A Reforma do Ensino Superior Privado
A expansão do ensino superior ocorrida nas últimas décadas e em pleno desenvolvimento atual se dá dentro de uma lógica política diferente da exercida e orientada durante o período da ditadura militar.
A expansão no período da ditadura militar foi movida por três principais eixos: por uma inclusão de setores médios da população no ensino superior através de um aumento das IES públicas, com a criação de inúmeras federais e de algumas estaduais que passaram a compor o núcleo central da expansão universitária, criando um sistema nacional universitário para tornar a universidade centro formador de um contingente numeroso de técnicos e especialistas para atender o modelo de desenvolvimento dependente do capital internacional e promover um crescimento do ensino privado cujas características foram demarcadas principalmente pela existência de faculdades isoladas, sendo poucas as universidades privadas se compararmos com os dados atuais.
Em 1964 as vagas no ensino superior público representavam 60% do total; já em 1985 representariam 30% do total.
Foram criadas inúmeras facilidades para a construção de uma vasta rede de estabelecimentos de ensino privados através da concessão de subsídios diretos e indiretos.
Apesar de toda rede privada durante o regime militar responder a apenas 2% das pesquisas universitárias realizadas, estas pesquisas se concentravam em um número muito restrito de universidades, com características muito específicas.
As universidades privadas, principalmente as católicas e Pontifícias, recebiam subsídios públicos que reduziam suas mensalidades, propiciando, além disso, a possibilidade da criação em algumas delas de programas de pós-graduação que historicamente foram se constituindo em referência. Todavia, na medida em que os governos militares incentivaram o crescimento do setor privado no ensino superior e o Conselho Federal de Educação passou a autorizar o funcionamento de um número cada vez maior de faculdades isoladas, que em 1984 já somavam mais de 800 em todo o país, foi deixando de exercer qualquer ação fiscalizadora nessas instituições que, assim como atualmente, estão livres para oferecer um ensino de péssima qualidade, através de contratação de professores em regime de hora-aula.
Durante a ditadura militar, apesar de grande expansão do ensino privado que concentrava mais de 60% das matrículas, ocorreu também um certo desenvolvimento do ensino público universitário através da fundação de universidades federais e estaduais, principalmente nas regiões nordeste e norte do país.
A expansão do ensino superior que presenciamos atualmente ocorre dentro de uma outra lógica e dentro de uma outra orientação política.
O fim da ditadura militar trouxe à tona diferentes concepções políticas acerca dos rumos do ensino superior no país, além de evidenciar concepções diferenciadas sobre a necessidade de uma nova reforma universitária.
Os setores progressistas defendiam uma ampla democratização das universidades, um padrão de qualidade único para o ensino superior no país, a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão e uma ampla autonomia universitária entendida como fundamental tanto para a democratização da estrutura do ensino superior como também para livre produção de conhecimento. Levantaram a bandeira do ensino público e gratuito, laico e de qualidade e verbas públicas apenas para as escolas públicas.
A Constituição aprovada em 1988 refletiu esse debate; no entanto, no que diz respeito às verbas públicas abriu um enorme flanco no artigo 213 que permite a concessão de verbas públicas para as escolas confessionais, comunitárias e filantrópicas.
Como se já não bastasse, esse artigo ao separar quem pode ou não receber verbas públicas pressupõe a idéia (que reflete a realidade) da existência de instituições de ensino puramente empresariais, que visam a lucro, liberadas a explorar a educação e o conhecimento como mercadorias.
Ao analisarmos o Decreto do Presidente da República nº 2.306, de 19 de agosto de 1997, e o Decreto nº 3.860, de 19 de julho de 2001, observaremos claramente como de fato a desregulamentação foi sendo construída na forma da lei.
O Decreto nº 2.306 em seu artigo 7º afirma: “As instituições particulares de ensino, classificadas como particulares em sentido estrito, com finalidade lucrativa, ainda que de natureza civil, quando mantidas e administradas por pessoa física ficam submetidas ao regime mercantil, quanto aos encargos fiscais, para fiscais e trabalhistas, como se comerciais fossem, equiparados seus mantenedores e administradores ao comerciante em nome individual”.
Esse mesmo artigo no decreto de 2001 é desenvolvido no sentido de dar formatação ainda mais liberalizante a esse setor.
Após a promulgação da Constituição de 1988 os artigos que se referem à Educação deveriam ser regulamentados através da elaboração de uma Lei de Diretrizes e Bases e de um Plano Nacional de Educação.
Passados vários embates, o balanço que fazemos é de que a Lei de Diretrizes e Bases aprovada é propositadamente ambígua no que diz respeito ao padrão de qualidade único para o ensino privado e público, a democratização das instituições de ensino superior e quanto às exigências de plano de carreira e contrato dos professores do ensino superior.
Formaliza a existência em 5 tipos básicos de Instituição de ensino superior, qualificando-as em: Universidades, Centros Universitários, Faculdades Integradas, Faculdades Isoladas e os Institutos Superiores ou Escolas Superiores. Cria, ainda, um contra-censo quando pressupõe universidades por área de saber e a divisão entre instituições de ensino e instituições de pesquisa.
A autonomia universitária que se refere à LDB ao ser aplicada segundo o entendimento dos empresários da educação representa liberalidade total para a criação de novos cursos e formatação dos “tradicionais”, uma vez que os critérios estabelecidos para a provação de cursos são extremamente facilitadores e os empresários se especializaram em burlar qualquer tipo de controle avaliativo.
Conceder autonomia administrativa e de gestão para empresas de direito privado é falar do óbvio. Como donos e patrões, os empresários possuem toda a autonomia necessária para dirigir, contratar e demitir, com o agravamento de as Mantenedoras juridicamente serem entes diferentes das mantidas criando para os empresários uma facilidade no descumprimento das legislações trabalhistas e outras. A autonomia universitária, como preceito constitucional, representa princípio que deve ser regulamentado com o seu equivalente de responsabilidade social.
A exigência de gestão democrática dos rumos acadêmicos e administrativos e a existência e funcionamento de órgãos colegiados representa para os empresários da educação uma intervenção inadmissível em suas empresas.
Não é à toa que a LDB não se refere da mesma maneira sobre autonomia universitária para o ensino superior público e privado.
As empresas de educação já possuem autonomia de contratação sem concurso e o controle quase que total tanto dos conteúdos quanto da duração dos cursos, oferecidos segundo as demandas do mercado e visando, se possível, a pequeno investimento e muito lucro.
A LDB, do artigo 43 ao 57 – que regem o ensino superior – é vaga e omissa no que regulamentaria um padrão de qualidade único e extremamente precisa e detalhista no que se refere à consolidação de uma estrutura do ensino superior que vem sendo questionada historicamente pelas associações docentes e discentes em todo o país.
O Plano Nacional de Educação, recentemente aprovado, além de refletir as anomalias contidas na LDB reforça que a política de expansão do ensino superior no país se dará preferencialmente através da ampliação das vagas nas instituições privadas em clara conformação com o projeto antidemocrático e neoliberal.
No PNE aprovado, as metas que indicavam pequeno avanço foram vetadas por FHC. Somente na seção do ensino superior o Presidente da República, dos nove vetos totais, fez quatro.
A meta que estabelecia uma oferta de vagas nunca inferior a 40% no ensino superior público; a que criava um Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Superior de pelo menos 75% dos recursos da união, vinculados à manutenção e à expansão da rede de instituições federais; a que ampliava o acesso ao crédito educativo; e, por fim, a que ampliava o financiamento público à pesquisa científica e tecnológica, triplicando em dez anos os recursos atualmente destinados a essa finalidade.
A política neoliberal concretizada em nosso país, particularmente durante o governo FHC, trouxe profundas mudanças na educação, orientando uma ampla reforma educacional ainda em curso.
Essa reforma educacional, de forte marca economicista e tecnocrática, retira a educação da esfera dos chamados direitos da cidadania e a coloca como um serviço disponível no mercado.
A educação sai da esfera do público dirigindo-se à esfera do privado. Sai do âmbito dos direitos e se coloca no dos serviços não exclusivos do Estado, assim como ocorre com a saúde e a previdência social.
Sob a determinação do Banco Mundial, foram sendo moduladas: tanto a estrutura quanto a função dos vários níveis e modalidades da educação no Brasil – da educação infantil à pós-graduação.
Até os anos 70 o Banco Mundial compunha-se como uma agência internacional de financiamento e assistência técnica para projetos de investimentos, deslocando depois sua esfera de atuação para assumir um perfil mais político: coordenar o “desenvolvimento sustentado independente”, passando a se constituir como uma das principais agências de financiamento para projetos sociais, voltados ao combate à pobreza por meio da educação, da saúde e principalmente da agricultura.
No Brasil verificam-se várias inserções do banco mundial na educação.
No ensino superior verificamos que a partir de 1990, com a Conferência Mundial para Todos realizada em Jontiem, o Banco Mundial orienta sua prioridade para a educação básica, reafirmada no Relatório Sobre o Desenvolvimento Mundial: o trabalhador e o Processo de Integração Mundial, de 1995, “recomendando” aos governos que centrem “a inversão pública na educação básica, recorrendo ao mesmo tempo, em maior grau, ao financiamento familiar para a educação superior”.
Em março de 2000 o Banco mundial orienta no sentido da necessidade de uma ação urgente no sentido de expandir e melhorar a qualidade da educação superior nos países pobres, vinculando o seu desenvolvimento a esse nível de ensino.
O que aparentemente soa como reorientação não é. Basta analisar a expansão do ensino superior no Brasil depois da década de 90 e os conceitos de avaliação de qualidade que compõem a avaliação institucional elaborada pelo MEC neste período.
A privatização da educação e sua transformação em serviço orientam tanto a política para a escola pública como privada e vem sendo construída através de um conjunto de leis e por um número absurdo de portarias, que pouco a pouco vão desestruturando a educação nacional e estruturando um “novo” modelo mais acentuadamente privatista e antidemocrático de educação.
As instituições privadas dirigiram e deram os parâmetros para a estruturação do ensino superior, moldando a lei segundo a realidade estabelecida por esse setor durante a sua história.
Uma análise da maioria dos proponentes e dos projetos que ainda hoje estão na Comissão de Educação da Câmara dos Deputados para tramitação, evidenciaria sem dúvida essa conclusão.
É principalmente nisto que reside a privatização da educação em nosso país como um todo e particularmente a do ensino superior. Privatização que remodelou tanto o ensino superior público como o privado.
A expansão do ensino superior ocorrido nas últimas décadas respeita essa lógica política.
O crescimento verificado no oferecimento de vagas no ensino superior se deve principalmente ao crescimento da rede particular de ensino que ocorre tanto através da ampliação do número de vagas e cursos como pela fundação de novas IES privadas em todo o país.
Esse crescimento é orientando, pela grande defasagem de vagas nas IES públicas diante de uma demanda crescente pelo ensino superior e por uma orientação que tem como objetivo o rebaixamento do papel do nosso país na estrutura internacional.
O crescimento que vem ocorrendo no ensino superior não respeita um projeto maior de desenvolvimento econômico e social do país, está em acordo com as exigências estatísticas dos órgãos internacionais (Banco Mundial) e em acordo com a obtenção de lucros.
Não existe dúvida quanto à necessidade objetiva de expansão do ensino superior no país já que a inclusão no ensino superior no Brasil é aviltante se comparado com a inclusão que existe na maioria dos países da América Latina e Central e a formação universitária é fundamental num projeto de formação profissional, científica e cultural de quadros.
No entanto, análise dos dados dos sensos de 1998 a 2004 revela a qualidade que se esconde por trás da expansão quantitativa do ensino superior.
Se em 1998 o número de universidades privadas quase ultrapassava o número total das públicas somadas entre si, em 2000 o governo parece ter conseguido melhorar sua meta, ou seja, o número de universidades privadas já ultrapassava o número total de públicas somadas, com uma observação impressionante: diminuiu de 8 para 2 o número de universidades municipais em apenas dois anos.
Em 1994 existiam 127 universidades em todo o país, das quais 39 eram federais; 25 estaduais, 4 municipais e 59 particulares.
Esse dado é relevante, uma vez que a década de 90 presenciou um movimento de transformação em todo o país: de centros universitários e faculdades integradas em universidades – fenômeno este que se acelera após 1994.
Na rede particular essa proliferação de universidades ocorre principalmente pelos seguintes fatores: 1) entendimento e aplicação de uma autonomia universitária que para os empresários da educação significa liberalização do ramo educacional, além da LDB dividir ensino pesquisa e extensão, considerando a existência de instituições apenas de ensino, criando, além disso, a possibilidade de universidades por campo de saber; 2) porque as exigências contidas na LDB para as universidades públicas e privadas são de caráter e ênfase diferenciadas; 3) porque as exigências de um número de professores titulados e com regime contínuo nas universidades têm sido interpretadas e implementadas pelos empresários da educação segundo os seus interesses, já que não existe uma regulamentação oficial sobre como devem ser constituídos os planos de carreira e os contratos por tempo contínuo; 4) porque a transformação de centros universitários e faculdades integradas em universidades otimiza os custos; regula, de certa forma, a concorrência; e amplia as margens de lucro.
É preciso acrescentar a esta análise que, apesar deste aumento do número de universidades e de Centros Universitários, ainda predominam no Brasil as IES isoladas que, em 2000, num total de 1180 IES, 855 eram desse tipo; das quais 782 particulares.
Em 2002 foram autorizadas 230 instituições – todas privadas; um crescimento de 19% em um ano se compararmos com os dados de 2001 do censo do ensino superior. Em 2003 ocorreu uma diminuição do crescimento: apenas foram credenciados 118 estabelecimentos mesmo assim ocorreu uma expansão de 8%. Atualmente estão tramitando no Conselho Nacional de Educação quase 1000 pedidos de credenciamento.
O dado, portanto, de crescimento do número de matrículas em 4 anos evidenciado pelo censo-1998 de cerca de 28% e que é apresentado como um grande avanço pelo MEC, quando comparado ao ocorrido em 14 anos (20,6%); e de um crescimento de 13,7% de 1999 a 2000, não explica a qualidade desse crescimento, que ocorreu direcionado para a rede particular, o que não demonstra uma democratização no acesso ao ensino superior, colocando nas mãos principalmente dos empresários da educação a “responsabilidade” na formação dos profissionais de nível superior.
As IES particulares em sua grande maioria demonstram, através dos dados retirados do censo/1998-2004, que a qualificação docente, o regime de contrato e o tipo de educação que estão oferecendo ao mercado não se baseiam num padrão de qualidade social.
No que diz respeito à qualificação docente, os dados do censo-1998 revelavam também uma grande desproporcionalidade entre as IES públicas e privadas. O número de docentes com especialização, mestrado e doutorado nas IES públicas era 62% maior do que nas IES privadas. Em 2000 esta relação era de 55% mais professores qualificados na rede pública do que na rede privada, mantendo essa proporcionalidade em 2004, com o agravamento de que na rede privada não existe o comprometimento na grande maioria das instituições com programa de qualificação docente, nem quadro de carreira.
Quando analisamos a expansão voltada ao interior do país, expressa através dos dados dos sensos (1998-2000), verificamos que ela vem se dando quase exclusivamente na rede particular, fundamentalmente em IES do tipo não-universitário, onde predomina o regime de contratação por hora-aula e com menor número de professores com mestrado e doutorado.
Acrescenta-se a isso o fato de os cursos mais oferecidos pela rede particular de ensino superior em todas as regiões do país serem: direito, administração e contabilidade e cursos de formação de professores de curta duração.
Estes são alguns dos dados que revelam que a expansão do ensino superior no Brasil vem se dando de forma articulada com a política mais geral de orientação neoliberal.
Demonstra um descaso com as futuras gerações de profissionais e com um projeto de desenvolvimento autônomo de nosso país.
É uma expansão antidemocrática e privatista, além de quase exclusivamente empresarial mercantil, responsável por 78% das matrículas.
A política de privatização do ensino superior moldou um complexo sistema privado que hoje possui características novas e uma tensão constante.
As chamadas comunitárias foram, com raras exceções, alterando seu caráter transformando-se em universidades lucrativas. Entre as filantrópicas existe uma enorme diversidade; isto sem falar nas modalidades estruturais e administrativas e de exigências entre os diferentes tipos de instituições de ensino superior.
Realmente precisamos de uma AMPLA reforma do Ensino superior para o país, porém, essa reforma tem que reorientar o ensino superior no Brasil para colocá-lo a serviço de um projeto democrático de desenvolvimento nacional.
E para isso sua expansão tem de estar direcionada por um planejamento nacional, levando-se em consideração as necessidades regionais e, ainda, a complexidade na formação de profissionais, técnicos e cientistas. Colocar o ensino superior voltado para as necessidades nacionais.
Faz-se necessário conceber e regulamentar o ensino superior privado como concessão do Estado, compondo juntamente com o ensino superior público um amplo e articulado sistema nacional de ensino superior que coloque padrões de qualidade, redefina a expansão, fortaleça a democracia e regulamente a autonomia universitária, orientando as políticas de ensino pesquisa e extensão.
Resgatando a importância da graduação, atualizando os currículos com uma formação ampla, crítica e com fundamentação teórica, abrindo possibilidades para a continuidade da formação e a possibilidade de utilização dos avanços das novas tecnologias de comunicação e informação. Que impulsione a produção de conhecimentos retirando do foco as avaliações meramente quantitativas da produção docente e discente. Redimensione a estrutura universitária no sentido de democratizá-la e de agilizá-la para que cumpra seu papel social e que fundamentalmente democratize o acesso e permanência colocando como meta principal a expansão da educação superior pública e gratuita.
Esse sistema do ensino superior brasileiro deve colocar a universidade a serviço da complexa sociedade brasileira.
O Sistema Nacional do Ensino superior necessitará redefinir o que é universidade e colocá-la a serviço da formação básica e continuada dos professores e trabalhadores da educação básica.
*Madalena Guasco Peixoto é doutora em Filosofia e História
da Educação pela PUC/SP; autora do Livro “A Condição Política na Pós-Modernidade: A Questão da Democracia” (São Paulo, Educ.1999); diretora Geral do Centro de Educação da PUC/SP; diretora de Assuntos Educacionais da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (CONTEE); e membro da executiva Nacional do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública.
EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 42, 43, 44, 45, 46