa. (5)

Em sexto lugar, a continuidade do fomento à exportação. Esta, apesar dos índices que conseguiu recentemente, não pode ser considerada como elevada e comparada com a de países semelhantes no resto do mundo, como tem observado, com insistência, Delfim Neto.

Por último, o debate no plano das idéias. Aspecto curioso que se observa nas disputas dentro do Governo Lula é certa tendência dos que seguem a política macroeconômica passada de resgatarem também o “pensamento único” no qual o Governo de FHC se esmerou. Para eles não há outro caminho para o país senão o que defendem e fazem predominar. Não se dão conta de que adotaram critérios controversos, de baixa confiabilidade, como o risco-Brasil, definidos pelos setores financeiros estrangeiros, especificamente pelo Banco JP Morgan, para orientar investimentos financeiros de curto prazo, não para tratar de desenvolvimento econômico de qualquer país. O risco-Brasil baixo pode sinalizar o despertar dos investimentos, mas de forma alguma é um indicativo seguro. Tanto assim que entre julho de 2002 e dezembro do mesmo ano o risco-Brasil chegou ao recorde de 2.440 e, apesar disso, o Investimento Externo Direto (IED) cresceu. Por outro lado, enquanto entre dezembro de 2002 e outubro de 2003 o risco-Brasil caiu sistematicamente, o IED também caiu, a tal ponto que em 2003 ficou por volta de US$ 8 bilhões, bem abaixo dos US$ 13 bilhões estimados no início do ano, e muito abaixo do registrado nos últimos dois anos (US$24,7 bilhões em 2001 e US$14,1 bilhões em 2002).
O “pensamento único” freqüentemente se choca com a realidade. O desempenho da Argentina no período recente é outro ponto que deixa embaraçados os que defendem essa política econômica.

Porque a Argentina, seguindo os ditames do FMI, foi à insolvência e viu sua produção cair 20%. Em 2003 seguiu uma política própria, a partir da moratória a que foi obrigada a fazer. Sem pagar a dívida externa há dois anos, conseguiu controlar a inflação no patamar de 4%, terminou 2003 com um crescimento de 7,3%, projeta 5% de crescimento para 2004, fez o desemprego cair, a arrecadação subir e as exportações e importações aumentarem. Não tem aceito os altos superávites primários que o FMI tenta – e não consegue impor por lá –, tenta e consegue impor por aqui.

Mas, se há indícios concretos de que o Brasil poderá encontrar o caminho dos investimentos e, portanto, do desenvolvimento neste ano de 2004, essa possibilidade poderá se frustrar caso não haja alterações na política macroeconômica do governo. E essas não advirão sem o contributo das pressões sociais, variadas e amplas. Isto nos remete à posição das forças populares e da esquerda frente ao governo Lula.

Sem dúvida há setores do espectro da esquerda brasileira que já não apóiam o governo Lula. Os setores organizados mais expressivos, entre os quais PT, PCdoB e PSB, naturalmente o apóiam, e manifestam, em variados graus, críticas a aspectos de sua atuação. Digno de nota é o entendimento que o PCdoB tem dessa questão.

Estando, desde 1989, há 23 anos, nas campanhas e na eleição de Lula, o PCdoB sente-se engajado no maior projeto de inspiração popular que já apareceu em nosso país, de enorme significado – caso seja vitorioso ou derrotado –, para os brasileiros e as forças progressistas e de esquerda, no Brasil, na América Latina e no mundo. Por mais que sejam duras as críticas a políticas recessivas de governo, como as feitas acima, o PCdoB vê o sentido estratégico de apoiar esse projeto que levou um operário à presidência da República, outro operário à presidência da Câmara dos Deputados, comunistas e lideranças sindicais a altos cargos, como nunca aconteceu na história do Brasil e da América do Sul. De fato, as forças de esquerda que hoje participam da administração federal dela sempre foram alijadas.

No caso específico do PCdoB, com seus 81 anos de existência, a maior parte na clandestinidade, havia até um ponto de vista, oriundo de fase anterior do movimento comunista internacional, contrário à participação dos comunistas em governos municipais, estaduais, quanto mais federal, visto como forma condenável de administrar máquinas capitalistas. As novas circunstâncias internacionais e o amadurecimento do movimento comunista no mundo e no Brasil levaram a uma mudança de posição, permitindo aos comunistas poderem ajudar decisivamente na jornada pela eleição do Presidente Lula e concordarem com a própria presença de comunistas no governo constituído.

Seria estranho se esses estreantes no exercício de governo central estivessem demonstrando grande experiência e saber gerencial. Estão tendo, sim, oportunidade ímpar de conhecer e enfrentar os problemas do país, não apenas no discurso, único recurso que lhes era possível utilizar, mas na prática da busca de alternativas concretas, para a qual a dureza dos métodos excludentes até então usados, nunca lhes permitiu qualquer aprendizado.

O projeto que levou Lula à Presidência não pode ser enfraquecido, nem contestado, nem muito menos negado por problemas – ainda que verdadeiros, e ainda que graves –, acontecidos no seu primeiro ano de prática governamental, sem que isto signifique cumplicidade objetiva com a direita brasileira e internacional. Deve ser sim, apoiado, o que não significa abrir-mão, inclusive para ajudá-lo, do espírito crítico, do debate no plano das idéias e da promoção de ações de massa para tensioná-lo pelas mudanças.

Haroldo Lima é membro do Comitê Central do PCdoB e exerce as funções de Diretor da Agência Nacional do Petróleo (ANP).

Notas
(1) Dados do Banco Central. Ver Folha de S. Paulo 31.01.04 e Vermelho 30.1.04
(2) Folha de S. Paulo, primeira terça de janeiro de 2004.
(3) Valor, 6 de janeiro de 2004, A3.
(4) Idem.
(5) Gazeta Mercantil, 7 de janeiro de 2004.

EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15