Reforma universitária é um tema caro aos estudantes. Ao longo da história das instituições universitárias, a busca por um ensino superior comprometido com o avanço social mobilizou e sensibilizou milhares de estudantes.

Vivemos nós, portanto, o nosso momento nessa história. Muitas vezes pode parecer que a história até se repita, pois muitos dos ideais de Córdoba ainda estão presentes na luta de hoje pela reforma universitária.

Mas, sem medo de errar, podemos dizer que nosso momento histórico é especial. O debate sobre as mudanças na universidade pública brasileira começa em um governo eleito para romper com séculos de desigualdade social e colonialismo em diversos graus – agravados em especial na última década neoliberal. O novo modelo de país, em disputa na sociedade e no novo governo, exige uma nova universidade. Pode-se afirmar, também, que o grau de transformação a ser alcançado no ensino superior depende, em grande medida, dos avanços obtidos na mudança do país – nos rumos da sua política econômica, ainda herdada dos anos de neoliberalismo; da afirmação do papel do Estado; da afirmação e do fortalecimento da nova política externa já em curso, fundada em bases soberanas e comprometida com os interesses nacionais.

Tal como a disputa que acontece em relação aos rumos do país, na Universidade vários projetos e interesses se confrontam; e desse combate deve surgir a proposta que vai nortear as mudanças no ensino superior brasileiro. A depender das idéias que prevalecerem, a reforma pode ser limitada, composta de medidas paliativas e secundárias. Pode, até mesmo, ser regressiva, se forem vitoriosos aqueles que apontam como saída o descomprometimento do Estado, o público não-estatal, o atendimento aos interesses do mercado em detrimento da sociedade.

A União Nacional dos Estudantes irá trabalhar, debater e lutar junto com aqueles que defendem a Universidade pública, gratuita, democrática e comprometida com os interesses sociais e nacionais.
A universidade pública brasileira é sobrevivente da década de 90. Mesmo com todo o trabalho sistemático feito pelos governos neoliberais para restringir sua autonomia, privatizar sua pesquisa, sufocar seus recursos e impedir avanços democráticos, esta universidade que temos hoje ainda é responsável pelo melhor ensino de graduação do país, pela quase totalidade das pesquisas desenvolvidas, por projetos de extensão de grande relevância, por serviços de ponta como os hospitais universitários. É fundamental para o país reforçar e ampliar esse sistema. É este o principal desafio da reforma universitária.

Mais pública, mais gratuita

A opção pela expansão de vagas no ensino superior via incentivo e facilitação da abertura de cursos e instituições privadas durante o governo Fernando Henrique fez com que em 2002 as universidades privadas respondessem por 70% das matrículas. Esse modelo dá claros sinais de esgotamento. As instituições privadas já enfrentam altos índices de inadimplência e de vagas ociosas.Ao contrário do que afirmam os relatórios do Banco Mundial, tão copiados por aqui, esse caminho não democratizou o acesso ao ensino superior. Ainda são as universidades públicas que recebem mais estudantes de baixa renda.

É preciso aprender com essa lição.
Uma medida essencial para democratizar o acesso ao ensino superior é ampliar as vagas das universidades públicas. Não basta apenas declaração de intenções – é preciso ter um programa, destinar verbas, contratar professores, fazer um estudo criterioso das maiores demandas, principalmente no que diz respeito aos cursos noturnos, que ocupariam uma capacidade ociosa enorme e permitiriam o acesso de estudantes que precisam trabalhar durante o dia. A ampliação de vagas deve obedecer a uma visão estratégica dos setores em que o país mais precisa de profissionais qualificados, seja para ampliar e melhorar a qualidade do ensino fundamental seja para fazer frente a novos desafios tecnológicos da indústria ou a formação de cientistas.

Para isso, é essencial que o governo assuma o papel estratégico da Universidade no desenvolvimento do país em um novo projeto nacional, e reconheça que é papel do Estado financiar a universidade pública, com os aportes de recursos necessários para que ela ofereça mais vagas, mais qualidade, mais serviços e mais ciência.

É preocupante ver algumas vezes os “meios alternativos” de financiamento ocuparem o centro do debate, como se eles fossem a saída. Tais meios alternativos já se proliferam em praticamente todas as instituições públicas do país, no guarda-chuva das fundações de apoio. Além de eles não serem capazes de resolver o problema de recursos, criam um novo problema: a perda de autonomia na decisão sobre os projetos de pesquisa desenvolvidos ali, usando a infra-estrutura, os professores e funcionários das universidades que acabam sendo apropriados por interesses privados. Qualquer fonte alternativa de recursos não pode fugir ao projeto didático ou científico livremente decidido pela instituição.

A cobrança de mensalidades ou de contribuição compulsória de ex-alunos, que alguns ainda têm coragem para defender, já se mostrou inviável. Primeiro, porque está provado que uma parcela pequena de estudantes teriam condições de arcar com o pagamento das taxas elevadas que seriam necessárias para ter algum efeito de arrecadação. E segundo, porque, se implantada, a medida não alcançaria 10% dos recursos necessários para manutenção das instituições federais de ensino superior. Uma medida sugerida pelo grupo de trabalho sobre a reforma, instituído ainda durante a gestão de Cristovam Buarque no Ministério da Educação, merece ser debatida melhor e viabilizada: a retirada da folha de inativos do orçamento das universidades federais. Essas universidades receberam, em 2003, um total de 8 bilhões de reais. Desses, 2,8 bilhões foram utilizados para cobrir os gastos de previdência de professores e servidores. A contribuição dos professores na construção da Universidade e do país deve ser permanentemente reconhecida e valorizada. Mas a Previdência deve assumir os custos dos benefícios.

Mais democrática

Ao fim do regime militar, muito se avançou na democratização das universidades brasileiras. Na imensa maioria das públicas, implantou-se um sistema de eleição para reitor com participação da comunidade universitária. Os estudantes ocuparam assento na maioria dos órgãos colegiados e vários dos instrumentos intimidatórios e inibidores da organização estudantil e sindical foram desmontados. Foi um passo muito importante, mas insuficiente.

A universidade tem que ser um fervedouro de idéias e projetos. Todos os setores da comunidade universitária devem ser envolvidos no debate sobre os rumos da universidade e da sociedade brasileira. Os dirigentes devem ser eleitos de forma autônoma pelos setores que compõem a universidade, e o resultado do pleito apenas homologado pelo governo. Nas eleições, deve prevalecer no mínimo o voto paritário, capaz de envolver amplamente estudantes, professores e servidores no debate sobre o projeto de universidade.

Os órgãos colegiados, responsáveis pelo dia-a-dia da vida acadêmica e institucional, também precisam ser democratizados, com a participação paritária dos setores da comunidade universitária.

Mais autônoma

A universidade precisa ser revitalizada e renovada. Hoje as amarras legais impedem remanejamentos mínimos de recursos de um setor para outro, por exemplo. A universidade precisa de mais agilidade e mais integração com a sociedade. Precisa de mais autonomia. O saber e o desenvolvimento da ciência e da tecnologia devem ser livres, apoiados na pluralidade de idéias. Isso permitiria, por exemplo, investimentos e apoio a pesquisas que não teriam imediata relevância econômica, mas significariam passos e avanços importantes para o conhecimento e o saber universais. O direito de organizar ensino, pesquisa e extensão, discutir e definir currículos para graduação e pós-graduação deve ser conferido às instituições.

A autonomia de gestão teria o papel fundamental de dar liberdade para que cada universidade possa gerir seus bens e recursos para aplicá-los em função de objetivos didáticos, pedagógicos, científicos e culturais democraticamente definidos.

Não se pode, no entanto, confundir autonomia com soberania. A Universidade, como instituição pública, deve prestar contas à sociedade, por meio de um eficiente sistema de avaliação institucional e estabelecer mecanismos de controle social sobre sua ação e seus projetos.

Mais comprometida com o país

A reforma universitária não pode começar apoiada nos manuais das agências internacionais, como o Banco Mundial. Esses órgãos, durante anos, dirigiram sua ação para o desmonte do setor público e tiveram papel relevante para que a educação deixasse de ser reconhecida como direito e passasse a ser tratada como serviço, portanto passível de compra e de venda.

Essa lógica tem que ser quebrada. É inconciliável com um novo projeto que se pretende implantar no país. A universidade pode ter grande papel para superarmos nossa herança de subordinação cultural, desigualdades e injustiça social.

Portanto, a nova universidade deve surgir comprometida com um novo país. Um país onde o trabalho, a ciência e a tecnologia sejam valorizados. Um país em que a economia não seja dirigida por manuais de política monetária capazes de promover um processo de financeirização que corrói a renda do trabalho e engorda aqueles que vivem da agiotagem oficial, como ainda acontece. Um país em que as políticas públicas caminhem no sentido da universalização, condição central para a construção da cidadania, e não gaste tempo, energia e dinheiro tentando separar os “menos” pobres dos “mais” pobres. Um país que dialogue com o mundo de forma soberana e defenda os interesses do seu povo.
A universidade pode e deve contribuir para construir este país.

*Gustavo Lemos Petta é estudante de Comunicação Social da PUC-Campinas e Presidente da União Nacional dos Estudantes.

EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 25, 26, 27, 28