Ladrão nosso de cada dia
Quero informar para vocês que perdi a virgindade. Sei que avisei assim de sopetão, mas isto é uma coisa que acontece com todos nós. Nascemos, crescemos e perdemos a dita cuja. Explico como aconteceu. Moro há sete anos em São Paulo e nunca havia sido assaltado, já estava me achando o diferentão no meio de todas estas pessoas vítimas de assalto. Sentia-me um ET no meio de tanta gente normal. Mas há uma semana perdi a virgindade, fui assaltado. Isto mesmo, fui assaltado. Aqui em nesta paulicéia desvairada, ou você já foi, vai ser ou está sendo assaltado. Calma, não se apavore. Se você estiver lendo este texto em algum lugar suspeito, não se perturbe. Olhe lentamente para quem está do seu lado, se você é mulher não vá se assustando com qualquer cara de louco ao seu lado, pode ser que seja somente uma cantada. Mas voltemos. Estava eu tranqüilo dentro de um ônibus, indo para a casa da minha sogra, que, além de sogra é corintiana, quando do meu lado senta um sujeito meio mal encarado de uns vinte e dois anos aproximadamente. Eram três e, não havendo lugar para todos do meu lado, um deles se posicionou um banco atrás e o outro ficou de pé no corredor, talvez esperando a deixa. Deixa eu dizer uma coisa para vocês. Não acredito em aviso sobrenatural e tão pouco acredito no sobrenatural, mas minutos antes de tudo acontecer eu pensei: e se de repente eu fosse assaltado aqui, o ônibus está quase vazio, estou onde fico raramente, nos bancos de trás. Um frio me subiu pela espinha, passou por uma espinha que me ardia no meio das costas. Procurei me distrair, olhar para fora e pensar em outras coisas. Não estava mais lendo, havia quardado o livro, meu ponto já se aproximava.
O ônibus reduziu a velocidade e pegou alguns metros de engarrafamento. Novidade em São Paulo. Ouvi a voz de um dos meliantes, elementos, sujeitos como costuma tratar a polícia, bem perto do meu ouvido: Será uma batida. Eu, muito ingenuamente, achei que ele falava comigo. Tentando fazer amizade e entendendo que a batida, sobre a qual ele se referia, era de carros, eu disse: não, é só o sinal que demora abrir. Percebi depois que não era para mim a pergunta e nem a batida era de carros, mas sim da polícia.
Liberado o trânsito, percebi que alguém me chamava. Não conheço ninguém. Passa a bolsa e o celular. Falou o marginal. Num primeiro momento não percebi o que estava acontecendo. Tinha me distraído olhando para a rua. Oi? Passa a bolsa, o celulá e fica calado. Olhei para a mão do agressor e vi um tremendo “trinta e oito”, não entendo de armas, mas aquilo era um “trinta e oito”, já havia visto em filmes. Passei tudo, até o que eles não pediram. Ia me esquecendo do relógio, mas um deles fez questão de lembrar. Passa o relógio. Que prejuízo estava tendo, um relógio semi-novo, ganho de minha irmã, que, por sua vez, o comprou naquelas banquinhas de camelô. Deve ter custado a fortuna de uns dez reais. Não consegui tirar do pulso, delicadamente um dos assaltantes o arrancou do meu braço. Se tu falar quarquer coisa mano, nós te fuzilamo, tou cum cano aqui atrais carregadim. Fica quéto, num fala nada. Tô quieto, não vou falar nada. E a carteira? Taí, dentro da bolsa. Se num tiver nóis vai atraz de tu, mano. Tá aí, já disse. Quarquer coisa te arrentamo. Dois deles parecia estar mais assustados do que eu. Parecia, pois por dentro eu estava um desespero só. Um deles, o mais calmo, percebendo que eu estava controlado e meus pertences já pertencendo a eles, mandou os outros se acalmarem. Já foi mano, já foi, o cara já entendeu! Entendi, pensei comigo, entendi que finalmente faço parte desta metrópole estressada.
Tudo isto enquanto o ônibus se arrastava até o ponto em que eles desceriam. Provavelmente não demorou muito, mas pra mim que estava com um cano do lado, um atrás e o meu próprio encolhido, os segundos demoraram horas. Enquanto o mais calmo, alcamava os outros ele disse: Vamo deixar os documento no coblublublu blu blu. Não entendi mais nada, devido ao barulho do ônibus. Olhei pela terceira vez para os meus agressores (a primeira foi quando me abordaram e a segunda quando pediram a carteira). Tive vontade de perguntar: Onde mesmo? Ou, será que vocês poderiam deixar os documentos em tal lugar? Não consegui imaginar nem um lugar adequado para que eles me deixassem os documentos e também achei melhor não brincar com a sorte. Não que eu estivesse calmo ou com sorte – é até piada dizer que não era bom brincar com a sorte. Que sorte?! – , mas porque estava muito preocupado com tudo que ia perder. Não tinha um centavo na carteira, tinha cinco passes, não tinha cartão de crédito, nem cheque que isto para mim é artigo de luxo. Mas além do celular e um cortador de unhas novinho e inovador, todo emborrachado e com as lâminas voltadas para o lado, eu ia perder o livro do Duda Mendonça. Já estava quase terminando a leitura. Um livro excelente que, ainda por cima, não era meu. Era emprestado.