Aproveitando o momento em que a sociedade brasileira se dedica ao importante debate da reforma universitária, Princípios procurou extrair do professor Dermeval Saviani – uma das principais autoridades sobre o tema da educação em nosso país – elementos para balizar e aprofundar o entendimento das questões em pauta. Dermeval Saviani é autor de grande número de livros e artigos publicados em revistas nacionais e internacionais, foi condecorado com a medalha do mérito educacional do MEC e recebeu da Unicamp o prêmio Zeferino Vaz de produção científica. Atualmente é Professor Emérito da Unicamp, Pesquisador do CNPq, Coordenador do Grupo Nacional de Pesquisas HISTEDBR e Professor Titular Colaborador da USP em Ribeirão Preto. Ele enfoca aqui aspectos teóricos, históricos, políticos e normativos implicados numa possível reforma

Que aspectos teóricos sobre a educação e a universidade o senhor enfatiza para o debate em curso no país?

Dermeval Saviani – Penso que, para assegurar uma certa clareza teórica ao debate em curso, seria conveniente recuperar os elementos históricos da questão.
Se as origens da educação se confundem com as origens do próprio homem, a escola surge posteriormente em decorrência da constituição da sociedade de classes baseada na propriedade privada da terra e permanecerá durante vários séculos como forma secundária e restrita de educação. É no âmbito das transformações que resultaram na moderna sociedade burguesa que ocorre a emergência da escola como forma principal, dominante e generalizada de educação. E as universidades surgem quando tem início a transição relativamente longa, que culminará no fenômeno referido da transformação da escola em forma principal, dominante e generalizada de educação.

Contrariamente ao que a lógica poderia sugerir, a implantação dos sistemas educacionais nos diferentes países não se deu da base para a cúpula, isto é, da escola primária passando pela média ou secundária para chegar ao nível superior. Com efeito, do ponto de vista lógico, tendemos a pensar que primeiramente teriam sido implantadas as escolas primárias. Uma vez tendo sido estas generalizadas, seriam implantadas as escolas secundárias. Finalmente, sobre a base das escolas de nível médio, seriam criadas as escolas superiores ou universidades. Na verdade, porém, em termos históricos, seguiu-se o caminho inverso. De fato, as universidades surgiram em primeiro lugar, na Idade Média, a partir do século XI. Depois foram organizadas, nos séculos XVII e XVIII, as escolas secundárias, cujo exemplo mais característico nos é dado pelos colégios jesuítas. E foi somente a partir do século XIX que se pôs o problema da organização e generalização das escolas primárias. A universidade de Bolonha, considerada a mais antiga, data do final do século XI, mais precisamente, do ano de 1088, quando se pode constatar, através de documentos, o ensinamento de Irnério se desenvolvendo na relação com seus alunos, com as características próprias daquilo que veio a definir a natureza da instituição universitária. Enquanto a universidade de Paris se projetou pelos estudos de teologia, Bolonha se notabilizou pelos estudos jurídicos. Em Bolonha, assim como na Itália em geral, predominou o espírito leigo ao passo que na França e na Alemanha prevaleceu a iniciativa clerical.

Contudo, se a universidade de Paris se constituiu como corporação de professores que incorporou, sob sua direção, também os estudantes, Bolonha se organizou como corporação de estudantes que contratava os mestres exigindo deles a prestação dos cursos previstos. Observe-se, ainda, que algumas universidades como Bolonha, Paris e Pádua nasceram espontaneamente (ex consuetudine) ao passo que outras surgiram por iniciativa papal ou principesca (ex privilegio) como é o caso da universidade de Nápoles fundada por Frederico II em 1224, tendo em vista o objetivo de formar funcionários para a burocracia governamental. Outra forma de surgimento de universidades era por migração (ex migratione) como ocorreu com a Universidade de Pádua, que se constituiu por migração de Bolonha, isto é, através de estudantes e professores que, em razão de conflito com a administração comunal, se transferiram para Pádua dando origem, ali, a uma nova universidade a partir de 1222.

Surgidas na Idade Média as universidades se constituíram como corporações destinadas à formação dos profissionais das “artes liberais” isto é, intelectuais, por oposição àqueles das “artes manuais” que eram formados nas corporações de ofício. Em que pese a rigidez de organização que durou até a segunda metade do século XVIII, a universidade foi o lugar principal de desenvolvimento da pesquisa. Esse fato, freqüentemente ocultado pelo tradicionalismo didático e científico, se manifestou desde o século XVII no “hábito da relação professor-aluno” e por meio dos “seminários privados” constituídos por grupos de estudantes que se reuniam em torno de um professor e que não raro habitavam próximos dele como num pequeno colégio. Após as reformas da segunda metade do século XVIII modifica-se o quadro das disciplinas integrantes dos currículos universitários. Assim, no final do século XVIII e início do século XIX ocorre um distanciamento entre, por um lado, os currículos tradicionais originários da Idade Média, centrados em teologia, direito e medicina aliados aos que posteriormente foram introduzidos a partir do antigo sistema das artes liberais acrescidos de estímulos novos provenientes das Academias (filosofia e filologia clássica e moderna) e, por outro, os currículos mais novos de caráter técnico-científico próprios de um período em que o artesanato já havia sido suplantado pela manufatura e, em seguida, pela grande indústria implantada em conseqüência da revolução industrial.

Pode-se, pois, dizer que a universidade, tal como a conhecemos atualmente, teve a sua configuração institucional definida na primeira metade do século XIX. Daí emanam os três modelos clássicos de universidade, a saber, o modelo napoleônico, o modelo anglo-saxônico e o modelo prussiano. Este último teve sua configuração definida com a fundação da Universidade de Berlim por Humboldt, em 1810. A origem desses modelos se assenta nos elementos básicos constitutivos das universidades contemporâneas: o Estado, a sociedade civil e a autonomia da comunidade interna à instituição. Esses elementos nunca aparecem de forma isolada. Conforme prevaleça um ou outro, tem-se um diferente modelo institucional. A prevalência do Estado dá origem ao modelo napoleônico; prevalecendo a sociedade civil tem-se o modelo anglo-saxônico; e sobre a autonomia da comunidade acadêmica se funda o modelo prussiano.

No Brasil, desde a criação dos cursos superiores por D. João VI a partir de 1808 e, especialmente, com a instituição do regime universitário por ocasião da reforma Francisco Campos em 1931, prevaleceu o modelo napoleônico, reiterado sucessivamente até a reforma instituída pela Lei n.5.540 de 28 de novembro de 1968. A partir da década de 1980 começou a se manifestar uma tendência a alterar esse modelo; o que, de algum modo, veio a se efetivar com o Decreto n. 2.306, de 19 de agosto de 1997 que introduziu a distinção entre universidades e centros universitários, incorporando elementos do modelo anglo-saxônico em sua versão norte-americana.

O senhor tem enfatizado a importância e a necessidade do sistema nacional de educação. Como esta questão se coloca, em se tratando de reforma universitária?

Dermeval Saviani – Historicamente a emergência dos Estados nacionais no decorrer do século XIX foi acompanhada da implantação dos sistemas nacionais de ensino nos diferentes países como via para a erradicação do analfabetismo e universalização da instrução popular. O Brasil foi retardando essa iniciativa e, com isso, foi acumulando um déficit histórico imenso no campo educacional.

Para se ter uma idéia da importância dessa questão consideremos o caso da Itália. Quando esse país se constituiu como Estado Nacional em conseqüência do processo de unificação que se completou em 1861 sob a liderança do Piemonte, foi estendida a toda a Itália a Lei Casati, uma extensa lei composta de 380 artigos que regulava o funcionamento da educação nos seus mais diferentes aspectos e que fora aprovada no Piemonte em 1859. Essa lei regulava minuciosamente o ensino superior e continha um brevíssimo capítulo sobre o ensino primário que era relegado ao encargo das comunas, isto é, dos municípios. Com isso, a Itália chegou ao final do século com metade de sua população analfabeta. Portanto, sua situação, então, não era muito diferente daquela do Brasil.

No entanto, ao longo do final do século XIX desenvolveu-se uma intensa campanha pela “avocação do ensino primário ao Estado”. Essa campanha resultou vitoriosa e em 1911 o ensino primário foi colocado sob a responsabilidade do Estado Nacional, instalando-se o sistema nacional de ensino a partir do qual foi possível erradicar o analfabetismo.

O Brasil ainda esperaria a década de 30 para que o problema começasse a ser formulado com maior clareza. Assim, em 1932 o “Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova” não só irá conclamar a organização da educação em âmbito nacional, como apresentará um programa que contém já as coordenadas de um verdadeiro sistema nacional de educação. E a partir da Constituição de 1934 a competência da União para legislar sobre as diretrizes e bases da educação nacional marcará presença na viga mestra da nossa ordenação jurídica, a indicar a necessidade de normas comuns a toda a nação, orientando a organização da educação em todo o país, também em termos comuns, isto é, como um sistema nacional.

Conseqüentemente, do ponto de vista histórico, a idéia de lei nacional de educação esteve sempre associada à implantação do sistema nacional de educação, como o demonstra a experiência da maioria dos países nos últimos dois séculos.

Do ponto de vista lógico, parece evidente a relação de implicação entre os conceitos de “lei de diretrizes e bases da educação nacional” e de “sistema nacional de educação”.

Quando a Constituição determina que a União estabeleça as diretrizes e bases da educação nacional, obviamente ela está pretendendo que a educação, em todo o território do país, seja organizada segundo diretrizes comuns e sobre bases também comuns. E a organização educacional com essas características é o que se chama “sistema nacional de educação”.

O fato de, por se tratar de uma República Federativa, a Constituição reconhecer também a competência dos Estados para legislar em matéria de educação, em nada afeta o enunciado anterior. Com efeito, sistema não é unidade da identidade, uma unidade monolítica, indiferenciada, mas unidade da diversidade, um todo que articula uma variedade de elementos que, ao se integrarem, nem por isso perdem a própria identidade. Ao contrário, participam do todo, integram o sistema, na forma das respectivas especificidades. Em outros termos: uma unidade monolítica é tão avessa à idéia de sistema como uma multiplicidade desarticulada. Em verdade, sistematizar significa reunir, ordenar, articular elementos enquanto partes de um todo. E esse todo articulado é o sistema.

Há, pois, uma estreita relação entre legislação educacional e sistematização da educação. A educação assistemática não é objeto de legislação específica. Basta ver, por exemplo, as questões referentes ao pátrio poder, às diversões públicas etc, que podem ser consideradas atividades educativas segundo o próprio conceito adotado no Título I da nova LDB; entretanto, tais questões são reguladas pelo Código Civil. Quando, no entanto, se pensa numa lei específica para a educação, é porque se está visando à sua sistematização e não apenas à sua institucionalização. Antes de haver leis de educação, havia instituições educativas. Isso não implica, entretanto, a vinculação necessária da sistematização à legislação, ou seja: não é necessário que haja lei específica de educação para que haja educação sistematizada; esta poderá existir mesmo não existindo aquela. O que fica claro é a vinculação necessária da lei específica de educação à sistematização. Tal lei visará consolidar o sistema ou reformá-lo (caso exista), ou então, instituí-lo, ou pelo menos, determinar as condições para que ele seja criado (caso não exista).

Ora, em se tratando de uma lei que se propõe a fixar as Diretrizes e Bases da Educação Nacional, mais ainda se impõe a conclusão acima apresentada. Com efeito, se por diretrizes e bases se entendem fins e meios, ao serem estes definidos em termos nacionais pretende-se não apenas indicar os rumos para onde se quer caminhar, mas organizar a forma, isto é, os meios através dos quais os fins serão atingidos. Organização intencional dos meios com vistas a se atingir os fins educacionais preconizados em âmbito nacional, eis o que se chama “sistema nacional de educação”.

À luz dessas considerações parece de todo conveniente que a questão da universidade seja
considerada no âmbito do sistema nacional de educação. Isto porque a universidade, por um lado, depende do sistema de ensino na medida em que seus estudantes, isto é, os profissionais que lhe cabe formar, provêm dos níveis inferiores do sistema. Por outro, ela ocupa posição central no sistema dado que os quadros docente e administrativo do sistema de ensino, como um todo, são formados pela própria universidade. Com efeito, ainda quando não se preocupava diretamente com a questão da formação docente a universidade, de fato, sempre formou os professores dos graus inferiores.

Efetivamente ela o fazia na medida em que formava os chamados profissionais das “artes liberais”, isto é, intelectuais, por oposição àqueles das “artes manuais” que eram formados nas corporações de ofício. E os professores, de modo especial aqueles das escolas secundárias, eram recrutados entre os profissionais das “artes intelectuais”, direta ou indiretamente formados pela universidade.

Como se pode ver a evolução da educação no país desde 1996, com a aprovação da nova LDB?

Dermeval Saviani – Apesar da estreita relação entre Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e Sistema Nacional de Educação, a nova LDB brasileira, promulgada em 20 de dezembro de 1996, não fez jus a essa exigência. O projeto original, assim como o substitutivo Jorge Hage, continha o Título “Do sistema nacional de educação”, procurando atender a esse aspecto; mesmo porque não fazê-lo seria incorrer em uma espécie de “contradictio in terminis” uma vez que, como esclareci na questão anterior, a LDB implica o sistema. Não obstante essa evidência, na trajetória da nova LDB houve aqueles protagonistas que incidiram nessa “contradictio in terminis”, opinando pela inconstitucionalidade do Título relativo ao Sistema Nacional de Educação que integrava o Susbstitutivo Jorge Hage. Em conseqüência, a referida denominação foi substituída por esta outra: Organização da Educação Nacional. Mesmo assim, no projeto aprovado na Câmara o Capítulo que tratava “Da Organização da Educação Nacional” preservava os mecanismos básicos do sistema; entre os quais desempenhava papel central o Conselho Nacional de Educação secundado pelo Fórum Nacional de Educação. Com a prevalência do Substitutivo Darcy Ribeiro mantém-se a denominação (Organização da Educação Nacional), mas o conteúdo é fortemente alterado. Nele desaparece o Fórum Nacional de Educação, assim como a regulamentação criteriosa dos artigos 209 e 213 da Constituição que versam respectivamente sobre a liberdade de ensino conferida à iniciativa privada e a destinação de recursos públicos às instituições de ensino de caráter comunitário, confessional e filantrópico. E o Conselho Nacional de Educação, apenas mencionado no texto da nova LDB, perdeu o caráter de um órgão revestido das características de autonomia, representatividade e legitimidade, enquanto uma instância permanente e renovada por critérios e periodicidade distintos daqueles que vigoram no âmbito da política partidária que lhe permitiria, senão ficar imune, pelo menos não tão vulnerável aos interesses da política miúda.

Na verdade, o MEC articulou a aprovação do projeto Darcy Ribeiro para, à base de uma LDB “minimalista”, ficar com as mãos livres para prosseguir na implantação, por partes, de sua política educacional por meio de decretos, portarias e homologação de pareceres e resoluções do Conselho Nacional de Educação. E quais as características da referida política educacional?

A política educacional que vem sendo implementada no Brasil, sob a direção do Ministério da Educação, se caracteriza pela flexibilização, pela descentralização das responsabilidades de manutenção das escolas, induzindo os municípios a assumirem os encargos do ensino fundamental e apelando à sociedade, de modo geral, aí compreendidas as empresas, organizações não-governamentais, a comunidade próxima à escola, os pais e os próprios cidadãos individualmente considerados, no sentido de que cooperem, pela via do voluntarismo e da filantropia, na manutenção física, na administração e no próprio funcionamento pedagógico das escolas. Delineia-se, assim, um estímulo à diferenciação de iniciativas e diversificação dos modos de funcionamento e de gestão do ensino escolar. Em contrapartida, com base na montagem de um “sistema nacional de avaliação” respaldado pela LDB, centraliza-se no MEC o controle do rendimento escolar em todos os níveis, desde as creches até a pós-graduação. Inspirada no “modelo americano” essa orientação acentua, pela via da diferenciação apontada, as desigualdades educacionais, em contraste com o modelo europeu, antes predominante em nossa organização escolar. Este, acentuando a responsabilidade do Estado Nacional, foi capaz de garantir razoável coesão, assegurando um patamar comum que permitiu homogeneizar o acesso à cultura letrada, o que significou um razoável grau de igualdade de condições de participação de todos na vida social. Já o modelo americano resultou bem mais desigual, apresentando diversas distorções que têm sido objeto de alerta das próprias autoridades políticas e educacionais dos próprios Estados Unidos e que volta e meia são divulgadas pela imprensa.

Considerando que o Brasil sequer chegou a universalizar a escola elementar, a adoção do modelo americano potencializa enormemente as conseqüências negativas detectadas nos Estados Unidos contribuindo para aprofundar ainda mais a extrema desigualdade que é a triste marca de nossa tradição histórica.

Assim, a conclusão a que chegamos é de que o grande desafio, ainda posto para o Brasil em termos educacionais ao ingressar no século XXI, nos vem do século XIX. Trata-se da tarefa de organizar e instalar um sistema de ensino capaz de universalizar o ensino fundamental e, por esse caminho, erradicar o analfabetismo.

Tendo a reforma universitária como ponto de partida, quais as preocupações centrais, em face das principais concepções em disputa?

Dermeval Saviani – Na verdade a reforma universitária, atualmente, não constitui uma demanda da sociedade tendo, à frente, as organizações estudantis apoiadas por setores importantes do corpo docente das instituições de nível superior, como ocorria na década de 1960. Naquela época a reforma universitária se inseria, juntamente com outras reformas como a agrária, tributária, bancária etc no conjunto das reformas de base pelas quais as forças progressistas procuravam encaminhar a transformação estrutural da sociedade brasileira. O advento do golpe militar em 1964, por um lado, procurou cercear as manifestações transformadoras, mas, por outro, provocou no movimento estudantil o aguçamento dos mecanismos de pressão pela reforma universitária. Nesse contexto resultou necessário efetuar o ajuste do sistema de ensino à nova situação instaurada com o golpe militar.

O ajuste foi feito pela Lei n. 5.540/68, aprovada em 28 de novembro de 1968, que reformulou o ensino superior e pela Lei n. 5.692/71, de 11 de agosto de 1971, que alterou os ensinos primário e médio modificando sua denominação para ensino de primeiro e de segundo grau. O projeto de reforma universitária (Lei n.5.540/68) procurou responder a duas demandas contraditórias: de um lado, a demanda dos jovens estudantes ou postulantes a estudantes universitários e dos professores que reivindicavam a abolição da cátedra, a autonomia universitária e mais verbas e mais vagas para desenvolver pesquisas e ampliar o raio de ação da universidade; de outro, a demanda dos grupos ligados ao regime instalado com o golpe militar que buscavam vincular mais fortemente o ensino superior aos mecanismos de mercado e ao projeto político de modernização em consonância com os requerimentos do capitalismo internacional.

O Grupo de Trabalho da Reforma Universitária buscou atender à primeira demanda proclamando a indissociabilidade entre ensino e pesquisa, abolindo a cátedra, elegendo a instituição universitária como forma preferencial de organização do ensino superior e consagrando a autonomia universitária cujas características e atribuições foram definidas e especificadas. De outro lado, procurou atender à segunda demanda instituindo o regime de créditos, a matrícula por disciplina, os cursos de curta duração, a organização fundacional e a racionalização da estrutura e funcionamento.

Contudo, na prática, a expansão do ensino superior reivindicada pelos jovens postulantes à universidade se deu pela abertura indiscriminada, via autorizações do Conselho Federal de Educação, de escolas isoladas privadas, contrariando não só o teor das demandas estudantis, mas o próprio texto aprovado. Com efeito, por esse caminho inverteu-se o enunciado do artigo segundo da Lei 5.540 que estabelecia como regra a organização universitária admitindo, apenas como exceção, os estabelecimentos isolados; de fato, estes se converteram na regra da expansão do ensino superior.

A Constituição de 1988 incorporou várias das reivindicações relativas ao ensino superior. Consagrou a autonomia universitária, estabeleceu a indissociabilidade entre ensino pesquisa e extensão, garantiu a gratuidade nos estabelecimentos oficiais, assegurou o ingresso por concurso público e o regime jurídico único. Nesse contexto a demanda dos dirigentes de instituições públicas de ensino superior e de seu corpo docente encaminhou-se na direção de uma dotação orçamentária que viabilizasse o exercício pleno da autonomia e, da parte dos alunos e da sociedade, de modo geral, o que se passou a reivindicar foi a expansão das vagas das universidades públicas. Desses setores não emergiu, portanto, nenhuma demanda por reforma da universidade. A reforma universitária aparece, então, no âmbito do governo FHC, como uma demanda do próprio aparelho governamental que se insurge especialmente contra dois dispositivos constitucionais: a indissociabilidade entre ensino pesquisa e extensão e a gratuidade do ensino superior público. No primeiro caso visava-se possibilitar as universidades de ensino e, dada a inviabilidade política de aprovação de uma emenda constitucional, contornou-se o problema com a criação dos Centros Universitários previstos no Decreto n. 2.306, de 19 de agosto de 1997. No segundo caso se procurou, no âmbito da reforma do Estado, transformar as universidades federais em “Organizações Sociais” constituídas como Fundações de Direito Privado.

Essa “reforma” requeria a aprovação de uma emenda constitucional (PEC n. 173/95), o que também não chegou a ocorrer. Vê-se, pois, que ao menos até o início do governo Lula, não temos, de fato, concepções de reforma universitária em disputa. Na verdade, temos a proposta de reforma do governo com a concepção que lhe é peculiar e que correntemente é denominada de neoliberal, e a resistência a essa proposta materializada no conjunto das entidades organizadas ligadas ao ensino superior público como Andifes, Andes, Fasubra e Une. Os indícios mais fortes sugerem que a retomada da questão da reforma universitária pelo governo Lula, na seqüência da reforma da previdência, teve a mesma motivação da Reforma do Estado empreendida por Bresser Pereira. No entanto, como o problema atualmente se encontra em estudo, devemos aguardar para verificar se surgirão diferentes propostas com concepções distintas de universidade e de sociedade.

Considerando os limites, possibilidades e perspectivas do país, sob o novo governo, como o senhor vê o papel da universidade no desenvolvimento nacional?

Dermeval Saviani – Como se sabe, as universidades públicas são responsáveis por mais de 90% da ciência produzida no país. Seus cursos possuem, pois, qualidade nitidamente superior aos das instituições particulares. Assim, a expansão das vagas nas universidades públicas acarretará a formação de um número maior de profissionais bem qualificados, o que repercutirá positivamente no desenvolvimento do país. É claro que, para que a qualidade não seja prejudicada, a expansão deverá ser acompanhada proporcionalmente da ampliação das instalações, das condições de trabalho e do número de docentes. E, atendidos esses requisitos, haverá igualmente uma expansão da produção científica do país, o que é de fundamental importância para o seu desenvolvimento. Além dos aspectos da produção científica e da formação de profissionais qualificados, a universidade desempenha papel importante na elevação cultural da população, de modo geral, com reflexos positivos no grau de consciência política e no exercício da cidadania.

Com políticas de expansão centradas em cursos que não exigem uma formação mais sólida, como as que vêm sendo propostas, todo o ensino superior, estará sendo rebaixado, circunscrevendo-se a formação intelectual propriamente dita a alguns nichos de excelência, limitados a poucas universidades e cursos de pós-graduação, relegando o conjunto a padrões menos exigentes de qualidade. Ao se fazer isso, o papel específico do ensino superior, que é o desenvolvimento da cultura superior e a formação de intelectuais de alto nível, fica descaracterizado. E as possibilidades de desenvolvimento científico e tecnológico do país resultam ameaçadas. Só na medida em que ele mantém um sistema de ensino superior de alto padrão de qualidade e busca expandi-lo amplamente, é que ele tem condições de formar quadros e selecionar os cientistas de ponta, que vão, de alguma forma, liderar o desenvolvimento científico e tecnológico do país. Sem isso o país ficará em posição subalterna em relação aos demais.

Em estreita conexão com a política econômica, a política educacional nos países ditos emergentes vem sendo induzida por agências internacionais, tendo à frente o Banco Mundial, delineando-se uma distribuição de papéis em que se reserva para os países centrais o conhecimento de ponta e o desenvolvimento científico-tecnológico de longo alcance, relegando aos demais países a absorção da ciência e tecnologia, produzidas fora, e o preparo de técnicos limitados a manipular os resultados, aumentando a dependência dos países centrais, tanto no âmbito econômico propriamente dito, quanto no âmbito científico e tecnológico.

Portanto, à pergunta: Como desenvolver e expandir uma universidade com alto padrão de qualidade diante dos limites financeiros, fiscais e orçamentários que vêm sendo enfrentados pelo novo governo? eu responderia que a universidade não é um elemento do problema, mas de sua solução já que é por um desenvolvimento autônomo e auto-sustentado que os mencionados limites poderão ser superados. E a universidade pública tem sido, nos diferentes países, um fator estratégico de desenvolvimento.

Como conceber uma legislação progressista que dê conta das principais questões da educação e da universidade?

Dermeval Saviani – Concebi uma legislação progressista que, acredito, daria conta das principais questões da educação e da universidade traduzida no esboço de projeto de LDB que, por iniciativa do deputado Octávio Elísio deu início, na Câmara Federal, ao processo de discussão e aprovação da nova LDB. A correlação de forças não permitiu que essa concepção viesse a prevalecer. Nas circunstâncias atuais, sendo realista, penso que caberia partir da legislação existente efetuando-se a devida correção de rota na política educacional e se introduzindo na legislação as modificações que se revelarem necessárias. Com efeito, uma vez que a LDB foi aprovada sob medida para dar livre curso à política educacional que vinha sendo implantada pelo governo anterior, caberia ao governo atual, mantida essa mesma lei, formular sua própria política e implementá-la alterando ou revogando os decretos do governo anterior e, em especial, derrubando os vetos apostos ao Plano Nacional de Educação. Aliás, o próprio texto do PNE prevê que, no quarto ano de sua vigência, ele deve ser avaliado e revisto procedendo-se às modificações pertinentes. Ora, neste ano de 2004 estamos exatamente no quarto ano de vigência do PNE. Penso, pois, que essa é a oportunidade para recolocar a proposta que apresentei, em 1997, com o caráter de um plano de emergência para a educação brasileira.

A linha mestra do plano é a imediata duplicação do percentual do PIB investido em educação, passando dos atuais 4% para 8%, o que apenas nos colocaria no nível das nações que mais investem em educação, como é o caso de Estados Unidos, Canadá, Noruega e Suécia que se situam na faixa entre 7,5 e 8,5%. Por essa proposta, cada instância governamental teria o dobro dos recursos de que hoje dispõe para a educação. Assim, os municípios e os Estados poderão cuidar seriamente da educação básica consolidando a educação infantil, universalizando o acesso e a conclusão do ensino fundamental e se aproximando da universalização do ensino médio sem abrir mão da qualidade que seria garantida pela instituição da carreira docente com jornada de tempo integral. E no que se refere ao ensino superior, a duplicação dos recursos permitirá à União, com o montante dos recursos atuais, consolidar as universidades federais além de manter sua rede de escolas técnicas. Os recursos adicionais, da mesma magnitude dos atuais, poderiam ser divididos em duas fatias: metade se destinaria à educação básica para que a União possa cumprir a função de apoio técnico e financeiro, suprindo as deficiências locais; a outra metade constituiria um fundo por meio do qual seriam financiados projetos que engajariam fortemente as universidades na realização das metas definidas no Plano Nacional de Educação. A implantação dessa proposta não resolverá, por si só, todos os problemas da educação brasileira. Mas estou convencido de que é somente a partir dela que a solução se tornará possível. Fora disso, todas as proclamações em favor da educação não passarão de palavras ocas e promessas enganosas acobertadoras da falta de vontade política para enfrentar decididamente o problema.

EDIÇÃO 73, MAI/JUN/JUL, 2004, PÁGINAS 29, 30, 31, 32, 33, 34, 35