Há espaço para uma política econômica diferente
O economista, professor e editor Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo tem se destacado pelas análises sóbrias e profundas da realidade econômica nacional e internacional.
Ele falou com a equipe de Princípios sobre algumas questões polêmicas do momento,
do que publicamos, aqui, alguns extratos Em entrevista à revista Carta Capital (2000), o sociólogo norte-americano Robert Bellah considerava que os Estados Unidos eram uma “sociedade em colapso”. Como anda atualmente o debate sobre o declínio estadunidense?
Belluzzo – Bellah falou de fato sobre a decadência da sociedade americana em relação aos valores que ela professa. Essa sensação de desconforto que a sociedade americana tem com sua trajetória está ficando cada vez mais acentuada. Há uma perplexidade dos americanos com a derrocada moral da sua sociedade, quando percebem que seu sistema de poder não é compatível com a idéia de democracia que eles têm. Essa percepção já é de muito tempo; vem desde Wright Mills, que escreveu A Elite do Poder nos anos 60. Mills, um liberal no sentido clássico americano, mostra como no sistema de poder norte-americano a democracia conta muito pouco – apenas como um sistema eleitoral que substitui dois grupos muito assemelhados no poder. É uma técnica de alternância no poder, um sistema que prescinde, do ponto de vista concreto, até mesmo da qualidade do presidente ou dos parlamentares eleitos. Há uma intrincada rede de relações que se desenvolvem por dentro do Estado. Com a vitória do Bush, revelou-se a relação plutocrática desse sistema de poder com os negócios privados. O gabinete de Bush é formado por gente que veio da grande empresa, basicamente da grande empresa de petróleo. Há agora uma forma indisfarçada de exercício dos interesses privados no governo, ao mesmo tempo em que o poder de manipulação da mídia sobre a opinião pública se tornou muito mais concentrado. Bush manipulou a opinião pública norte-americana na guerra contra o Iraque num grau que talvez não tenha precedentes na história americana.
No desenvolvimento da sua hegemonia econômica os EUA foram obrigados a alguns movimentos que vão tornando cada vez mais complicado seu próprio exercício. No pós-guerra – onde os acordos de Bretton-Woods foram uma espécie de reconhecimento da impossibilidade de se ter uma ordem internacional no capitalismo desenvolvido sem a existência de instituições dentro das quais essa ordem possa se mover –, os EUA reconheceram claramente que era impossível uma ordem liberal como a que existia no século XIX. Ou, pelo menos, que para haver uma expansão do comércio mundial, eram necessárias regras monetárias claras. A proposta de Keynes em Bretton-Woods era de se fazer uma provisão pública de liquidez internacional e de socorro nos casos de desequilíbrios estruturais nos balanços de pagamento. Ele imaginou um banco central dos bancos centrais, que faria essa intervenção de forma consciente pois deixar esse tipo de ação para o mercado seria desastroso porque o mercado agiria exatamente ao contrário: fugiria de quem estivesse precisando para os países que tinham uma situação externa melhor.
A solução encontrada pelos EUA foi uma espécie de meio termo, que preservou a função de moeda-reserva do dólar. E mesmo assim os EUA aceitaram a vinculação do dólar ao ouro (US$ 35 por onça de ouro). Todo mundo avisou que esse negócio não daria certo por uma simples razão: na hora em que os EUA estiverem com a balança superavitária, eles vão sugar a liquidez da economia mundial e, portanto, a privarão dos meios de pagamento necessários para o comércio se expandir. E se os EUA mantiverem a balança deficitária o mundo acumularia um excesso de reservas em dólares que colocaria em risco a conversibilidade do dólar. Os EUA saíram do New Deal com uma posição ambígua, pois havia quem, dentro do Estado americano, quisesse que o país tivesse um papel positivo no mundo, coisa que foi morrendo com a guerra fria, cujo primeiro sinal foi dado pelo macarthismo.
Esse conflito acabou se resolvendo a favor da visão mais conservadora. De qualquer maneira, a presença da União Soviética teve um papel muito importante no sentido de permitir, ou de limitar, uma ação mais agressiva e também de permitir que houvesse certas práticas em políticas econômicas que talvez não fossem nem admissíveis em outras circunstâncias. Como, por exemplo, a trajetória japonesa, ou a trajetória coreana, ou a trajetória da Europa com seus sistemas de proteção social, o Estado de bem-estar social, com políticas nacionais de desenvolvimento. Até mesmo na América Latina, se bem que com raio de manobra, sempre foi muito mais estreito.
Mas já nos anos 1960 foi gerado um déficit brutal na balança de pagamentos americana, determinado sobretudo pela conta de capitais e pelas despesas militares, e isso comprometeu a função de moeda-reserva do dólar. Em 1968, o presidente Nixon – quando os europeus, sobretudo os franceses, começaram a trocar os haveres em dólar por ouro e as reservas americanas do Fort Knox caíram muito rapidamente, chegando a US$ 10 bilhões em 1968 – decretou unilateralmente a inconversibilidade.
Os anos 1970 representaram grande risco para o papel do dólar como moeda-reserva porque a desvinculação com o ouro e a desvalorização contínua do dólar levaram à inflação alta nos EUA, que chegou a dois dígitos. Havia então, no final dos anos 1970, um forte movimento pelo reordenamento do sistema monetário internacional. Os europeus propunham a volta à idéia do ativo internacional emitido pelo FMI, fundado numa cesta de moedas. Esse conflito chegou muito agudizado à reunião do FMI em 1979, em Belgrado, da qual pude participar. Os EUA, usando seu inquestionável poder econômico e militar, subiram a taxa de juros (em 12%, depois 18%, depois 21%, em 1980), reafirmando a hegemonia do dólar sem nenhum suporte na conversibilidade.
Nos anos 1980 os EUA fizeram um déficit fiscal, então considerado altíssimo, de 3,5%, e um déficit externo semelhante. Nesse momento tornaram-se uma máquina de sucção de importações. E ninguém percebeu que de fato aquilo já era o novo sistema, fundado no poder norte-americano e na supremacia do dólar. Isso beneficiou os aliados, sobretudo o Japão. Era um tempo em que os americanos dos chineses, dos japoneses, dos coreanos etc. Ocorreram várias tentativas de protecionismo, mas nenhuma bem-sucedida. Na verdade, os EUA descobriram que ali havia uma forma de política, e que eles não perdiam nada. Ao contrário, estavam absolutamente descompromissados em manter a conversibilidade e podiam manter o dólar como moeda-reserva (no exterior) e crescer de uma maneira que os outros não podiam: fazendo déficits, fazendo dívida, explodindo a sua demanda nominal em cima de uma estrutura produtiva que começou, então, a ganhar um impulso adicional em sua internacionalização. Nos anos 1980, a discussão nos EUA era o fim da manufatura norte-americana, mas, na verdade, não era nada disso. Era a metástase da manufatura norte-americana para fora, que foi o primeiro movimento da “globalização”.
Então, a metástase norte-americana tornou estrutural sua dependência de importação barata. Eles fazem ciclos de expansão: um nos anos 1980 e outro nos anos 1990. Os EUA crescem com expansão do crédito e com a demanda nominal muito acima da sua produção corrente, expressa no déficit crescente da balança de pagamento. E é fácil explicar como eles conseguem fazer isso sem inflação. Nesse período, sobretudo nos anos 1990, a imigração da América Latina para os EUA foi brutal, e então eles tiveram assim um mercado de trabalho sempre pressionado pela oferta infinitamente elástica de mão-de-obra; por outro lado, estão comprando componentes, peças, bens de consumo a preços muito baratos. Esse sistema foi criando uma demanda cativa por dívida americana, privada e pública, porque a demanda cativa é o superávit comercial dos países da Ásia, que é reciclado por seus bancos centrais no mercado americano.
Nesse processo de retomada da hegemonia da economia norte-americana como tem se portado o preço da mão-de-obra?
Belluzzo – Durante todo esse ciclo os salários não subiram. O mercado americano foi reduzindo a rede de proteção e o rendimento médio praticamente não subiu apesar de todo o crescimento da economia. De 1960 até meados dos 1970 os salários subiram. Depois da crise de 1974-75, eles estagnaram e começaram a cair. Nos anos 1980 eles caíram mesmo. Nos 1990, até 1997-98, havia queda de salários. De 1999 para frente eles subiram um pouco. Na verdade, há uma estagnação e a distribuição de renda foi um desastre, piorou muito. Para não falar da distribuição da riqueza, porque aí, então, as diferenças são cavalares.
A dinâmica dessa economia capitalista não se funda mais no aumento de salários, mas no aumento do endividamento das famílias – e isso certamente tem um limite. Com a expansão do crédito aumenta o endividamento, sobretudo dos 40% das camadas inferiores, que devem mais ou menos 200% da renda de que dispõem.
A crise de 1987, que envolveu um crash, pode ser considerada a primeira crise financeira dessa expansão norte-americana?
Belluzzo – Sim; foi exatamente a primeira crise financeira do período da desregulamentação. Depois houve em 1992-93 a crise do sistema monetário europeu, a especulação contra a libra (George Soros ganhou US$ 1 bilhão especulando contra ela), depois contra a lira e contra a peseta espanhola. Em 1987 o crash foi enfrentado por Alan Greenspan, do Federal Reserve [o banco central dos EUA] com muita liquidez; depois houve a crise de 1992-93; e a crise dos bônus de 1994 que, na verdade, é decorrência já da expansão de liquidez – as pessoas esquecem as coisas, mas estamos num período parecido. Com a recessão dos anos 1990, os americanos usaram muita liquidez e o preço dos bônus aumentou muito e, relativamente, diminuiu a taxa de juros. Como a economia norte-americana começou a crescer, e achando que estava muito aquecida, subiu-se a taxa de juros. Teve uma crise real. Isso foi em abril de 1994. Em dezembro de 1994 para 1995 teve a crise mexicana. Em 1997-98 houve a crise da Ásia. Depois, no segundo semestre de 1998, em agosto na Rússia. Venezuela e Brasil, em 1999. E em 2000-01 a crise da Argentina. Em 2002 tivemos a grande escassez de liquidez. E agora estamos vivendo outro movimento, que é um movimento de fluxo. Na verdade, os EUA baixaram muito a taxa de juros. Há uma tremenda mudança de liquidez, com bolhas em vários mercados: imobiliário, e no de ações de novo. E uma nova situação de sobra de recursos para os emergentes.
Para se proteger da bolha é preciso tomar algumas medidas de política econômica. E nós pegamos essa bolha com nossa taxa de juros muito alta. Isso é um estímulo muito grande para as empresas tomarem dinheiro lá fora e fazerem arbitragem aqui com taxa de juros; e, ainda, se deixou valorizar o câmbio. Com isso, estamos numa situação muito complicada em médio prazo.
Pesquisadores chineses, a exemplo de Youcai e Feng (2002/2003), prevêem que nas próximas décadas os EUA deverão obter crescimento econômico e continuar a deter cerca de 30% do volume da economia mundial, ao mesmo tempo em que prevêem certa estagnação da Europa e do Japão. Como o senhor interpreta essas projeções?
Belluzzo – Há duas questões diferentes, que se entrelaçam. Os anos 1990 foram um período de grande inovação tecnológica, e o investimento produtivo foi puxado, em boa medida, pelos EUA. O investimento produtivo subiu muito mais do que nos ciclos anteriores, mais por exemplo do que no ciclo dos anos 1980. Até porque não havia razão no período anterior para as empresas investirem quando estavam sofrendo uma concorrência brutal e não havia um cluster de inovações como esse atual na área da informática.
Obviamente, o setor de informática ainda tem muita bala para gastar do ponto de vista tecnológico. Há um estoque de inovações. Mas, por outro lado, a velocidade com que se criou a capacidade nos setores de alta tecnologia é muito grande. Então, pode ser que – e é muito provável – se leve algum tempo para digerir essa capacidade. Em geral, há excesso de capacidade que é preciso eliminar. No caso de fibra ótica, por exemplo, o excesso de capacidade é de 97%, ou seja, só são usados 3% da nova rede de fibra ótica. Isso aconteceu porque as projeções a respeito do desempenho da economia foram excessivamente otimistas. E isso foi tanto lá quanto aqui.
Essas projeções tecnológicas são sempre complicadas porque é claro que há um estoque provavelmente amplo para renovar. Mas há um problema econômico: é preciso sucatear a parte que foi investida. Só quando se sucateia, é que se volta a investir. Porém as estratégias de defesa contra a crise retardam esse processo.
Ao se analisar a tecnologia pelo aspecto da composição orgânica e escalas de produção…
Belluzzo – Na verdade, se você observar bem a gestão da economia capitalista verá que, em boa medida, ela procura escapar da tendência à crise. E faz isso ministrando euforizantes nominais para que a economia possa escapar dessa lógica que os monetaristas não conseguem explicar. Então, está certo, é a expansão dos bens de pagamento, M1, ou M2, o agregado monetário que você quiser. Os EUA, por exemplo, estão sempre muito acima da taxa do crescimento do produto e não têm inflação, quando seria de se esperar uma explosão inflacionaria. Mas isso está funcionando por quê? Porque, na verdade, Keynes descobriu que do ponto de vista macro esse sistema só funciona à medida que a demanda nominal corre à frente da oferta. É a crise de realização de que o Marx falava. O sistema de crédito funciona como um antecipador da renda à medida que os capitalistas decidem gastar, e realizam o gasto via crédito. Assim, criam um espaço de valor dentro do qual a economia opera. Criam um espaço monetário de valor e geram renda, esperando que os consumidores e os demandantes de bens de capital, que pagam um capital caríssimo, readquiram de volta esse produto e, portanto, façam a renda monetária voltar para a empresa que apropria os lucros.
Keynes descobriu, ao falar em problemas de realização, que era disso que Marx falava. E Keynes disse que, sendo minimamente administrada a capacidade do capitalista de gastar na frente, seria muito provável que não ocorressem crises tão graves, ou que se conseguisse empurrá-las para frente. O que os americanos fazem hoje é um keynesianismo bastardo. Keynes dizia que a solução seria a socialização do investimento, seria controlar os elementos que determinam o investimento para que se pudesse alternar entre o público e o privado. Isto é, regular o mecanismo de acumulação capitalista impedindo que ele saia dos trilhos e preservando um mínimo de estabilidade para ele. Mas o que está acontecendo não é isso; a estabilidade está sendo jogada para outro patamar. E é uma economia que está agravando os desequilíbrios.
Vendo os últimos acontecimentos na América Latina e o posicionamento de política externa de líderes do continente (Chávez, Kirchner, Lula e Fidel), o professor alemão Heinz Dieterich (UNAM/México), afirmou que uma “nova independência” latino-americana estaria em curso. Há exagero nessa afirmação ou seria isso mesmo? Belluzzo – Há verdade nisso, porque a experiência neoliberal da América Latina foi muito traumática. Poucos não percebem o tamanho desse fracasso. As classes dirigentes perderam completamente o sentido de realidade. Parece-me que foi assim na Grande Depressão e na crise do nazismo, do fascismo… E é por isso que surgem os aventureiros. Essa incapacidade de dimensionar o fracasso é uma coisa impressionante. O Equador, hoje, não é mais uma economia nacional, mas uma economia dolarizada. A Argentina foi massacrada por um regime monetário e fiscal enlouquecido. A Venezuela fez a sua experiência neoliberal no começo dos anos 1990, com Andrés Peres.
A situação concreta de cada um desses países é muito diferente. A Argentina passou pelo ordálio da crise financeira e monetária com a destruição do padrão monetário criado pelo ministro Domingos Cavallo; foi ao fundo do poço. Isso poderá acontecer com o Brasil, que dificilmente vai escapar de uma reestruturação da sua dívida externa. Aliás, essa é não é a minha opinião, mas do ex-economista chefe do FMI, Keneth Holgoff, que diz claramente que o Brasil é um país sobreendividado, com uma relação dívida/PIB muito alta.
Estamos acumulando dívida mais na frente e isso não seria grave se nosso nível de endividamento fosse baixo. O problema é que estamos vivendo um momento de ilusão sobre a capacidade de prosseguir com esse modelo. Não seria nada de excepcional o que estamos recomendando: que não se deixasse a taxa de câmbio valorizar – nós já pagamos o preço da desvalorização com a inflação de 2002. Com um pouco mais de ousadia na administração da taxa de câmbio provavelmente poderíamos escapar do constrangimento deste superávit primário muito alto. Quando se tem uma taxa de juros real de 10,5%, 11%, e um crescimento pífio, de nada, a relação dívida-PIB cresce aritmeticamente.
Acho que a política atual do país é inconsistente, a política de juros, a política de superávit fiscal, e o desejo que a economia cresça. Ademais, eles fazem uma coisa que ninguém mais faz em sã consciência, que é deixar o mercado determinar a taxa de câmbio. Não há nenhuma teoria que justifique isso; ao contrário, todas as experiências recentes recomendam a estabilidade no câmbio. Deve-se ter a taxa de câmbio desvalorizada, estável e sob controle; não se pode deixar isso ao sabor do mercado.
Então, temos uma política de metas de inflação em que querem enquadrar uma economia instável. Política de meta de inflação não diz que a meta deve ser baixa. Você tem que ter uma meta, que é a ancoragem nominal do seu sistema. Mas, fixando-se uma meta muito baixa, sufoca-se a economia real. Foi o que aconteceu no ano passado – matou-se a economia real.
E o problema do controle da conta de capitais?
Belluzzo – Ao invés de chamar de controle de capitais, gostaria de chamar de administração do passivo. Qualquer empresa faz a administração do passivo. Ela contrai uma parte de sua dívida a taxas fixas, a outra parte a taxas variáveis. Faz swap. Ou seja, ela faz a administração do passivo de um modo que, se houver alguma mudança na conjuntura, ela não fique insolvente. Controle de capitais, ou administração do passivo, é isso: não deixar haver endividamento de curto prazo muito pesado em relação ao total; não deixar que empresas que não têm proteção natural, que não são exportadoras, tomem dívidas em dólares. Todo país faz isso.
A abertura financeira foi feita de maneira ilegal no Brasil, através de portarias, de normas baixadas pelo Banco Central, que não podem derrogar o que está escrito na lei. Na verdade, o controle que existe pela CC5 é muito precário. Veja o caso do Banestado, por exemplo, são cerca de US$ 40 bilhões que saíram, na maior parte dinheiro sem origem legal…
Quais os outros desafios para um novo projeto de desenvolvimento para o país?
Belluzzo – Temos um problema muito sério na infra-estrutura, que está sucateada. A começar pela estrutura de transporte; há também o problema da energia. A privatização da energia foi um blefe, um erro muito grande, e não se sabe como vai se descalçar essa bota. A ministra Dilma Roussef propôs um modelo, e o setor privado acha que ele tem um peso excessivo do Estado. Mas é preciso restaurar a capacidade de coordenação do Estado. Não é necessário que o Estado tenha a propriedade das empresas, mas precisa ter capacidade de coordenação. Estes são os setores que, no Brasil, sempre investiram na frente da demanda, desde o Getúlio. A grande inovação de Vargas foi ter claro a necessidade, primeiro, de recursos nacionais por causa da volatilidade do mercado internacional de crédito; e, segundo, que era preciso investir na frente da demanda.
E a privatização, quando foi feita, desarticulou isso.
O desenvolvimento brasileiro é inexplicável sem as ações de Vargas. Fazer reordenações institucionais tudo bem, mas não dá para violar certas regras. Eletricidade, energia, são bens públicos porque permeiam toda a cadeia produtiva, afetam todos os custos, afetam as decisões de se investir etc. Então, não dá para deixar isso para o mercado e abrir-mão da coordenação do Estado. Esta foi outra besteira feita no período de preeminência neoliberal, achando que o problema era de mais Estado e menos mercado. E, na verdade, no capitalismo – digo depois de 1930 – não tem mais essa história. Há sempre mais Estado e mais mercado. Como é que o capitalismo ia se desenvolver sem as instituições multilaterais criadas pelos EUA? Sem a ação do estado americano junto às suas empresas? Assim como o Estado europeu junto aos seus sistemas empresariais? Após a crise de 1929/1930, foi produzida uma politização da economia e passou-se a uma economia extremamente regulada, dependente do entorno institucional.
O problema é que o resultado social dessa crise nos países centrais é um desastre…
Belluzzo – Sem dúvida. Assistimos, do ponto de vista social, é a uma degradação das condições de proteção, de segurança, no que diz respeito às condições de trabalho.
Tudo está sendo precarizado e quem sofre o peso do ajuste são os assalariados, seja nos EUA, na Europa, ou aqui. Mas, como a crise não é tão profunda e como há sempre um dinamismo, existe sempre a expectativa de que uma hora vai melhorar.
No caso do Brasil, de 1998 para cá a renda média nacional caiu 30%; só teve um ano em que a renda cresceu um pouco, 2000; depois, continua a sua derrocada. E essa queda atingiu muito a classe média brasileira. No entanto, a classe média ainda permanece, do ponto de vista do seu imaginário, com a idéia de que este é um país dinâmico, com oportunidades; ainda não há a percepção, do ponto de vista social, de que as gerações estão piorando uma em relação à outra.
A continuidade da atual política econômica é incompatível com um novo projeto de desenvolvimento?
Belluzzo – O que acontece é que, por razões conjunturais – e começo a desconfiar de que também por razões de convencimento –, o novo governo resolveu dar curso à política anterior, imaginando que conseguirá ganhar credibilidade e, com a política de construção de confiança, o investimento direto e os outros financiamentos fluirão para o país. Que, com a estabilidade do câmbio, conseguirá crescer à base da recuperação do investimento privado.
Acontece que nas circunstâncias atuais do Brasil a questão central, não revelada, é a fragilidade externa. O Brasil, hoje, provavelmente depois da Argentina, é o país que tem os piores indicadores externos. Então, eles estão apostando em que teremos um período muito longo de bonança externa, que recupere a confiança no país e que favoreça o investimento privado. Portanto, que teremos um surto de investimento direto externo que, associado a investimento privado brasileiro, levaria a economia ao crescimento. E isso supõe a absoluta ausência do Estado, que teria políticas meramente indicativas, políticas horizontais para favorecer a retomada do investimento privado, sem nenhuma ação mais pró-ativa do governo.
Para mim, essa é uma esperança vã. Primeiro, porque a vulnerabilidade externa vai aumentar, não diminuir; talvez ela fique um pouco disfarçada no período de liquidez abundante. E quando a maré virar, vamos levar outra trombada muito grave.
Os analistas internacionais mais atilados, como Holgoff, Joseph Stiglitz, ou outros, já perceberam isso. Stiglitz costuma dizer que isso já não deu certo uma vez, não deu certo duas vezes e não é na terceira que vai dar certo. Um dos riscos é o aumento da inflação americana. Neste ano o preço dos os produtos importados nos EUA subiu 1,3%. Há uma inflação de importados. Isso tem um peso muito grande na estrutura produtiva americana, e vai acabar influindo na inflação e poderá ter reflexo na taxa de juros longa, que é formada no mercado, na negociação dos títulos de 10 anos no governo americano no mercado secundário. No ano passado ela já foi a 4,5%; está em torno de 4 e pouco… O outro risco é ocorrer um acidente qualquer com a bolha imobiliária, que já dura dois anos. Daí, tome financiamento em cima da bolha imobiliária. Estamos falando de um sistema todo eivado de desequilíbrios.
Uma segunda natureza da economia brasileira é que há uma grande sinergia entre investimento público e privado. É preciso recuperar essa sinergia para o investimento subir. Nossa economia é sem volume, sem uma densidade de gasto que permita que as atividades privadas se desenvolvam a contento. Não é como a China, onde o Estado investe pesadamente, e a exportação funciona como uma catraca para permitir que setores e a economia interna doméstica cresçam. Passamos a idéias de que temos grande capacidade ociosa…
Belluzzo – Enorme. Só que, na verdade, como é que você mobiliza a capacidade se ela está em estado latente? Você mobiliza à medida que os capitalistas de um decidem gastar, portanto, imantar aquilo monetariamente, gerar pontos de emprego, gerando o volume da economia. Você tem um potencial, mas se você não o movimenta ele também vai encolhendo.
O que aconteceu aqui nos anos 1990 é que, por exemplo, contraiu-se violentamente o emprego industrial, fez a precarização, machucou a economia com a carga fiscal, que subiu. Também subiu o superávit primário e se botou uma taxa de juros alta. Se essa economia crescer trata-se, realmente, de um milagre.
Claro que, comparado com 2003, se você deixar tudo como está, 2004 vai crescer estatisticamente um pouco porque o nível de comparação é muito baixo. Depois, se você não recuperar o emprego não recupera a renda. Na verdade o que é o emprego? O emprego cria um ponto ali em que o sujeito que não recebia nada passa a receber uma renda monetária, e passa a gastar. Se não se recuperar o emprego não acontece nada.
É preciso mobilizar o emprego e a capacidade ociosa. Isso envolve a decisão de gasto. Marx dizia que é a decisão de gasto que cria a renda. Se os capitalistas, por exemplo, resolverem achar, como no caso dos EUA, que há um foco de inovação tecnológica e resolvem apostar naquilo e gastar, na verdade drena-se a renda por toda a economia. Só que o que a economia clássica diz? A oferta cria sua própria demanda, diz a lei de Say. Keynes dizia o contrário. Quem tem acesso ao gasto independentemente da situação da sua renda? Ou são os capitalistas ou é o Estado que pode se endividar para fazer isso. Ou, as famílias mais ricas que podem se endividar e gastar em bens de consumo. Então, esse é um revés.
O problema do capitalismo, como Marx diz, é que se ele correspondesse ao bom senso toda ciência seria desnecessária. Ele é contrário ao bom senso. Então, vão dizer, “mas é de elementar bom senso que o Estado faça economia”. Não é do elementar bom senso. É a aparência, é como as coisas aparecem. Mas é necessário que seja assim porque se as pessoas descobrissem que estão desempregadas porque na verdade os capitalistas querem acumular riqueza sobre a forma monetária sem gastar, se as pessoas compreendessem tudo, elas saíam pela rua chutando balde.
Muitos setores estranharam a recente decisão de se manter a taxa de juros em 16,5% e se comentou que ela teria sido tomada à revelia do presidente. Como o senhor vê as polêmicas sobre isso e que envolvem também a chamada independência do Banco central?
Belluzzo – Bom, acho que na medida em que há uma dependência extrema da opinião dos mercados, a política monetária ganha uma preeminência extraordinária. A autonomia do Banco Central tem a ver com isso.
No fundo, o que você faz? Retira da pressão política o Banco Central? Como é a independência do Banco Central nos EUA? Ele tem independência, mas é uma criatura do Congresso, a quem tem que prestar contas. E seu presidente pode perder o mandato, se houver um conflito mais grave. Mas, no fundo, a independência do Banco Central corresponde a uma autonomia maior dos mercados financeiros em relação à economia real e à escolha política que a sociedade faz sobre o rumo da economia. No fundo, você escolhe o presidente da República, que tem menos poder que o presidente do Banco Central.
O presidente do Banco Central, no Brasil, tem mais poder real que o presidente da República. E isso não é um problema técnico de política econômica. É um problema político, de como o país está inserido na economia internacional. O Brasil, desde os anos 1980-90, foi se inserindo de uma maneira inadequada. Perdeu toda capacidade de fazer política econômica. É um problema de correlação de forças. As pessoas confundem um operário no governo com o governo dos trabalhadores, para a hegemonia dos trabalhadores, no governo, com o governo dos operários. Digo mais, a hegemonia da visão da fração mais adiantada da classe trabalhadora, ou das classes subalternas, no poder. Nós não temos essa situação. Portanto, é um problema de construção política, e não de eleição. Houve um momento em que se tornou viável a eleição, mas a correlação de forças não nos é favorável. Essa que é a verdade.
É obrigatório fazer essa política? Não, mesmo com a correlação de forças desfavorável não era obrigatório porque havia, na verdade, espaço para fazer a política diferente. Mas vamos falar a verdade. Achar que você ganhar uma eleição resolve o problema do poder é uma coisa que escapa muito à análise… Gosto muito, acho que todo mundo devia reler o 18 Brumário de Luís Bonaparte, do Marx, que é um texto inexcedível na qualidade de análise política. Se nós o relêssemos e tentássemos fazer uma outra versão, uma análise política concreta de como são as relações entre as forças, ficaríamos um pouco menos angustiados porque sabemos que isso é uma construção.
A. Sérgio Barroso é mestre em economia pela Unicamp, José Carlos Ruy é jornalista e editor de Princípios e Edvar Bonotto é doutor em direito.
EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 16, 17, 18, 19, 20, 21, 22