Que pé quebrado
Passei anos procurando uma oportunidade de me aproximar daquela mulher. Era a coisa mais perfeita que já existiu no mundo. Linda e escultural. Mulher para outro tipo de homem, não o tipo que eu representava. Mas esta não é a história principal. O que importa é que a mulher era muito rica e eu muito pobre. Tudo jogava contra mim. Ela era o tipo que curtia rock e eu um sambista inveterado. Fiz o que podia e o que não podia para conquistar aquela mulher e, tanto fiz, que consegui.
Começamos um namoro um tanto tímido, ela à vontade em seu carro e eu com todas minhas barreiras sociais. Mas a coisa ia tomando um rumo. Tudo estava se encaixando – se é que vocês me entendem – quando ela me disse que eu precisava conhecer os seus pais. Odeio conhecer os pais de qualquer garota, principalmente as que eu estou pegando. Eu não estava ali para casar, e conhecer pai e mãe já dava aquele ar de compromisso, de formalidade. O sogrão já ia me olhar com aquela cara de “tu tá comendo minha filha né, seu safado?”. E eu com aquela cara, impossível de disfarçar, de “o senhor está coberto de razão”. E conhecer a mãe, então?! Eu ia ficar com a fisionomia da velha na minha cabeça. Com certeza, na hora do “vamo vê”, a velha ia visitar meus pensamentos – ia brochar, com certeza eu ia brochar. E aquela história da filha ficar com a cara dá mãe quando envelhecer? Meu deus do céu! Tá certo que não vou casar com a mina, mas toda hora que eu fechar os olhos vou imaginar que ela está com a cara da velha. Já tou prevendo, o coitado não vai mais levantar.
Apesar dos pesares, fui conhecer os pais ricos de minha namorada. Todo o acanhamento que eu tinha quando comecei o namoro voltou de uma vez só e em proporções gigantescas. Vocês não imaginam como era a casa dos velhos; não imaginam em que pé quebrado eu me meti. Pra começar, a sogra, aquela sobre a qual já falamos, me olhou de cabo a rabo e foi logo falando com aquela voz de bruaca: "Hum, sapato colorido!" Poxa vida, ela estava falando do meu melhor pisante. Eu, para não ficar por baixo, falei: “Pois é. É do meu primo”. Com sorrisinho amarelo.
Entramos. Almoçamos e fomos para a sala, jogar conversa fora. Eu louco para ficar só com a gatinha e me livrar dos olhares, mas não tinha jeito.
Antes de passarmos para o clímax desta história, tenho que dizer que o almoço foi um desastre só. Nunca tive um almoço tão grã-fino assim. Troquei as mãos, usei garfo de carne para verdura, sujei as taças do homem com a mão suja de pegar na carne para conseguir cortar com a faca da sobremesa ou sei lá do que. Chamei o caviar de ova de peixe e disse que me criei comendo aquilo. Peguei uma porção e misturei com o arroz e feijão e mandei pra dentro. Bom, em resumo, a coisa mais constrangedoras que já passei na minha vida. Mais constrangedora se tivesse acabado por ali. O problema é que tem mais.
Fomos para a sala, como eu ia dizendo. Ficamos sentados, eu do lado da mina, o sogro, que era médico, com aquela cara a que me referi anteriormente, sentado numa poltrona pequena, e a sogra com um sorrisinho azedo nos lábios me olhando o tempo todo.
De repente eu levantei, cheguei perto da velha com aquela cara de nojo e disse: tá me olhando por quê? Nunca me viu? Disse isto e dei-lhe uma borduada na cara pra tirar aquele sorriso e a velha caiu no chão aos pés do sogrão.
– Pacheco, Pacheco? – era minha gatinha chamando.
– Oi?
– O que foi? Você está distante.
– Nada não. Estava só pensando numas coisas.
E a velha lá com aquele sorriso no rosto me olhando dos pés à cabeça. Estávamos todos calados quando meu estomago resolveu intervir. E ele interveio tão alto que todos ouviram ele dizer: já para o banheiro.
– Com licença, vou até o banheiro. Este era eu todo cheio de dedos.
E parti para o banheiro mais próximo sem esperar que eles me dissessem em qual eu poderia entrar.
Entrei e naquele desespero sentei. Aaaahhhhh que alívio! A partir daí foram trovoadas, rajadas, relâmpagos e chuva. Muita chuva, chuva grossa. Depois de uma aguadinha levantei. Fui logo dando descarga para evitar o cheiro, cheiro este que já havia se espalhado.
Apertei o treco que dá descarga e nada. De novo e nada. Quebrado?! Como poderia estar quebrado? Quando eu ia imaginar que em casa de rico houvesse alguma coisa quebrada? Nunca! E o cheiro se alastrando. Abri a torneira da pia e, num desespero descomunal, comecei a encher as duas mãos em concha e a jogar sobre o que sobrou do melhor almoço da minha vida. Pegava a água e jogava. Pegava e jogava, pegava e jogava e nada, e nada. Meu deus do céu, mas será que eu atirei pedra na cruz? Custa me ajudar? Afinal você é pai ou é padrasto? Eu não conseguia mais raciocinar. O desespero tomava conta de mim. Eu só não chorava porque homem não chora. Eu lá jogando água com as mãos e o cheiro tomando de conta. O banheiro ficava do lado da sala onde estavam todos. E todos sabendo que a descarga estava quebrada. A velha devia estar se desmanchando em gargalhada. Fui tentando me acalmar. Não posso perder a cabeça. Lembrei que ainda não havia me vestido. Virei-me para pegar o papel. Que papel? Não tinha papel, não tinha papel. Minha nossa senhora o que eu faço agora? Não tive dúvidas: fiquei na ponta do pé esquerdo e projetei a bunda sobre a pia para lavá-la. A calça e a cueca no calcanhar da perna direita e na altura do joelho da perna esquerda que apoiava todo o corpo. Que coisa mais deprimente. Mas não importa, resolvo o um problema, visto a calça e depois resolvo o da descarga.
Quando eu já estava ficando contente com estas idéias, percebi que a pia fez um "crek" e antes que eu pudesse tomar alguma atitude, a pia se desprendeu da parede e foi se espatifar no chão sujando tudo em volta, inclusive minha calça domingueira.
De repente um "toc, toc" na porta me chamou a atenção. Pacheco, tudo bem aí? Sim amor, tudo bem. Deixei cair uma coisinha aqui. Por que menti eu não sei. Afinal eu não ia conseguir consertar tudo mesmo. Acho que foi pelo desespero, porque depois disto vesti minha calça suja e com aquilo sujo e pequei um canivete que eu trazia no bolso para abrir a válvula da descarga, estava disposto a tudo para me livrar daquele cheiro. Comecei. Tirei um parafuso, depois outro e outro. Sem que eu previsse, um jato de água saiu da parede e me acertou bem na cara fazendo um barulho imenso. Mais que depressa procurei a chave do registro e nada. A chave não estava lá onde deveria estar. Por que cargas d´água a chave do registro não estava onde deveria?! Entrei em pânico. Minhas lágrimas se misturaram com a água do rosto ensopado. Aliás, rosto, camisa e calça. A água já saia por baixo da porta.
Não tinha mais jeito. Minha única alternativa agora era procurar sair do banheiro com um mínimo de dignidade, se possível. Todos já batiam na porta querendo saber o que se passava. E agora o que eu faço?
Tive uma idéia, não era a melhor idéia do mundo, mas foi o que de melhor consegui pensar para o momento. Peguei um sabão, molhei, fiz bastante espuma e taquei na boca. Abri a porta e simulei um ataque cardíaco. Todos estavam na porta: minha ex-namorada, claro, a esta altura, o ex-sogro e minha ex-sogra com aquele sorrisinho nojento no rosto. Minha namorada entrou em desespero, meu sogro me examinou e correu para o telefone, minha sogra não acreditava e mantinha o sorrisinho no rosto. Cai no chão. A ambulância chegou. Agora eu estava encrencado. Mas se a mina não fosse para o hospital já estava bom. Na ambulância estavam eu, deitado na maca, e dois enfermeiros. Os enfermeiros naquela correria toda e eu olhando com um dos olhos entreabertos. Lá pelas tantas um dos enfermeiros se virou para mim com aqueles dois aparelhos nas mãos, aqueles que dão choques elétricos em quem está à beira da morte. Abri os olhos o máximo que pude, arregalei-os, limpei a boca e gritei: para maluco! Enpurrei-os, abri a porta da ambulância e corri pelas ruas feito louco. Detalhe, a ambulância ainda estava parada perto da casa do meu ex-sogro. Que vergonha!