A violência está à mesa
A questão da violência criminal vem ganhando espaços cada vez maiores na agenda política dos governantes, parlamentares, pesquisadores e no rol das preocupações da sociedade civil, atingindo o cotidiano de cada cidadão. Ninguém mais está neutro ou indiferente a esse angustiante problema, pois ele interfere na vida de todos. Assistimos a uma escalada da violência envolvendo crescentemente os jovens – uma das heranças mais nefastas e macabras produzidas pelo modelo neoliberal produziu no hemisfério na última década. Enfim, a violência está à mesa.
Na guerra civil de Angola, por exemplo, de 1975 a 2002, morreram 350 mil pessoas; no Iraque, desde a invasão em 20 de março, foram mortos quase 11 mil civis. As vítimas das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki somaram 340 mil pessoas.
Em 2000, a taxa de mortes por armas de fogo no Brasil foi de 71,7 pessoas para cada 100 mil habitantes; 13 vezes maior que nos Estados Unidos: de 5,5 pessoas para 100 mil. Para se ter idéia da ignomínia, no Japão e em vários países da Europa Ocidental os índices são inferiores a 1 homicídio para cada 100 mil habitantes.
Recente pesquisa feita pelo IBGE – Síntese de Indicadores Sociais – mostra que a taxa de homicídios cresceu 130% em 20 anos, de 1980 a 2000; e que os jovens do sexo masculino de 15 a 24 anos são os mais atingidos por arma de fogo no Brasil – a taxa aumentou 95% no período. Os números – cerca de 600 mil brasileiros foram assassinados no período – são aterrorizadores.
Violência e o neoliberalismo
A pesquisa nos mostra que o crescimento descontrolado da violência está umbilicalmente ligado à crise econômica e ao enfraquecimento do Estado brasileiro. Dois terços das vítimas dessa estatística de terror morreram durante a década de 90, período em que a política neoliberal, do Estado mínimo, predominou – esta produziu cada vez mais concentração de renda, miséria e desemprego em massa; ingredientes que fazem fomentar mais violência.
A política neoliberal debilitou o Estado brasileiro não apenas como impulsionador de um projeto nacional de desenvolvimento, mas também em seu insubstituível papel de garantidora da segurança dos cidadãos. Os cortes orçamentários, a canalização absurda dos recursos e das riquezas da nação para pagamento da dívida e a ganância do capital financeiro, além de atentarem contra a vida e marginalizar milhões de brasileiros, também fragilizam as estruturas da segurança pública. O aumento da miséria e a inoperância do Estado, entre outros fatores, propiciaram o agigantamento do crime.
Quadrilhas, principalmente do ramo do narcotráfico, se robusteceram e, com freqüência, afrontam o Estado, exibindo seu poderio e patrocinando episódios em que a principal vítima é o povo indefeso, sobretudo, os trabalhadores e suas famílias. Essa verdadeira operação de desmonte deixou, também, esse complexo estatal-jurídico mais vulnerável à corrupção. E a corrupção é uma arma poderosa que o crime organizado tem ao seu dispor para obter tolerâncias. O caso da Rocinha, quando os bandidos se referiam, pelo rádio, aos policiais como "vermes" é exemplar. As bocas de fumo funcionam dentro de um acordo. E esse acordo foi rompido. O episódio denota de modo insofismável o grau de corrupção e cumplicidade a que chegaram.
Crime e pobreza
O recrudescimento da criminalidade é mais devastador nas periferias das regiões metropolitanas onde vivem os trabalhadores de baixa renda. Uma das explicações para o alto índice de assassinatos no Rio de Janeiro, por exemplo, é o fato de a Região Metropolitana, onde a violência é maior, concentrar 75% da população do estado. O Rio é uma cidade com mais de 600 favelas, tanto nas áreas ricas como nas áreas pobres, da zona sul à zona oeste. Ao longo de décadas, com políticas públicas débeis ou ausentes, nos três níveis de Poder (municipal, estadual e federal), o tráfico de drogas se fortaleceu, agravando ainda mais os problemas sociais dessas comunidades.
O Mapa do Fim da Fome II, organizado pela Fundação Getúlio Vargas, identifica as comunidades do Jacarezinho, Maré e Alemão como as mais pobres do Rio de Janeiro, seguidas da Rocinha – que têm hoje a maior taxa de desemprego, 19%, no estado. Isto demonstra como é fácil, para o tráfico, arregimentar cada vez mais contingentes. Sem trabalho, sem escola, com sonhos frustrados, grandes parcelas da massa juvenil acabam sendo tragadas pela marginalidade.
Não há como dissociar o problema da violência do agravamento da pobreza, da miséria e da falta de perspectiva, principalmente da população jovem. Há 30, 40 anos atrás também havia muita pobreza – menos miséria, é verdade –, mas era uma pobreza que ainda preservava os valores humanos. De lá para cá, a concentração de riqueza, os níveis de corrupção e criminalidade se multiplicaram. E os valores, a conduta ética e moral também mudaram. Infelizmente, para muito pior. Isso, de certa forma, explica a crueldade de grupos de jovens no comando ou servindo ao tráfico de drogas, aterrorizando comunidades onde nasceram e vivem.
Rio e mídia
No caso da crise atual no Rio de Janeiro é urgente uma ação conjugada do governo federal, estadual e municipal para, imediatamente, restabelecer a ordem na cidade e, progressivamente, vencer as quadrilhas de criminosos. Mas as soluções não virão sem integração e determinação política nos três níveis de governo. A prefeitura tem papel público a cumprir – certamente, não só ficar reprimindo camelôs. As pelejas políticas deflagradas pelo governo do estado não ajudam em nada o Rio de Janeiro. É inadmissível o policial do século XXI combater criminosos que usam armas sofisticadas com revólveres enferrujados. O governo federal deve compartilhar ações concretas de políticas públicas, não apenas com mero repasse de verbas públicas para o estado ou com soldados do Exército nas ruas. Isto já foi feito em seis ocasiões e não resultou em nada concretamente, a não ser uma leve sensação de segurança. O Congresso Nacional também tem a responsabilidade histórica de aprovar a modernização das Polícias, sobretudo, com iniciativas voltadas para combater a impunidade, um dos maiores entraves das instituições.
A atuação da mídia no Rio de Janeiro é outro componente a ser pensado. Há estudos que garantem que o medo do crime está mais associado às imagens do que à realidade do crime. E que o sentimento de insegurança em cidades como o Rio é projetado num medo generalizado da criminalidade. Por isto, na percepção da população em geral, a criminalidade ocupa lugar muito desproporcional em relação aos problemas estruturais, como saúde e educação, por exemplo. A violência criminal (não só os homicídios) que acontece no Rio é sempre superdimensionada, diferentemente do que ocorre em relação a outros estados. Qualquer problema relacionado ao tráfico no Rio de Janeiro ocorre numa situação geográfica diferente. E a repercussão é outra. Na geografia de São Paulo, por exemplo, existem zonas ricas e a pobreza concentra-se na periferia. No Rio, a zona rica e a zona pobre estão misturadas. A disputa entre traficantes pelo controle do tráfico de drogas na Rocinha é um exemplo. A repercussão inflacionada do confronto ganhou contornos mais graves por ter ocorrido justamente na zona sul, próximo a áreas nobres, onde vive grande parte da elite carioca. Não se quer responsabilizar a imprensa, mas ninguém merece toda aquela mensagem aterrorizante, com imagens exaustivamente repetidas em horário nobre por mais de dez dias seguidos, num marketing gratuito e desnecessário.
Macropolítica
O tráfico de drogas e armas se sustenta não nos morros e periferias das grandes cidades, mas principalmente na lavagem do dinheiro nos paraísos fiscais, um subproduto do capitalismo. Segundo alguns estudos, o montante anual do narcotráfico no mundo inteiro gira em torno de 50 bilhões de dólares. E, sem uma política para rastrear os fluxos financeiros do crime organizado e golpear as estruturas dos paraísos fiscais, desestruturar o tráfico é pura utopia. Como podemos verificar nas resumidas palavras de um autor boliviano:
"A nova economia da coca criou alterações dentro do contexto tradicional do camponês nos aspectos sócio-culturais, familiares, sociais, econômicos, financeiros, qualidade de vida… níveis de consumo, recreações etc. No contexto econômico, aumenta a capacidade financeira dos produtores de coca e de seus familiares, os preços sobem, abrem-se mercados para produtos que antes não se comercializavam (…) prolifera o setor de serviços, especialmente sua comercialização e financiamento.
Como aumenta a população fixa e flutuante, aparecem novas necessidades urbanas, as populações melhoram, se urbanizam com infraestrutura, serviços, comércios, lugares de diversão, educativa etc.
Em certos segmentos, surge uma vinculação financeira direta ou de intermediação entre os produtores de coca e agentes do narcotráfico, conjugado às vezes com as autoridades e o poder judiciário. Dá-se uma espécie de transmissão de prestígio político para a participação formal futura, isto é, a conexão narcotráfico-política". (Jordán Panda, 1990, artigo "Coca, cocaína, interdição e narcotráfico", Revista Boliviana de Ciências Sociais.)
No que nos concerne, aí está o nosso grande desafio: pressionar e reverter toda essa situação que está funcionando contra a democracia, contra os direitos humanos, contra os princípios de cidadania. Não dá para continuar tratando o problema brasileiro como as elites sempre trataram, no varejo, oferecendo ilusão de segurança. Nem adianta agir só na crise com soluções emergenciais e paliativas.
Devem ser desenvolvidas novas formas e novos métodos de luta que incluam intercâmbios, inclusive, entre nações. A saída é antes de tudo macropolítica. Por isso é tarefa do atual governo mudar a mão do problema. O governo Lula carrega essa expectativa, do enfrentamento. Tanto do ponto de vista das ações de curto e médio prazo, através de programas como o Sistema Integrado de Segurança, quanto principalmente das ações permanentes e efetivas no campo das políticas públicas. E o compromisso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva com o desenvolvimento do país, com geração de emprego, distribuição de renda, saúde e educação é, efetivamente, a solução de fundo para, se não resolver, pelo menos, controlar e reduzir a violência não só nas grandes cidades, mas em todos os cantos do Brasil.
*Edmilson Valentim é deputado estadual, líder do PCdoB na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro e membro do Comitê Central do PCdoB.
EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 19, 20, 21