Que Viva Abril, sempre!
Nas comemorações dos 30 anos da revolução portuguesa de 25 de abril de 1974 destacou-se o Partido Comunista Português (PCP). Seu presidente, o economista Carlos Carvalhas, que foi vice-ministro do Trabalho no período revolucionário, falou à Princípios sobre os ecos daquele acontecimento histórico que mudou a face do país lusitano
Embora tenha sido derrotada e suas conquistas em grande parte ceifadas, ou mitigadas, o povo continua a festejar e a celebrar a revolução portuguesa de 25 de Abril. Como explicar isso?
Carlos Carvalhas – Pela força da revolução, que foi muito profunda. Tocou todos os portugueses, todas as famílias. E foi tão profunda que suas causas mais dolorosas ainda se mantêm no coração dos portugueses – mesmo que a esmagadora maioria da população, hoje, já é pós-25 de abril. São os filhos de Abril. E penso que eles também estão nas comemorações. Porque uma revolução é uma festa que abre todas as janelas, todas as portas, passa por todas as casas, por todas as escolas. Felizes daqueles que têm oportunidade de viver em uma revolução.
Essa presença persistente de Abril obviamente tem a ver com as conquistas alcançadas. Destaque para nós as mais importantes.
Carlos Carvalhas – A reforma agrária, a nacionalização do sistema financeiro e de empresas estratégicas, a paz e o fim da guerra colonial, a independência das colônias, o poder local democrático, o controle operário, vários direitos trabalhistas etc. E depois também a dimensão dos valores da sociedade. É preciso ver que antes do 25 de Abril um jovem não podia beijar uma jovem na rua.
Há também esse componente cultural?
Carlos Carvalhas – Muito. Porque as escolas eram separadas e havia uma moral hipócrita. E daí a razão também que em seguida ao 25 de Abril tenha ocorrido uma explosão de divórcios.
Então o fascismo teve também essa vertente de obscurantismo?
Carlos Carvalhas – Uma vertente obscurantista e também uma vertente reacionária do papel da mulher, do papel dos costumes, de uma moral. Isso tudo se rasgou. Tudo num período muito curto em que, todos os dias, as pessoas saíam às ruas e havia acontecimentos, festa. Ninguém pensava mais em nada, senão na revolução, em resolver os problemas, conquistar. Os pais a viveram tão intensamente; e os filhos também. Uma revolução vivida com tanta intensidade que os próprios jovens acabaram por ficar marcados por ela.
Após a revolução os vários governos provisórios foram constituídos por partidos díspares; conservadores, democratas, socialistas, comunistas etc, e mesmo o Movimento das Forças Armadas (MFA) também era assim heterogêneo. Como se deram as conquistas?
Carlos Carvalhas – As conquistas das classes organizadas da revolução se deram sem um poder político. Os comunistas tinham dois ministros no governo. Eu fui vice-ministro de vários governos provisórios, na pasta do trabalho. Nossa força não vinha do poder político, mas das classes organizadas em que o partido teve, naturalmente, um papel determinante. O poder popular na rua lançou e exigiu reformas que, quando estavam sendo feitas no plano legislativo já estavam ultrapassadas. Muitas vezes a lei veio depois. A reforma agrária é um caso claro. Ela foi feita pelas massas, que começam a ocupar sem legislação – que veio depois acompanhar, tentar acompanhar, até mesmo tentar conter. Mas também a revolução mostra que conquista sem o poder político acaba por fracassar.
Aqui vem a originalidade da revolução portuguesa, com uma aliança entre o povo e o movimento das Forças Armadas.
Carlos Carvalhas – Com a parte mais revolucionária das Forças Armadas. E estas marcharam, naturalmente, com contradições, até o 25 de novembro.
O general Vasco Gonçalves em recente discurso sublinhou que, no caso da reforma agrária, foi também importante a posição dessa parte avançada do Movimento das Forças Armadas (MFA).
Carlos Carvalhas – Mas os primeiros a avançar foram os trabalhadores. Depois a parte mais avançada do MFA deu cobertura. Porque sem isso a acumulação de forças no poder político não seria suficiente, embora o Partido Socialista (PS) também tivesse inscrito em seu programa a reforma agrária. Mas era uma reforma agrária recuada, em que primeiramente seria discutida a lei. E enquanto eles estavam nessas discussões o povo avançou.
E o papel do PCP nesse processo tão complexo, intrigante, trincado de várias forças políticas presentes na mesma estrutura. Gostaria que você discorresse um pouco sobre o papel da bancada comunista na importante elaboração da Constituição portuguesa.
Carlos Carvalhas – A própria Constituição também é marcada pelas massas populares, porque nós tínhamos um grupo relativamente pequeno e podemos dizer que as massas nas ruas, com pressão, exigiram também avanços progressistas. Porque os legisladores, os constituintes não estiveram sozinhos em circuito fechado. Nas ruas, podemos dizer que a prática condicionou a legislação.
O período da Constituinte foi de muita efervescência, de muita movimentação, com os constituintes ali redigindo e o povo sempre presente.
Carlos Carvalhas – Houve também algumas iniciativas esquerdistas. Mas nós temos de ver que foi uma época em que a própria Assembléia esteve cercada pelos trabalhadores. Em todos esses acontecimentos também é preciso ver que, mesmo no dia da aprovação da nova Carta, as forças mais conservadoras e de direita tentaram que a Constituição não fosse aprovada. Ela já estava redigida e, até a última hora, houve da parte do PSD e do CVS, PP e alguns setores do PS, pressão para que aquela Constituição não fosse aprovada. Porque era a Constituição mais avançada de toda a Europa àquela altura. Uma Constituição que defendia que o povo tinha direito até mesmo à insurreição armada.
Isso para a realidade da época é algo muito avançado.
Carlos Carvalhas – Para a realidade da época e para a realidade atual!
Dessas principais conquistas – já que estamos falando da Constituição e ela acaba de passar por uma nova revisão – quais as conquistas que a luta do povo e das forças progressistas, como o PCP, conseguiram ainda resguardar apesar desses ataques da direita?
Carlos Carvalhas – Mantêm-se ainda os direitos trabalhistas, que são bastante fortes. Mantêm-se uma segurança social que, embora na lei já não seja, na prática, ainda é uma segurança social universal. Ainda temos serviços públicos que abrangem toda a população, que é conquista do 25 de abril. Em relação à democracia, ela tem sido limitada, até empobrecida nos plano social, econômico, cultural e político, mas hoje tem o poder local que mantém os valores democráticos no essencial. Podemos dizer também que, do ponto de vista da democracia política, as questões mais essenciais se mantêm, embora à medida que o poder econômico toma conta das alavancas fundamentais (e o poder econômico internacional toma conta das grandes alavancas portuguesas), temos cada vez mais uma subordinação do poder político ao poder econômico e ao poder econômico internacional – o que causa grandes problemas ao país, mesmo do ponto de vista da sua soberania e independência.
Quais teriam sido os fatores determinantes à derrota da revolução?
Carlos Carvalhas – O principal foi que não se conseguiu ter um poder político com uma correlação de forças majoritariamente revolucionária. E com as divisões das forças militares, com o papel do esquerdismo (que aqui também teve um papel muito negativo) e com a ingerência norte-americana e dos capitalistas da Europa, criaram-se as condições para que essa derrota se verificasse. O que nos mostra é que sem o poder político, quer dizer, com as massas deixadas à própria sorte, tem-se dificuldades para ir adiante. Pode-se avançar com conquistas, e durante uma fase pode-se mantê-las, mas não por todo o tempo. É preciso dizer que nós partimos de uma situação em que os monopólios e o poder políticos estavam fusionados. Com o 25 de abril isso se separou. O poder político não respondia ao poder econômico. Com a contra-revolução e com as tentativas de golpe, o poder político passou a ceder ao poder econômico nas nacionalizações, na reforma agrária – o que havia sido conseguido pelas massas e com os setores revolucionários das Forças Armadas. Mas uma das pernas do novo poder político se partiu – a das Forças Armadas – e ficou só o poder popular. A coalizão de forças sofreu revés importante e deu-se que, a seguir, o poder político começou a se separar outra vez do poder econômico. O poder econômico, então, passou a tomar conta do poder político novamente. Esse foi o segundo processo.
A Revolução dos Cravos para o Brasil, quando ela eclodiu em 1974, foi muito importante porque estávamos vivendo sob uma ditadura militar – a canção “Tanto Mar” de Chico Buarque bem representa isso. Mas agora, neste momento, as forças progressistas do Brasil, em particular os comunistas, procuram estudar a revolução de Abril. É claro, conscientes das evidentes diferenças. Esse estudo é para procurar referenciais que, de alguma maneira, possam ajudar a desvendar os dilemas da mudança – porque hoje essas forças progressistas têm o grande compromisso de tornar exitoso o governo do presidente Lula. Você destacaria alguma aprendizagem que poderia ser útil a outros povos? Essa questão de se levar em conta a correlação de forças e o nível de consciência – o que nos falava há pouco, por um lado, o esquerdismo, por outro, forças que não acompanham o ritmo do movimento social…
Carlos Carvalhas – Isso é da máxima importância. Essa é talvez uma das grandes lições desta revolução, que é uma revolução próxima. Nós temos de ver sempre a acumulação de forças. Não perder de vista que o determinante é o movimento de massas e também a correlação de forças, porque o voluntarismo conduz – isso é um ensinamento antigo – o processo para a aventura.
Mesmo na reforma agrária foram também cometidos erros, porque nem sempre se teve em atenção a acumulação de forças; nem sempre se teve a intenção de ganhar os pequenos proprietários. Você calcula: o proletariado agrícola no Alentejo, que era um proletariado de várias gerações, com uma grande consciência de classe e com uma consciência política já enredada, tomou resoluções para uma reforma agrária já muito avançada. Mas não tem em conta que em algumas regiões do Alentejo – que não é homogêneo – havia a pequena propriedade. Era preciso ter em conta a sua mentalidade, o seu individualismo. Onde isso não foi feito, ao invés de ter ganhado aliados, ganhou-se adversários. E depois, numa correlação de forças política mais desfavorável, isso facilitou a contra-revolução na reforma agrária.
Isso falando da reforma agrária, mas podemos falar de outros exemplos, e o mesmo nas Forças Armadas.
Com base na Revolução de Abril, como você avalia a participação dos comunistas em governo de frente, em governo de coalizão? Porque é algo que vai se apresentando novamente. Agora temos eleições no Uruguai, com a Frente Ampla da qual participam os comunistas. Se vitoriosa, os comunistas uruguaios vão enfrentar, digamos, os mesmos desafios dos comunistas brasileiros.
Carlos Carvalhas – Nós tivemos uma experiência no processo revolucionário, que é diferente. Mas eu penso que – das experiências que eu conheço, que nós conhecemos – por um lado, há de se fazer uma distinção entre a alternativa que é uma ruptura, e a participação no governo de coalizão em que os comunistas são minoritários. Porque não se pode criar ilusões no povo – que, depois, num retrocesso, se vira contra os próprios comunistas.
Em relação à social-democracia, o povo já está habituado a suas trapalhadas, mas a gente do povo mais diretamente ligada ao Partido Comunista perdoa menos.
O que quero dizer com isto? Que não se deve iludir a base social e a base eleitoral do Partido. Tem de se dizer com toda clareza: nós estamos lá para virar, para fazer pressão para uma política de esquerda, mas não é o nosso programa, não é a nossa política. Nem é o programa do Partido nem sequer podemos dizer que seja uma alternativa política de esquerda. Quer dizer, é uma alternativa de progresso e nós estamos lá para puxá-la o máximo possível. Mas só o conseguiremos pela força que tivermos: quanto mais força nos derem, quanto mais forças tiver o movimento popular, mais se avança. E tudo isso tem de estar sempre muito presente, porque se não o povo se ilude e diz assim:
“pretendemos ter tudo. Aquilo lá não foi um governo de esquerda, mas um governo de esquerda que pouco mais fez que os outros governos”. E o pessoal é muito mais exigente conosco do que em relação aos outros, que tendem a perdoar, tendem a esquecer mais. Enquanto o governo de esquerda tem sempre um patamar alto de exigência. Se isso não é feito, depois, se há uma queda desse governo, as massas ficam durante muito tempo desencantadas – sobretudo os que têm menos consciência política – com o Partido.
Os comunistas não devem se diluir e não perder a sua nitidez junto à população…
Carlos Carvalhas – E não se deve confundir a política do governo com a política do Partido porque se não…
Estamos às vésperas das eleições européias e gostaria que você nos comentasse as perspectivas dessa eleição para os partidos progressistas, para a esquerda européia. Qual a expectativa do PCP?
Carlos Carvalhas – São eleições difíceis porque sobretudo para a nossa base social de apoio mais popular, as pessoas perguntam: “Votar por quê? Com um Parlamento que fica lá longe e não se sabe o que faz? Os deputados ganham muito dinheiro que não deviam”. E para uma União Européia que tem uma política capitalista neoliberal. Portanto, a tendência para a abstenção é grande. Em toda a Europa estudos feitos pelas comissões oficiais mostram que os partidos que têm mais reservas, mais críticas à UE são aqueles que têm mais abstenção. O que é lógico. Mas a abstenção toca a todos os partidos e são eleições em toda a UE, que não têm grande adesão popular. Pode ser que haja uns 60% de abstenção em toda a Europa…
O Parlamento europeu ainda é algo distante das camadas populares e…
Carlos Carvalhas – É um parlamento muito distante, que tem muito poucos poderes. É um parlamento mais de consciência crítica do que propriamente com poderes de legislação, poderes de fiscalização a sério. E, portanto, a abstenção toca a todos os partidos, mas a nós toca particularmente. A grande preocupação que temos é procurar mobilizar a nossa base social de apoio e o nosso eleitorado. Estamos apresentando uma plataforma eleitoral, a plataforma eleitoral de Nicósia – um apelo eleitoral assinado por 14 partidos de esquerda e pelos comunistas.
Destaque as diretrizes desse apelo.
Carlos Carvalhas – O fundamental que se diz ao povo europeu é votarmos por um outro caminho, um outro rumo para a Europa: uma Europa de paz, uma Europa da população, uma Europa mais social, mais democrática. Porque esta Europa tem um grande déficit democrático. Porque a Comissão decide, o Conselho decide e o Parlamento europeu está praticamente à margem. E os parlamentos nacionais também não acompanham e, depois, os governos dizem “nós temos de fazer isto porque foi decidido na UE”. Mas, foram eles que decidiram. Então, há esse grande déficit democrático que é, também, a causa da grande abstenção. E, por isso, praticamente não se discute a Europa nesta campanha eleitoral – nem a imprensa, nem em qualquer país. Se for à França não há nenhum partido a falar da Europa, a falar dos problemas da UE. Estão todos falando dos problemas nacionais. Aquilo a que chamamos de nacionalizar a campanha. Aqui também.
Porque se se falasse, por exemplo, da Europa mesmo, o PS e o PSD não teriam diferenças praticamente. As diferenças que procuram encontrar por meio dessa visão política nacional. Os cartazes dos comunistas o que é que têm: cartão amarelo ao governo. Por quê? Pelo desemprego, baixos salários. É a chamada nacionalização da campanha eleitoral, e o cartão amarelo é para utilizar a linguagem futebolística (como vamos ter o Euro-2004). Utilizar o cartão amarelo é o primeiro aviso; e o fizemos para o PS porque tem feito conluio com a direita. Já o cartão vermelho é para o governo, que é para ser expulso o mais depressa possível.
*Adalberto Monteiro é jornalista e editor de Princípios.
EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 64, 65, 66, 67, 68