Conforme foi amplamente divulgado pela grande imprensa, mesmo nas redes de TV, faleceu em 25 de setembro de 2003, aos 67 anos de idade, o prestigiado intelectual palestino, Dr. Edward Said, vítima de leucemia, de que sofria desde 1991. Said foi professor convidado de Teoria Literária em Princeton e Harvard, duas das mais prestigiadas universidades americanas.

Edward Said nasceu em Jerusalém em 1935. Era a época da ocupação e do mandato britânico na Palestina ocupada. Com 12 anos, ele mudou-se com a família para a cidade do Cairo, no Egito. Sua formação religiosa fora sempre cristã, protestante de orientação anglicana. Foi educado, até sua mudança para o Cairo, em escolas coloniais inglesas. Sua família era da elite – a que hoje chamamos classe média alta. Seu pai havia adquirido cidadania americana desde o final da primeira guerra mundial, o que facilitou a mudança da família para os Estados Unidos, onde Said adquiriu também a condição e status de americano. Emigrou de forma definitiva com sua família aos EUA em 1951, após a resolução da ONU de 1947, que dividia Jerusalém em duas partes: uma árabe e outra judaica. Com 28 anos, torna-se professor, em 1963, da prestigiosa Universidade de Colúmbia, local em que, em 1968, ocorreram grandes protestos em favor da paz e contra a guerra do Vietnã. Nessa universidade leciona, além de teoria literária, Literatura Comparada (inglesa e americana).

Said sempre foi um defensor da causa palestina, que considerava como sua, de seu povo, apesar de ser atacado pela direita e pelos sionistas americanos, que o acusavam de não ser palestino. Uma revista americana de extrema-direita e sionista chegou a fazer uma ampla e profunda investigação de sua vida e de seu passado na Palestina para provar que ele não era palestino e tentar desmoralizá-lo e enfraquecer a sua luta em defesa dos palestinos (1). Tudo em vão. Como todos os palestinos, em sua própria terra ou no exílio – como se considerava –, sempre sofreu perseguições. O pesquisador israelense Justus Reid Reiner chegou a acusá-lo de dramatizar a sua própria infância e o apresentou em um de seus artigos como um "professor de terror" (2). Mesmo no Brasil, o professor Said recebeu críticas depois de sua morte. O crítico e colunista da Folha de S. Paulo, Nelson Archer, arrasa nosso autor, chegando a acusá-lo de stalinista e cerceador das ciências. Um impropério completo (3). Archer é um famoso sionista é já deu demonstrações de ser antiárabe e antimuçulmano em diversos momentos em sua coluna (4).

Said foi membro da Conferência Nacional Palestina, uma espécie de parlamento no exílio, no período de 1977 a 1991. Durante esses catorze anos foi confidente de Iasser Arafat. Após a I Guerra do Golfo, praticamente rompeu com Arafat e as suas divergências aumentaram muito desde setembro de 1993, quando a OLP assinou com o Estado de Israel, os acordos de paz de Oslo.

Edward Said discordou de tais acordos, dizendo que a recém-criada Autoridade Nacional Palestina ficara com pouca autoridade e com pouca terra para administrar. Acusava que eles nada diziam sobre as colônias judaicas, fim da ocupação sionista, soberania nacional palestina, recursos hídricos, soberania aérea, entre outras coisas. De fato, os acordos não detalhavam isso e tantas outras coisas mais, como anistia aos presos políticos palestinos e direito ao retorno dos refugiados e, especialmente, o status da cidade santa de Jerusalém. Neste caso, o professor não levou em conta as dificuldades e a questão da correlação de forças naquele momento, com o fim da URSS e a derrota do Iraque na guerra e junto com eles os palestinos, que ficaram firmes ao lado do povo iraquiano no enfrentamento aos americanos. Na época, Said chegou a dizer que a OLP havia se "rendido" aos sionistas e americanos.

A proposta defendida por Said para o conflito palestino-israelense era a criação de um Estado binacional, único, que aglutinasse dois povos. Uma proposta na contramão de todas as que estão colocadas na mesa que menciona dois Estados nacionais convivendo pacificamente com fronteiras reconhecidas internacionalmente.

Uma sólida carreira acadêmica

Said sempre viveu dividido entre dois mundos, ou entre o "Oriente" e o "Ocidente", onde acabou vivendo toda a sua vida. Fala-se, em termos de psicologia e psicanálise, de "uma vida dual". Essa dualidade refletiu de forma marcante a sua produção acadêmica e intelectual. Estudou muitos autores em sua vasta produção acadêmica, entre eles o grande historiador e filósofo da história Jean Baptiste Vico, Conrad, Melville, Nietzsche, Merleau-Ponty. Especialista em música, ele estudou Glenn Gould em uma de suas obras, intitulada Elaborações musicais (SP, Imago, 1991).

Ficou mais conhecido internacionalmente com Orientalismo (SP, Cia das Letras, 1990), publicado em 1978. O livro é inteiramente dedicado a um casal, que é uma espécie de lenda entre os precursores das pesquisas e estudos sobre o Oriente Médio: Janet e Ibrahim Abu-Lughod. Tanto na dedicatória inicial quanto na página de agradecimentos, loas são dedicadas a eles (5). A obra traz na apresentação o autor brasileiro de origem árabe, Milton Hatoum (autor de Relatos de um certo oriente, também da Companhia, sobre o qual já comentamos em colunas publicadas no site Vermelho).

O centro da obra é mostrar aos leitores, a partir de uma extensa pesquisa documental, como a visão que os ocidentais possuem sobre o Oriente é uma obra criada pelos próprios ocidentais e dentro de interesses imperialistas e colonialistas. De fato o Oriente nos fascina. Seja por influência dos contos persas e árabes reunidos numa só obra chamada As mil e uma noites, a verdade é que há incontáveis romances, poesias, relatórios de viagens, escritos dos mais diversos tipos. Essa influência é maior a partir dos primórdios do século XIX, quando a colonização britânica expande-se no Oriente a partir da Índia e mesmo quando Napoleão chega ao Egito no início desse século.

Trata-se – de um modo geral – de uma obra que descreve como uma civilização fabrica visões para inventar uma outra. Debruçando-se sobre documentos oficiais, textos e escritos dos séculos XIX e XX, Said acaba estabelecendo uma "relação dinâmica entre esses autores orientais e empresas políticas de três grandes impérios: inglês, francês e norte-americano". E, também, além de toda essa documentação oficial, o professor Said como literato, ele mesmo pesquisou dezenas de obras, romances e poesias de autores árabes, que mostram essa visão do Oriente já influenciado pelo Ocidente. É claro que esse Oriente distante e imaginário influencia grandes poetas e escritores ocidentais, especialmente europeus, como Flaubert, entre outros. E, como conclui Hatoum, "o europeu, ao tentar reestruturar o Oriente, acaba desenhando a imagem de seu próprio rosto".

A obra se estrutura em três grandes partes, com suas respectivas subdivisões. A primeira delas trata do "Âmbito do orientalismo", onde o autor delimita o seu campo de estudos e pesquisa, inclusive do ponto de vista histórico e geográfico; na segunda, trata das "Estruturas e Re-estruturas orientalistas", quando discute um redesenho em termos de fronteiras orientais, simples riscos na areia de acordo com interesses europeus; religiosidade. Finalmente, na última parte, o autor trata do "Orientalismo hoje", onde discute o que chama de orientalismo latente e manifesto; o processo de secularização do orientalismo – o que o autor chama de "orientalismo anglo-francês" moderno e em vigor e atinge a fase mais recente (diga-se de passagem, o original em inglês publicado nos EUA saiu em 1977).

Registre-se o vigor intelectual do autor, então com 32 anos, nas mais de 400 notas de referências bibliográficas.

Outros livros do autor

Na seqüência dessa magnífica obra, ainda que polêmica em muitos aspectos, Said publica Cultura e Imperialismo (SP, Cia das Letras, 1995), tratando da mesma temática de Orientalismo, só que em outras regiões colonizadas, como Índia, África, Caribe, Austrália, entre outras. Nesses locais o imperialismo ocidental se fez – e ainda se faz – bastante presente. Estas duas obras influenciaram as bases para as pesquisas em questões relacionadas com análises pós-coloniais e a teoria crítica de etnias.

Além dos livros anteriormente mencionados e publicados no Brasil, em 2003, duas obras de grande repercussão de Said foram lançadas e vêm sendo bem vendidas no país:
Cultura e Política (SP, Boitempo, 2003), de cuja tradução do original do inglês foi suprimida a palavra "poder", cujos textos foram organizados pelo conceituado professor Dr. Emir Sader com tradução de Luiz Bernardo Pericás (no original Power, Politics and Culture, da Vintage Books, UK, 2001) e Reflexões sobre o exílio e outros ensaios (SP, Cia das Letras, 2003). Nesta última, em particular, que não trata praticamente de questões orientais, há um excelente capítulo onde Said confronta-se com o cientista político americano Samuel Huntington – famoso pela tese do Choque de Civilizações (Clash of Civilization). À qual nosso professor chega a chamar de "choque de ignorâncias".

A Cia. das Letras anuncia a publicação no Brasil de mais três obras de Edward Said. Uma delas, que sairá ainda em outubro, será Paralelos e paradoxos. Trata-se de uma compilação de diálogos de um intelectual apaixonado pela música com o regente israelense Daniel Bareboim, seu amigo pessoal de muitos anos. Nela, tratam de Bach, Beethoven, Wagner e Glenn Gould, entre outros. Música alemã e conflitos no Oriente Médio.

O próximo livro a sair de Said, provavelmente ainda neste primeiro semestre de 2004, será Representações de um intelectual (Representation of the intelectual, Vintage Books, UK, 1994). Ela reúne suas palestras, dadas em 1993. Além da questão palestina, aborda a visão do intelectual como um "marginal" que expõe suas opiniões contra o interesse do status quo.

E, ainda, Out of place (Fora de lugar). Esta é a sua autobiografia, onde ele relata seu sentimento de exílio e a dualidade permanente, ao defender uma causa que é sua, de seu povo, mas é distante por morar nos EUA. A vida dividida entre "oriente" e "ocidente". Esta obra, também já lançada pela Cia. das Letras, tem tradução no Brasil de José Geraldo Couto e possui 448 páginas (a um custo de R$51,50) (6). O conceituado autor brasileiro de origem árabe, premiado duas vezes com o Jabuti, Milton Hatoum, escreve interessante e bela resenha sobre a obra (7).

Por fim, aguardamos a publicação no Brasil de livros inéditos do nosso autor, entre eles: The World: the text and the critic (Vintage, UK, 1999); After the last sky (Vintage, UK, 1993); The question of palestine (Vintage, UK, 1992 – estranhamos que este ainda não tenha sido traduzido no país); Peace & its discontents (Vintage, UK, 1995); The end of the peace process (Vintage, UK, 2001, o livro que marca sua ruptura com Arafat). Com Noam Chomsky, escreveu Acts of aggression (Seven Stories Press, USA, 2002).

Em minhas andanças, dentro e fora do país, cruzei com muitos intelectuais palestinos; entre eles Saad Chedid (Argentina), Farouk Khadumi (Palestina), Abou Jihad (Palestina) e Farid Sawan (ex-embaixador no Brasil) dentre outros. Mas não tive o prazer de estar com Said. Conheci-o apenas por suas idéias em seus livros. Não tenho alinhamento automático com suas idéias, mas sentirei muitas saudades desse que talvez tenha sido o mais vigoroso intelectual palestino. Que fique em nossa memória para sempre.

*Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho é sociólogo e professor da Unimep/SP, especialista em Oriente Médio.

Notas
(1) Ver artigo do professor de árabe da USP, Mamede Mustafá Jarouche, publicado no jornal O Estado de S. Paulo do dia 28 de setembro, página D4, intitulado "Edward Said, pensador das divisões na história".
(2) Ver artigo de Paulo Daniel Farah, professor de árabe da USP, publicado na Folha de S. Paulo no dia 26 de setembro, sexta, com o título "Morre o Intelectual Palestino Edward Said", página A13.
(3) Ver artigo intitulado "Edward Said (1935-2003)", Folha de S. Paulo, domingo, Caderno Ilustrada, 28 de setembro de 2003. Sobre esse assunto, ver ainda crítica de apoio às posições de Archer na revista Cult nº 77, de fevereiro de 2004, escrito por Luis Dolhnikoff.
(4) Ver artigo desse autor intitulado Mundo árabe esta em guerra contra os EUA, de 12 de setembro de 2002, página A-12 – citação de Mauro Fadul Kurban em revista Cult 78, março de 2004, página 66.
(5) Quero dizer que em minha biblioteca pessoal de livros árabes e islâmicos, na casa de duas centenas, alguns dos mais importantes são desses dois autores, tanto em inglês, como em francês e espanhol. Algumas dessas obras recebi pessoalmente, com dedicatória do Prof. Dr. Saad Chedid, da Fundação Árabe da Argentina, que edita duas coleções de Cadernos, Palestinos e Árabes.
(6) Parte de meus comentários nesta parte final do presente artigo, foi baseada no texto “Herança de Edward Said: mito do ‘Oriente’ é criação ocidental” de autoria de André Bueno e Giuliana Napolitano, da Agência de Notícias Brasil-árabe, cujo endereço é www.anba.com.br veiculado à Câmara do Comércio Brasil-Árabe.
(7) Ver matéria intitulada memórias da dissonância, em Revista Bravo, ano 7, nº 78, março de 2004, páginas 104 e 105.

EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 69, 70, 71, 72