Futebol , racismo e identidade cultural
A Editora Mauad acaba de lançar uma belíssima reedição da obra clássica de Mário Filho O Negro no Futebol Brasileiro, publicada originalmente em 1947. Trata-se, sem dúvida, do principal livro de referência sobre a gênese e formação do futebol de massas no Brasil. O rigor investigativo, a erudição e a riqueza de informações que marcam a pesquisa do cronista sobre o período formativo do nosso futebol, situam a sua obra no âmbito da historiografia e sociologia dos esportes, no mesmo plano dos grandes textos interpretativos da formação social brasileira, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, ou Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro.
Mário Filho – cujo nome, merecidamente, crismou o monumental estádio construído no bairro Maracanã, Rio de Janeiro, para a Copa do Mundo de 1950 – traça um interessantíssimo painel do desenvolvimento do futebol brasileiro nas primeiras décadas do Século XX, enfocando, principalmente, a sua prática e organização no Distrito Federal de então, mas abarcando, igualmente, a sua evolução em outras regiões do país, como São Paulo e Bahia. Para tal, o autor empreendeu ampla pesquisa em jornais da época e documentos oficiais de associações desportivas. Sua principal fonte, no entanto, foram as centenas de entrevistas realizadas com os principais atores diretamente envolvidos na prática e consolidação do novo esporte: jogadores, dirigentes, associados e torcedores.
Esta opção metodológica situa O Negro no Futebol Brasileiro como obra precursora do recurso sistemático à História Oral como fonte da História Escrita, prática que só viria a se disseminar mais amplamente nas Ciências Sociais brasileiras décadas depois. Foi essa opção que permitiu a Mário Filho reconstituir uma tradição oral que, nas suas próprias palavras, era “muito mais rica, muito mais viva do que a escrita dos documentos oficiais, graves, circunspectos” ou dos jornais que “diziam quase nada”.
Qual é a história simultaneamente desvelada e construída pelos primeiros praticantes do futebol no
Brasil, que nos é resgatada pela cativante narrativa de Mário Filho? É a de um esporte praticado quase que exclusivamente por clubes de engenheiros e técnicos ingleses e suas famílias no início do Século XX. Do fascínio pelo novo esporte por jovens da elite metropolitana que conviviam com os ingleses e os seus clubes. Da organização de clubes para a prática do futebol nos bairros da elite social da Capital, que se tornaram, igualmente, importantes centros de convivência das “famílias de bem”. Da precaução dos organizadores dos primeiros campeonatos de futebol em não marcar jogos nos dias das regatas de remo para não ficarem sem público. Da rápida expansão do gosto pela assistência do futebol, fazendo com que fossem os organizadores das regatas de remo os que passassem a ter que remarcar suas disputas para não coincidir com os jogos do recém-chegado “esporte bretão”. Da gradual substituição de profissionais liberais e funcionários públicos por acadêmicos e candidatos a bacharel na base dos principais times de futebol (já que nos marcos da estrutura amadorística que regulava a competição desportiva de então, estes dispunham de mais tempo para treinar). Da virtual monopolização dos campeonatos pelos “grandes clubes” dos bairros de elite, relegando os poucos clubes participantes com sede na periferia ou nos subúrbios (e que contavam com a participação de alguns jogadores negros, mulatos ou de origem popular) à condição de simples sparrings, eternamente condenados à derrota nas competições.
A narrativa de Mário Filho conta, igualmente, como esta estrutura elitista que dominou futebol brasileiro nos seus primórdios veio a ser quebrada. Na Capital Federal, os marcos desta ruptura foram os triunfos do Vasco da Gama no campeonato de 1923, do São Cristóvão no de 1926, e do Bangu no de 1933. Todos eram clubes de origem popular, com sedes no que então se consideravam “bairros periféricos” da cidade, e contavam com numerosos jogadores negros, mulatos e de origem humilde.
Destes clubes, como é sabido, apenas o Vasco conseguiu se consolidar na elite do futebol brasileiro (o próprio conceito de “elite” passando a ser referido não mais à condição social dos atletas ou associados do clube, mas ao seu desempenho esportivo em seguidas competições). Mas o destaque dado à ascensão do Vasco em 1923 na narrativa de Mário Filho deve-se ao fato desta ter operado uma “verdadeira revolução” no futebol brasileiro. A aguda sensibilidade social do cronista, reforçada pelos depoimentos colhidos nas entrevistas, captou o significado mais profundo e duradouro desta revolução:
“Os clubes finos, de sociedade, como se dizia, estavam diante de um fato consumado. Não se ganhava campeonato só com times de brancos. Um time de brancos, mulatos e pretos era o campeão da cidade. Contra esse time, os times de brancos não tinham podido fazer nada. Desaparecera a vantagem de ser de boa família, de ser estudante, de ser branco. O rapaz de boa família, o estudante, o branco, tinha de competir, em igualdade de condições, com o pé-rapado, quase analfabeto, o mulato e o preto, para ver quem jogava melhor.”
No futebol, assim como na vida social e na História em geral, todo processo de ruptura se depara com a reação das forças dominantes que se sentem ameaçadas. No caso da ascensão do Vasco em 1923, esta reação se deu em duas frentes. A primeira, ainda com o campeonato em andamento, se processou na própria assistência dos jogos. A escalada vitoriosa de um clube de origem popular trouxe uma afluência de novo tipo às nobres arquibancadas dos clubes tradicionais. O próprio Mário Filho relata como havia se tornado costume entre “famílias de bem”, após assistir missa na Igreja da Matriz da Glória no Largo do Machado, se dirigir, ainda trajando as suas melhores roupas de Domingo, para o estádio do Fluminense nas Laranjeiras, para acompanhar a performance dos seus filhos e amigos nos jogos de futebol. Com a ascensão do Vasco, essa seleta assistência passava a ter de disputar lugar nas arquibancadas com imigrantes portugueses, suas famílias, colegas e empregados. Para a elite da época, tratava-se de inaceitável subversão da hierarquia social. Guardadas as devidas proporções históricas, era como se, nos dias de hoje, uma turba de farofeiros invadisse as bancadas do Jockey Club atrapalhando o desfile de gala da Alta Sociedade em pleno Grande Prêmio Brasil. A primeira reação elitista a essa “invasão” tomou a forma de um curioso e deslocado antilusitanismo, que se espalhou rapidamente entre os adeptos dos “clubes grandes” de então (Fluminense, Flamengo, Botafogo e América). Tratava-se de uma espécie de reedição farsesca do jacobinismo antilusitano do início da República no Brasil. Mas o alvo do antilusitanismo republicano era a monarquia, ao passo que a sua nova versão futebolística se voltava contra o imigrante, por parte de uma elite formada historicamente em convívio íntimo com a corte imperial. Por isso, as diatribes lançadas contra “o português” mal disfarçavam a sua real carga de preconceito social.
A segunda reação foi de natureza institucional, e muito mais séria. Os quatro clubes tradicionais acima citados se retiraram da Liga Metropolitana que organizara o Campeonato vencido pelo Vasco e fundaram a Associação Metropolitana de Esportes Atléticos (AMEA). Sob a presidência do patrono do Fluminense, Arnaldo Guinle – que o próprio Mário Filho caracterizou como “uma espécie de Príncipe de Gales do esporte brasileiro” –, a AMEA adotou controles rígidos sobre a origem social dos atletas dos clubes filiados, incluindo a investigação minuciosa dos seus meios de sobrevivência e a aplicação de questionários extensos para aferir o seu grau de escolarização. O objetivo, segundo o autor, era expurgar os atletas negros, mulatos e de origem humilde que haviam subvertido o monopólio elitista do futebol que imperara até então. O Vasco não aceitou essas condições e permaneceu na Liga Metropolitana, gerando a disputa de dois campeonatos de futebol paralelos na Capital Federal.
Alguns autores críticos da obra de Mário Filho sustentam que a ausência de referências explícitas à questão racial nos documentos da AMEA não permitiria caracterizar os seus desígnios como “racistas”. A verdadeira polarização se daria entre a defesa de formatos amadores ou semiprofissionais para o esporte. Ocorre, no entanto, que a polêmica em torno do amadorismo está diretamente ligada à questão da origem social dos praticantes do futebol. Já vimos como as estruturas do amadorismo privilegiavam os estudantes e candidatos a bacharel na prática do esporte (e dada a composição étnica da nossa estratificação social, este era um universo quase que exclusivamente branco nas primeiras décadas do Século XX). O ponto forte da interpretação de Mário Filho, respaldada nos depoimentos dos principais participantes no processo que resultou na cisão do futebol carioca, reside, precisamente, no destaque dado ao entrelaçamento material e simbólico dos preconceitos raciais e sociais. Só assim podemos compreender a profundidade do enigmático comentário, citado no livro, do jogador negro Robson que atuava no Fluminense no início dos anos ’50: “Eu já fui preto e sei o que é isso.”
O caminho da superação das barreiras sociais e raciais para a prática do futebol aberto pela ascensão do Vasco em 1923 e seguido pelo São Cristóvão em 1926 e o Bangu em 1933 foi coroado pela implantação generalizada do profissionalismo na década de ’30. Este regime abriu definitivamente as portas dos grandes clubes brasileiros para jogadores profissionais negros, mulatos e de origem humilde (embora alguns, como o Fluminense, continuassem a fazer questão de evitar o convívio dos atletas profissionais – definidos como empregados do clube – com o seu quadro social). Na seqüência da sua adoção do profissionalismo, a contratação dos maiores ídolos negros do futebol brasileiro – Leônidas da Silva, Domingos da Guia e Fausto dos Santos – pelo Flamengo em 1936 foi decisiva para a conquista de uma grande legião de adeptos para o clube em todo o país, superando as barreiras sociais e raciais que haviam marcado a sua história inicial.
Para além das paixões clubísticas, a democratização da prática do futebol, materializada na ascensão de jogadores negros e mestiços, permitiu que esse esporte viesse a ocupar posição central na construção da identidade nacional. Na ausência de um maior envolvimento brasileiro em guerras – matéria prima para a construção de fronteiras de identidade na formação dos estados nacionais unificados na Europa – o futebol forneceu um simulacro de conflito bélico para o qual era possível canalizar emoções e construir sentidos de pertencimento nacional. Essa realidade foi captada pelo técnico Ondino Vieira que sentenciou em plena Segunda Guerra Mundial: “O campeonato é uma guerra.” Do Estado Novo de Getúlio ao regime militar, passando pela República Democrática instalada em 1945, todos os regimes que governaram o Brasil durante o seu ciclo nacional-desenvolvimentista exploraram a chave do futebol para ajudar a construir e consolidar a nossa identidade nacional.
Em oposição ao racismo aberto das velhas oligarquias, o novo discurso oficial passou a valorizar a mestiçagem, associando-a aos sucessos de uma “escola brasileira” de futebol que expressaria a nossa singular maneira de ser no mundo (marcada pela criatividade, flexibilidade, informalidade e sensibilidade plástica). O Negro no Futebol Brasileiro é, simultaneamente, parte integrante dessa construção e investigação rigorosa das transformações históricas que a tornaram possível. Em tempos marcados pela busca de novos caminhos para o desenvolvimento do país, o relançamento da obra clássica de Mário Filho sobre a gênese e consolidação de um dos pilares da nossa identidade nacional não poderia ser mais oportuno.
Luis Fernandes
EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 79, 80, 81