A carta – capítulo 11
Dona Inácia e Mariana chegam em casa já tarde da noite. Resolveram com Glória que ela dormiria no hospital. Mãe e filha mais nova estavam mais precisadas de descanso. Dia seguinte, Mariana iria render a mais velha.
Mal a mãe acende a luz, Mariana busca com os olhos a carta sobre a mesinha. Tentou disfarçar, mas dona Inácia, que conhece bem a filha, percebeu tudo:
– É, aquela é a dita.
A moça vai até o sofá, toma da carta, analisa o envelope, perscruta-o contra a luz. Olha para a mãe, interrogativa. Esta dá de ombros e se dirige ao quarto:
– Preciso de um banho.
De repente volta e diz:
– Tá com fome?
– Não.
– Pra variar. Não sei como você consegue ficar com esse corpo? Não come nada!
– Vai ver, é por isso.
– Sei. Quer tomar um banho?
– Vai a senhora primeiro. Depois eu vou
– Vai ficar aí fazendo o quê?
– Vendo tv.
– Então tá. As panelas estão no fogão. Querendo, é só esquentar.
– Tá bom.
Dona Inácia vai ao banho e a filha se deita no sofá. Na tv, uma programação desinteressante se sucede a cada canal por que Mariana passa com o controle remoto. Súbito, na tv educativa, explode da tela a imagem de um menino descalço, andando pela caatinga. É um documentário sobre o sertão nordestino. Aumenta o volume. O narrador fala de abandono, sonhos desfeitos, fome, seca, e tudo aquilo que já se fez lugar comum quando se trata de nordeste brasileiro. Um representante do Ministério da Integração Nacional fala de homens que deixam suas famílias em busca de uma vida melhor em outras regiões e que, muitas vezes, nunca mais retornam.
Neste instante, Mariana olha para a carta. Uma idéia vai aos poucos ganhando volume. E se… Começa a roer as unhas. A cabeça não pára de pensar. Na tela da tv, mulheres dão depoimento:
– O meu se mandou lá pras bandas do Amazonas. Té hoje! Tô eu aqui mais os menino vivendo Deus sabe como.
Pegou a carta. Olhou para os lados, foi até o corredor de acesso aos quartos. A mãe continuava no banho. Voltou para a sala, sentou no sofá, pernas juntas, cotovelos apoiados nelas, carta segura com as duas mãos. O corpo todo tremia. A idéia já tinha tomado conta da sala inteira. De olho no envelope e ouvido posto no corredor, Mariana, lentamente, começa a rasgar a beira do envelope. Pára. Põe a carta de volta na mesinha. Levanta, anda pelo tapete, vai até a janela. Torna a sentar. Num impulso, pega a carta e abre. De dentro do invólucro, saem papéis – talvez umas seis páginas pautadas – e uma foto, na qual figuram uma menina, um rapaz e uma mulher de uns trinta e poucos anos.
Começa a ler. A certa altura estanca e se levanta de um salto. No rosto, uma mescla de sofrimento e incredulidade. Acelera a leitura. Dos olhos, lágrimas começam a descer. Sente uma zonzura. As mãos tremem descontroladamente. A cada página lida, seu desespero aumenta. A cada passagem, salta-lhe da memória momentos da infância, ditos de seu pai, gestos de sua mãe, o rosto de Glória, de mistura com sonhos ruins e recorrentes que teve.
Ao concluir a leitura, toma uma decisão irrecusável. Quando dona Inácia sai do banho, não encontra mais a filha em casa. Nem a filha, nem a carta.