Em entrevista ao programa Roda Viva, na TV Cultura, em 5 de abril de 2004, o empresário Ruy Mesquita, diretor do jornal O Estado de S. Paulo, disse que para seu pai, Júlio de Mesquita, o principal adversário era o getulismo. Os dois Mesquita estiveram na linha de frente da conspiração que levou ao golpe militar de 1º de abril de 1964, e a afirmação é reveladora das raízes das contradições que levaram àquela ação militar contra a democracia, e que foi um episódio da luta de classes e da resistência das classes dominantes contra o alargamento da democracia, e também da disputa em torno dos rumos do desenvolvimento brasileiro.

Essa disputa crescia desde o final do Estado Novo, em 1945, demarcando os campos que se enfrentariam nas décadas seguintes: o nacional desenvolvimentismo de Getúlio Vargas e o campo pró-americano, conservador e antiindustrialista (hoje chamado de neoliberal).

Getúlio Vargas inquietava as elites desde que começou a mudar sua política em 1945. Ele restabeleceu relações diplomáticas com a URSS, anistiou os presos políticos, aliou-se ao Partido Comunista do Brasil e decretou uma lei antitruste em defesa da economia nacional. Sua deposição foi o primeiro episódio do confronto entre os dois campos, que culminaria em 1964 com o estabelecimento da mais longa ditadura militar da história do Brasil. Após 1945, o governo do marechal Eurico Gaspar Dutra foi um retrocesso democrático e econômico. Foi a continuidade da repressão contra os trabalhadores, cuja liberdade de organização foi severamente restringida, com seus sindicatos manietados e com o Partido Comunista do Brasil posto na ilegalidade. Na área econômica, aquele governo – baseado na coalizão conservadora que uniu o PSD e a UDN – praticou um livre-cambismo antinacional e antiindustrialista que faria inveja aos atuais defensores do neoliberalismo.

O campo nacional-desenvolvimentista reafirmou-se em 1950 com a eleição de Vargas para seu segundo mandato presidencial. "A minha atuação obstinada”, disse ele durante a campanha eleitoral, “foi transformar em nação industrial uma nação paralisada pela monocultura extensiva e pela exploração primária das matérias-primas". A reação da elite pró-americana contra sua eleição foi imediata e um de seus líderes, o jornalista Carlos Lacerda, defendeu o golpe militar contra a volta de Vargas que, dizia, "não deve ser candidato à Presidência. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de governar" (Tribuna de Imprensa, 1° de junho de 1950).

Mas Getúlio foi eleito e a declaração de Lacerda foi seguida como um programa que procurou fomentar a reação militar contra o eleito. Mas Vargas atraiu para seu governo o general Góes Monteiro, líder do golpe de outubro de 1945, e os setores nacionalistas do Exército que queriam uma política industrial para dar autonomia à defesa nacional. No governo, Vargas adotou várias medidas democráticas e de defesa da economia nacional, como o fim da exigência de atestados ideológicos nas eleições sindicais e a lei antitruste (que havia sido abolida pelos golpistas de 1945). Enfrentou forte oposição que explorava, inclusive, as limitações do nacional desenvolvimentismo que conciliava nacionalismo e participação do capital estrangeiro na economia levando, em certos momentos, a concessões às pressões imperialistas.

Quando Vargas nomeou João Goulart, do PTB, como ministro do Trabalho, a crise se agravou e tomou um ponto sem retorno depois do anúncio da disposição de dar um aumento de 100% ao salário mínimo. Oficiais superiores do Exército condenaram a decisão através do Manifesto dos Coronéis, de fevereiro de 1954, onde argumentaram que os ganhos dos operários alcançariam os "vencimentos máximos de um graduado”, sendo uma “aberrante subversão de todos os valores profissionais”.

Mesmo assim, Vargas mandou uma mensagem anual marcadamente nacionalista ao Congresso Nacional em 1954 e anunciou medidas para limitar a remessa de lucros ao exterior dos capitais estrangeiros aqui investidos, mas vacilou na adoção do monopólio estatal do petróleo e na criação da Petrobrás. E, em 1° de Maio, concedeu aumento de 100% para o mínimo. O embate permanente entre o programa de desenvolvimento capitalista autônomo para o país, e as forças conservadoras e entreguistas, antinacionais, antipopulares e antidemocráticas terminou em 24 de agosto de 1954 com o suicídio de Vargas. O golpe só não prosperou em conseqüência da intensa explosão da ira popular após o suicídio, frustrando parcialmente aquela ação antidemocrática e antinacional. Mesmo assim, para Carlos Lacerda o país estava em pleno ciclo revolucionário. "Era preciso começar de novo”, escreveu, “com o interregno de um governo de exceção que limpasse o caminho para a restauração da democracia". E pedia uma "ditadura a prazo fixo e boazinha". Contudo, o governo dos golpistas, dirigido por João Café Filho e e com expoentes do entreguismo, como Eugênio Gudin, Otávio Gouveia de Bulhões e Otávio Marcondes Ferraz, não teve forças para impor integralmente seu programa antinacional, antidemocrático e antiindustrialista e fazer a reforma cambial exigida pelos conservadores, nem acabar com o monopólio estatal do petróleo (odiado pelos conservadores e pelos representantes do capital estrangeiro) ou cancelar a eleição presidencial marcada para 3 de outubro de 1955. Mas conseguiu revogar as restrições às remessas de lucros ao exterior pelas multinacionais. Permitiu também a importação, pelas multinacionais, sem cobertura cambial, de máquinas e equipamentos obsoletos.

O choque entre os dois modelos continuou sob Juscelino Kubitschek, que governou de 1955 a 1961. Visto como um herdeiro de Vargas, ele enfrentou a conspiração dos militares direitistas e das forças conservadoras, que tentaram impedir sua posse, afinal garantida pelo contragolpe “preventivo” do marechal Henrique Teixeira Lott que, em 11 de novembro de 1955, afastou da presidência os golpistas de 1954. E enfrentou reações de militares conservadores que, em fevereiro de 1956, levantaram-se em Jacareacanga, no Pará, promovendo outro levante em 1959, em Aragarças (GO).

Juscelino mudou o modelo nacional-desenvolvimentista de Vargas e inaugurou um período de crescimento econômico baseado no capital estrangeiro cujo foco era o setor de bens de consumo duráveis (como eletrodomésticos, automóveis etc), abrindo as portas para as multinacionais, aprofundando um modelo, mais tarde chamado de dependente associado, aceitável para as classes dominantes, principalmente as elites agrárias e o capital financeiro. Não alterava a estrutura social do país e tinha a vantagem, para elas, de manter o movimento operário sob controle. O latifúndio continuava intocado, o capital financeiro aprofundava a ligação com o imperialismo; a burguesia fazia bons negócios com as multinacionais; e a classe trabalhadora parecia satisfeita com os empregos abertos pelas novas indústrias. Todos pareciam felizes e a concórdia parecia finalmente instalada na sociedade brasileira.

Sob os governos de Vargas, Juscelino e João Goulart a luta para consolidar a democracia tomou impulso. As medidas policiais contra dirigentes comunistas foram canceladas por Juscelino; as greves se multiplicavam – embora duramente reprimidas pela polícia – e a organização sindical dos trabalhadores se aprofundava com a criação das primeiras centrais sindicais, como o Pacto de Unidade e Ação – levando, na década de 1960, à criação do Comando Geral dos Trabalhadores. A luta dos trabalhadores avançou e, em 1962, chegou ao caráter de greve política, impedindo a nomeação do conservador Auro de Moura Andrade como primeiro-ministro. No campo, as primeiras ligas camponesas surgiam desde meados da década de 1950 e, no governo Goulart, crescia a organização de sindicatos de trabalhadores rurais.

Para os setores conservadores e reacionários, essa era uma ameaça inaceitável. No campo político-eleitoral, as restrições antidemocráticas já se manifestaram na Constituinte de 1946, onde deputados defenderam o voto de qualidade, com privilégios para os eleitores diplomados em administração, ciência política ou direito. Para Ataliba Nogueira (PSD/SP), os votos dos advogados deviam ser contados em dobro! Na década de 1950, o jornalista Afonso Henriques, ligado à UDN, queria que um “voto cultural progressista”.

Isto é, o voto dos alfabetizados sem ensino fundamental completo valeria um; com ensino fundamental completo, valeria dois; assim sucessivamente, até os eleitores com curso superior, cujo voto valeria quatro.

A democracia era identificada com o comunismo e, para o clero católico conservador, atentava contra a “ordem constituída por Deus”, como pregava o Catecismo anticomunista de D. Geraldo Sigaud, arcebispo de Diamantina, MG, em 1963. Nessa linha, patrões e latifundiários pernambucanos acusavam, em 1963, o governo de Miguel Arraes de criar um “clima de terror e insegurança” por não permitir que a polícia reprimisse greves de trabalhadores rurais e por tomar medidas para desarmar as milícias particulares dos fazendeiros. Para os fazendeiros, era uma técnica de “desmoralização do princípio da autoridade”.

No campo econômico, as conquistas políticas traduziam-se em ganhos salariais que escandalizavam os conservadores. Naquele período o salário mínimo alcançou seus valores mais altos desde sua criação em 1940; e os coronéis não foram os únicos a reagir contra esses ganhos. Em 1960, por exemplo, um alarmado e conservador Roberto Campos constatou que a parcela dos trabalhadores na renda do setor urbano passava de 60% do total. Anos mais tarde, Miguel Arraes fez um diagnóstico preciso desse antidemocratismo: naquela época, escreveu: “Havia quem entendesse como uma desordem o fato de todos serem iguais perante a lei”.

As contradições do período JK foram maquiadas pelo crescimento econômico. O ímpeto da produção industrial transformava profundamente a sociedade brasileira e, no campo, o impacto do capitalismo mudava a vida dos trabalhadores rurais com a crise do colonato (sistema em que o lavrador morava na fazenda e era remunerado pelo salário e pelo direito de ficar com parte da produção ou produzir para seu próprio consumo); começou, então, a crescer o número dos diaristas (depois conhecidos como bóias-frias).

O agravamento das contradições no final do governo Juscelino levou a grandes greves nas cidades e no campo. A dívida externa chegou a 3,8 bilhões de dólares e a inflação alcançou 52%, em 1959, e 23%, em 1960 – alta demais para os padrões da época.

Em seu curto período em 1961, Jânio Quadros encarnou, para a elite conservadora, o “iluminado” que poria ordem na política e na economia – no trilho do conservadorismo liberal, mesmo tendo como contrapeso um vice progressista, João Goulart (naquela época, a eleição do vice era independente da do presidente). Mas nove meses depois da posse Jânio renunciou, esperando voltar ao governo nos braços do povo e com poderes fortalecidos. Abriu assim uma grave crise política, pois os ministro militares tentaram impedir a posse do vice, João Goulart que era, para a elite conservadora, a própria encarnação da “ameaça” operária e sindical. E da concepção de desenvolvimento autônomo, que não interessava ao imperialismo e a seus aliados brasileiros. Os ministros militares esbarraram na intransigência do Congresso Nacional e da população em defesa da legalidade contra a tentativa de golpe iniciada no Rio Grande do Sul, onde o governador era Leonel Brizola, e com importante participação do Partido Comunista do Brasil. O próprio exército rachou, chegando à beira da guerra civil, até que a crise foi resolvida com a adoção do regime parlamentarista, limitando os poderes do presidente da República. Quando, em 7 de setembro de 1961, Goulart recebeu a faixa presidencial, a crise parecia superada.

Mas não estava. A emenda parlamentarista previa um plebiscito para julgar a nova forma de governo, exigência que ficou irrecusável depois que a CGT convocou uma greve geral em sua defesa em setembro de 1962 – outra ação inaceitável para os conservadores, uma greve de trabalhadores para influir na política. Quando a consulta popular realizou-se, em janeiro de 1963, foi como se Goulart tivesse sido eleito outra vez para o cargo: recebeu 90% dos 11 milhões de votos. A conspiração dos conservadores contra o sistema democrático e contra Goulart, que vinha desde sua posse em 1961, tomou vulto, com poderoso apoio norte-americano. Para apoiar candidatos direitistas na eleição de 1962, o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais, outro órgão conservador formado por empresários, latifundiários, parlamentares direitistas e agentes norte-americanos) gastou cerca de 20 milhões de dólares. O país foi invadido por membros do Peace Corps: em 1962 e 1963, entraram no Brasil 7431 agentes norte-americanos. Ao mesmo tempo, o governo dos EUA, os banqueiros e empresários privados, suspenderam as linhas de crédito ao Brasil para sufocar economicamente o governo.

Goulart oscilou entre um apoio decidido à mobilização popular e tentativas para aplacar as elites. Quando finalmente decidiu-se a subir no palanque das reformas de base (principalmente as reformas: agrária, cambial e educacional) juntando-se ao movimento popular, era tarde demais.

A santa aliança dos proprietários e conservadores já envolvia a classe média numa base de massa em busca de legitimidade para o golpe que estava em andamento e, quando as tropas do general Mourão Filho saíram de Juiz de Fora para o Rio de Janeiro, na madrugada de 31 de março para 1º de abril de 1964, encontraram um governo débil e indefeso. À fragilidade da organização popular e democrática, os golpistas opunham a férrea articulação elaborada nos meses anteriores, envolvendo empresários, militares, latifundiários, autoridades religiosas, representantes das multinacionais – uma das mais eficientes e monolíticas conspirações já vistas na história brasileira, conciliábulo de privilegiados e
mandões de todo tipo da política brasileira.

O golpe militar foi também uma derrota para os reformistas que desde 1958 predominavam na agremiação comunista dirigida por Luís Carlos Prestes. Eles apostaram principalmente em articulações de cúpula, subestimando a organização popular e, anos mais tarde, Prestes reconheceu que aquela havia sido uma política direitista e que seu erro foi ter orientado seus partidários a recuarem em todas as frentes – uma posição coerente com a tese de que o golpe seria passageiro e a normalidade democrática voltaria logo.

A liderança reformista acreditava que tinha um pé no governo e isso bastava para assegurar o movimento popular. Em conseqüência, não o levou a se enraizar solidamente nos bairros e locais de trabalho – com exceção do movimento camponês pela reforma agrária –, a despeito das grandes greves. Engano trágico, como revelou a fragilidade da mobilização quando o golpe ocorreu. No Rio de Janeiro, só os ferroviários aderiram à greve geral pela legalidade, favorecendo aos golpistas, pois tirou de circulação o meio de transporte para levar massas populares ao centro da cidade.

O alvo dos golpistas, como o PCdoB constatou corretamente no documento O golpe de 1964 e seus ensinamentos, de agosto de 1964, eram as forças populares. Eles voltaram-se contra a relativa liberdade que permitia a organização dos trabalhadores da cidade e do campo; o "avanço do movimento democrático e antiimperialista preocupava seriamente os reacionários do país e dos Estados Unidos", como o documento do PCdoB registrou, juntamente com a autocrítica de erros esquerdistas semelhantes aos que, hoje, sob Lula, parcelas expressivas da esquerda voltam a cometer por não compreender o caráter do governo e da luta em curso no país.

Mas o poder discricionário nascia dividido. Seus personagens foram os mesmos que agiram contra Vargas e o nacional desenvolvimentismo em 1945 e 1954. Havia uma unanimidade entre eles: a profunda aversão à democracia e à extensão dos direitos do povo e dos trabalhadores. Mas divergiam quanto aos rumos que o novo regime iria imprimir ao país. No governo do primeiro presidente militar, o marechal Castelo Branco, pontificou a mesma constelação livre-cambista do efêmero governo de Café Filho, em 1954, com figuras como Otávio Gouveia de Bulhões e Roberto Campos. Mas não havia consenso entre os militares a respeito daquele liberalismo, e o conflito entre essa orientação e a busca de um desenvolvimento com alguma margem de autonomia marcou aquele regime. A solução para esse impasse foi o aprofundamento do modelo associado dependente que tomou corpo no governo Juscelino.

O regime nascido em 1964 eliminou a democracia, perseguiu, torturou e assassinou democratas, nacionalistas e progressistas. E aumentou a dependência externa do país ao ancorar o desenvolvimento do país na busca de capitais estrangeiros e na atração de multinacionais.

Ao final das duas décadas de regime discricionário o país cresceu e passou a figurar entre as oito maiores economias industriais do planeta – mas era uma industrialização sem autonomia e com seus centros decisórios fora do país, resultado não do nacional reformismo, que eles recusavam, mas do modelo dependente e associado que aprofundaram. Sua crise deixou um Brasil com problemas sociais agravados, uma dívida externa recorde, um crescimento urbano descontrolado, e com uma desigualdade social que parece insuperável. O conflito entre o clamor pelo desenvolvimento autônomo e soberano, por um lado, e a exigência liberal (hoje neoliberal) de integração subordinada à economia mundial, por outro, permanece. E a necessidade de sua superação pela adoção de um rumo próprio de desenvolvimento coloca-se, hoje, com mais força e urgência do que nunca.

*José Carlos Ruy é jornalista e editor de Princípios.

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EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 55, 56, 57, 58