O Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos se originou em 1994, quando Clinton – então presidente norte-americano – propôs a Frei a incorporação do Chile ao Nafta (Acordo de Livre Comércio da América do Norte). Isso nunca foi objetivo do governo chileno, apenas um “convite” ao qual não se podia recusar. A oposição de sindicatos e ambientalistas norte-americanos à ampliação do Nafta levou a Casa Branca a optar por um tratado bilateral. O fato de a economia chilena ter sido considerada a mais próxima do modelo norte-americano fez o TLC com o Chile ser impulsionado por transnacionais e políticos estadunidenses como um passo adiante em seu velho sonho de anexar as nações do continente.

Ao obterem a ratificação chilena em dezembro de 2003 os Estados Unidos alcançaram três objetivos: a) avançar em sua disputa com os capitais europeus e asiáticos pela supremacia no continente; b) consagrar um caminho alternativo – os tratados bilaterais – caso fosse arruinada a Alca (Acordo de Livre Comércio das Américas); e c) bloquear a entrada do Chile ao Mercosul – o que poderia limitar a expansão norte-americana na região. A Casa Branca, com razão, qualificou o Acordo como um êxito “geopolítico”.

A estratégia econômica norte-americana para dominar o mundo é a imposição das regras de “livre comércio” internacional em todos os países. Em meados dos anos 1990 os Estados Unidos alcançaram dois grandes êxitos: a criação da Organização Mundial de Comércio (OMC) e do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (Tlcan ou Nafta) com Canadá e México.

Um antecedente importante: os efeitos do Nafta no México
Para avaliar os efeitos do TLC entre Chile e Estados Unidos é necessário conhecer as conseqüências do Nafta no México.

Nesse país latino-americano a independência econômica, a fortaleza industrial e as condições de vida das grandes massas foram deterioradas. O país se tornou mais dependente dos Estados Unidos – a ponto de 74% das importações provirem do norte e 89% das exportações dependerem do mercado norte-americano. A taxa de crescimento do PIB (Produto Interno Bruto) depois do Tratado ainda é muito inferior à sua taxa nos anos 1980. A crise da economia norte-americana iniciada em 2001 reduziu de imediato a taxa de crescimento mexicana. A expansão das empresas maquiladoras – a maioria delas sucursais de multinacionais – não significou um maior estímulo para as indústrias mexicanas, pois 98% das peças e componentes utilizados por elas, são importados dos Estados Unidos e de outros países, com as quais encaixavam os produtos que logo a estatística registra como “exportações mexicanas”. Na verdade, apenas 4% dessas exportações correspondem a empresas mexicanas.

Entretanto – tal como se temia – a avalanche de produtos agropecuários norte-americanos fortemente subsidiados, está causando danos entre os camponeses e os pequenos e médios agricultores. Como resultado líquido dos primeiros oito anos do Tratado, deixou-se de cultivar 10 milhões de hectares e 6 milhões de camponeses emigraram. Evocando o fatídico capítulo 11 do Tratado, as multinacionais apresentaram petições contra o Estado nacional e os governos estaduais exigindo a anulação de normas ambientais e de outras regras ou o pagamento de fortes indenizações.

O impacto do TLC sobre o comércio chileno de produtos

Somente nove tipos de frutas frescas chilenas entraram nos Estados Unidos sem pagar tarifas. Antes do TLC esse pagamento era muito próximo a zero – o que significa que o Tratado outorga uma vantagem muito pequena. Outras espécies de frutas e algumas hortaliças; sumos e polpas de fruta; conservas e massas tiveram um prejuízo que perdurará por doze anos. Outros tipos, como abacate e alcachofras, para conseguir tarifa especial, foram submetidos a cotas. As esperanças da agroindústria, com seus produtos mais organizados e de maior valor agregado, foram frustradas. Os Estados Unidos manterão plenamente aplicados contra as exportações chilenas suas leis antidumping; os subsídios à sua agricultura; as “marketing orders” (leis de mercado) que discriminam por tamanho, cor e volume; e suas arbitrárias leis fitosanitárias.

Quanto às importações agropecuárias o Acordo faz concessões aos Estados Unidos, que podem significar graves prejuízos a diversos setores e zonas agrários. Segundo fontes norte-americanas (www.ustr.gov), três quartas partes de sua extensa e variada produção entrarão livres de tarifas a partir do quarto ano de vigência do Tratado. Os funcionários norte-americanos se orgulham por terem obtido o compromisso de debilitar os controles fitosanitários. De sua parte, os agricultores chilenos perderão um eficaz instrumento de defesa frente à competência desleal: o sistema de “faixas de preços” e o conseqüente poder de compra estatal para seus produtos. Devido à perda dessas garantias – somada à entrada sem tarifas do grão norte-americano – a Sociedade Nacional de Agricultura (SNA) reconheceu que deixariam de ser semeados cerca de 150 mil hectares com trigo, ou seja, quase 40% dos atuais.

Torna-se impossível para os cultivadores locais competir com aqueles que recebem subsídios anuais de aproximadamente US$ 55 milhões. Perdas semelhantes ocorrerão a milhares de plantadores de beterraba.

No setor manufatureiro, o Tratado outorga poucas franquias à produção chilena. São mencionados como êxitos excepcionais, o cobre em catodo e alguns tipos de produção têxtil e do vestuário. Neste último, poderiam ser geradas novas fontes de emprego. Todavia, em geral, os Estados Unidos não modificaram nada a favor do Chile, seu sistema geral de tarifas escalonadas, segundo o qual são mais altas quanto maior valor agregado o produto contiver – o que nos condena a limitar as exportações com baixo valor agregado.

Os norte-americanos festejam por terem obtido algo que a maioria dos países resiste em ceder. O ambicionado mercado nacional de compras governamentais, calculado em aproximadamente US$ 3 milhões anuais, permanecerá aberto mediante novas regras que estabeleçam a renúncia do Estado chileno em dar preferência às ofertas provenientes de fabricantes nacionais. Segundo a Associação Nacional de Manufatureiros dos Estados Unidos, o Tratado lhes permitirá incrementar as vendas ao Chile em cerca de US$ 800 milhões por ano, isto é, 25%. Aumento esse à custa de produção interna.

Serviços, tecnologias, capitais

No comércio de serviços, as concessões outorgadas pelo Chile estabelecem um precedente negativo. A maioria das nações resiste em abrir esses mercados e os preserva para sua produção nacional. A informação de Washington destaca que o Tratado outorga facilidades para prover no Chile os serviços bancários e de seguro, de turismo, publicidade, assessorias, profissionais, de comércio eletrônico (livres de impostos como o IVA) e o comércio atacadista.

No crescente mercado da educação de adultos e de entretenimento, os norte-americanos se preparam para ingressar graças ao Acordo. Quanto à indústria cultural, segundo o representante dos produtores de Hollywood, Jack Valentie, o Tratado é um “marco histórico no acesso ao mercado chileno de cinema, entretenimento e da cultura”.

Os funcionários norte-americanos mostram-se muito satisfeitos ao garantirem o direito de cobrar royalties, honorários, comissões ou preços de monopólio pelos produtos, patentes, marcas, segredos comerciais e serviços do qual, em nome do “direito de propriedade intelectual”, desfrutaram no Chile num monopólio de exploração. Uma das conseqüências por reforçar os direitos de patente é a alta nos preços de inúmeros medicamentos de “marca”, o desaparecimento e o fechamento de laboratórios nacionais que formam substitutos. De outra parte, enquanto no mundo se resiste ao uso de sementes e produtos transgênicos, as multinacionais norte-americanas obterão do Chile uma ampla liberdade para introduzi-los.

Em matéria de inversão de capitais estrangeiros, o Chile renunciou a utilizar o rendimento, aplicável à entrada de capitais de curto prazo, mecanismo de provada eficácia para enfrentar os movimentos especulativos. O Tratado autoriza o Chile a utilizá-lo somente por um ano, não preventivamente, salvo em caso de “catástrofe” (para a qual já seria inútil), e sempre que não “dificultar seriamente” a saída de capitais – neste caso os inversionistas norte-americanos teriam direito a pesadas indenizações. Incluem-se entre as concessões chilenas o compromisso de “controlar e regular” suas empresas estatais (Codelco, Enap, Banco do Estado, Correios etc), que deverão ter cuidado para “não prejudicar” os interesses das companhias norte-americanas. Caso contrário, os estadunidenses poderiam exigir indenizações.

Regulações meio-ambientais, trabalhistas e solução de controvérsias

Em matéria de meio ambiente, o respeito às convenções internacionais, estabelecendo sanções especiais em caso de violação dessas normas não ocorreu devido à oposição conjunta das transnacionais e de ambos os governos. Em matéria de direitos trabalhistas, o Acordo nem sequer estabelece medidas para exigir e sancionar das empresas exportadoras, ou importadoras, que violam as normas básicas estabelecidas nos Convênios da OIT. Essa demanda foi repelida pelos negociadores de ambos os lados. Com relação a isso é preciso recordar que a maioria das convenções da OIT sobre direito de formar sindicatos, negociação coletiva e direito à greve, nunca foi ratificada pelos Estados Unidos. A MacDonald’s, uma das maiores empregadoras no Chile e no mundo, se vangloria por não aceitar sindicatos em seus estabelecimentos.

Em matéria de “solução de controvérsias”, os Estados Unidos deram um passo a mais em sua política de se eximirem da legislação nacional e da jurisdição dos tribunais chilenos. Para cada controvérsia será formado um Painel internacional de três partes – uma para cada lado e uma terceira designada de comum acordo. As multinacionais então recorrerão à exigência do pagamento de indenizações.

Em resumo, os resultados previsíveis serão:

1. A maior presença de produtos, serviços, capitais e tecnologia norte-americanos será no tolhimento do desenvolvimento de uma equilibrada relação com outros blocos comerciais e regionais. O TLC dificultará a participação do Chile no Mercosul, no pacto comercial maior dentro do continente.
Prejudicará a integração com a América Latina e o Caribe, que é nosso espaço natural, histórico, geográfico e político.

2. Fortes limitações são impostas à capacidade do Estado para exercer soberania nos âmbitos econômico e social. Entre as políticas que serão restritas estão a capacidade de estabelecer ou modificar tributos, a política monetária e creditícia, a regulação do mercado de divisas e a balança de capitais, as ajudas e subsídios para desenvolvimento e proteção de setores prejudicados pela globalização capitalista, o desenvolvimento das empresas estatais, a regulação do meio ambiente e da legislação trabalhista.

3. A desigualdade básica do Tratado procedente do fato de uma das Partes ser a primeira potência mundial e a outra um pequeno país em desenvolvimento não apenas não é atenuada como ainda – ao longo deste texto – se observam maiores vantagens para a grande potência. Uma outra delas é a definição geral dos territórios, dentro daqueles a que se aplica o Tratado. Enquanto os Estados Unidos excluem expressamente seu espaço aéreo e seu mar territorial, o Chile os inclui, agregando sua exclusiva zona econômica e sua plataforma continental. Uma outra se refere aos salvo-condutos que os Estados Unidos poderão aplicar sobre 52 produtos importantes para o Chile, como frutas, hortaliças e seus derivados, enquanto o Chile só pode aplicá-las para 15 produtos: carnes de mamíferos primatas e répteis que no Chile não existem a não ser em zoológicos.

4. As severas limitações impostas pelo Tratado ao Chile foram resumidas pelo Prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz. Segundo ele, “o Chile não obteve acesso real aos mercados norte-americanos (…) sua capacidade de administrar a estabilidade está sendo menosprezada (…) e os inversores estrangeiros no Chile têm mais direitos que os inversores chilenos”. (El Mercuio, dezembro de 2003).

As disposições do Tratado se contrapõem a diversas leis chilenas e tornam abertamente vulneráveis princípios constitucionais. Entre eles o estabelecido no item 22 do art. 19 que proíbe a discriminação no trato do Estado em matérias econômicas, por exemplo favoráveis a inversionistas estrangeiros no tolhimento do desenvolvimento dos nacionais; o estabelecido no item 8 do art. 19 referente ao dever do Estado de assegurar o direito de viver num meio livre de contaminação que poderia ser anulado por exigências de inversionistas estrangeiros aceitas por tribunais estrangeiros; os artigos 5º, 73 e 79, segundo os quais os bens situados no Chile – ainda que pertençam a estrangeiros – deverão obrigatoriamente ser submetidos a leis e tribunais chilenos.

A euforia dos submissos

Uma das razões para proclamar essa euforia – expressa por políticos de direita e da Concertação – é o fato de o TLC com os Estados Unidos tornar mais difícil para qualquer governo chileno futuro a mudança do sistema econômico interno. Asseguram que para sair do modelo neoliberal seria impossível pelas novas obrigações que o Chile contraiu e pelas supostas represálias norte-americanas que sobreviriam caso fossem anuladas.

Todavia, pode-se também fazer uma outra reflexão. Se nos ativermos às lições da história, sabemos que nenhuma potência imperial – que imponha tratados injustos e desiguais a cidadãos de outro país – pode impedir que uma nação ofendida em seus interesses mais vitais, cedo ou tarde se livre dessas ataduras por meios que podem ser mais radicais quanto maiores sejam os prejuízos impostos à sua dignidade.

José Cademartori é membro da direção do Partido Comunista do Chile. Tradução de Maria Lucilia Ruy

EDIÇÃO 72, FEV/MAR/ABR, 2004, PÁGINAS 49, 50, 51, 52