A carta – capítulo 9
– Pois não?
– Tia?
– Quem tá falando?
– É Lucinda.
– …
– Lucinda, filha de Emerenciana, de Glória, sua irmã.
Um sorriso alargou-se nas faces de dona Mariana da Costa Régis de Almeida, cabocla baixa, cabeleira grisalha grossa e basta, em corte curto e cheio. Os olhos cor de mel fulgiam oprimidos por maçãs do rosto salientes. Boca pequena, dentes também miúdos.
Dona Mariana era bem distinta de sua irmã por todos chamada de Glória, mas que não passava de Maria (naquela terra era assim: Vicente que vira Adolfo, Arlete que faz-se Fernanda, Antonio que quer-se Edivaldo, Ney que na certidão é Adilon): se aquela era baixa, essa é mediana, magra, morena clara, cabelos em cachos, olhos negros. Iam pela rua, ninguém dizia que eram irmãs da mesma mãe e do mesmo pai.
Mas eram.
Nasceram em Jabotão (de nome oficial Japoatã), mas se criaram a vida toda em Saco das Varas. O pai era mascate. Nas andanças, achou bom o lugar, resolveu botar a família nova ali. Pôs.
Com um ano de diferença, as duas andavam na sombra uma da outra. Tudo confidenciavam, nada se escondiam. De boneca de milho a bicho de estimação, de amigas a inimigas juradas, de pequenos flertes a grandes amores, tudo compartilhavam. Até que um dia apareceu em suas vidas Cabo Jorge. E o tudo se desfez.
– Mas que surpresa, menina! Há quanto tempo não falo contigo! Que milagre é esse? Não vai me dizer…? Tá tudo bem com Maria, não tá?
– Tá sim, tia, pode ficar sossegada.
– Graças a Deus, né minha filha? Porque, você ligando assim, de repente…
Mas me conte: como vai tua mãe, teu irmão? Notícias de teu pai? Maria continua na casa do Carrapicho? Que ela havia me dito que ia se mudar para a Lagoa. Ela mudou não, não é? Olhe, que deixar aquela casa é um pecado, num sabe?
– Não, tia, ela continua no Carrapicho. E tá todo mundo bem. Pai nunca mais deu notícia. Mãe acha que ele arranjou foi outra família. Leonardo não gosta que ela fale assim, mas eu não me importo não. Eu já nem lembro dele mais. Faz tanto tempo.
– Ô, minha filha…
– Mas não me incomoda não, tia. Juro. Fico vexada é com mãínha. Uma mulher sacudida, nova, esperando alguém que ninguém sabe se volta. Mas deixe isso pra lá.
– É melhor, né, minha filha. É melhor.
– Eu liguei foi mesmo é pra falar pra senhora que chegou carta de tio Argemiro.
– Foi?
– Foi. Mandou lembrança a todos e deu uma notícia que deixou todo mundo aqui de queixo caído.
– Ih, minha filha! Isso Argemiro fez sempre. Não sei onde aquele homem arruma tanta novidade.
– Disse que encontrou Cabo Jorge.
Dona Mariana, com o fone no ouvido, os olhos fulvos fitos na parede oposta, ficou muda por uns instantes que preocuparam Lucinda. Depois, medindo cada sílaba, pronunciou:
– E foi mesmo, minha filha?
– Foi sim senhora – respondeu a menina, aliviada.
– E onde foi?
– Em São Paulo?
– I-é?
– É. E eu queria…
– Você me faria um favor, Lucinda? Diga a Maria que amanhã, por volta do meio-dia, eu estou chegando aí. Diga que vou levar Tenório comigo. Peça pra ela arrumar o quarto do meio pra mim, que Tenório dorme na sala mesmo, visse?
– Mas, tia, eu queria perguntar…
– Eu conto tudo quando chegar aí, minha linda, prometo. Agora vá avisar tua vó, vá, que eu preciso arrumar uns assuntos aqui, tá bom?
– Então a senhora vem mesmo?! – guinchou Lucinda, excitada – Virgem Santíssima, que vai ser porreta demais!… – súbito, se refreando – Vixe. Desculpe, tia.
– Tem nada não. Tem nada não. Até amanhã.
Dona Mariana pousou devagar o fone no gancho. Algo em si acontecia. Tudo em torno se eriçava. Aracaju inteira mergulhava no tempo e refluía com as águas de Atalaia. Mirou firme a gaveta da cômoda da sala. Intensa, levantou-se e foi até lá. De dentro do móvel, retirou, com todo o cuidado, um retrato: um homem, de bigode e queixo rapado, olhava, autoritário, em diagonal. Contemplou-o por um tempo. Depois, foi arrumar as malas.