A carta – capítulo 15
Concluído o almoço, saboreada a refeição — doce de jaca — todos se dirigiram pra casa de Emerenciana. Foram recebidos na porta por Leonardo, moço taciturno, magro e alto, cabelo cortado rente (o que faz destacar suas orelhas). É o primogênito de Emerenciana, que teve mais três. Dois morreram — Laudelino e Luciana, a caçula. Sobrou a penúltima: Lucinda. Com a viagem do marido para a Amazônia, foi interrompida a seqüência de partos.
Todo mundo instalado na sala, veio de lá a anfitriã: meio baixa, roliça, cabelos presos num rabo de cavalo, olhos negros, Merenciana — como é chamada por mãe Gulóra —, ou Ciana, como é conhecida entre as comadres, adentrou a sala sorrindo e abrindo os braços para a tia:
— Ô, minha filha, como você vai?, saudou dona Mariana, toda afeto.
— Vamo levando, minha tia, vamo levando. Mas senta. Quer um suco, uma água.
— Tá reconhecendo seu primo, não?, intervém a mãe.
— Tenório?!
— Sim, eu merrmo.
— Vixe! Mas que home é esse, minha tia? Se eu soubesse que você ia ficar assim, não tinha casado com o "falicido".
Todo mundo se abriu numa gargalhada uníssona. Menos Leonardo. Já Lucinda não tirava o olhos do primo — todos os sentidos voltados para ele. Tenório sorriu. Fez menção de apertar a mão de Emerenciana, que o puxou para um abraço obrigando-o a se curvar.
— Vamo sentar, gente! Vamo sentar, ordenou a dona da casa. Querem um café?
— Não, minha filha, obrigada. Comi até me empazinar lá na casa de Maria. Talvez Tenório queira… Não? Então, fica em paz, filha.
— Querendo, é só botar água no fogo. Lucinda mesma pode passar…
— Não precisa não, filha, brigada.
Um silêncio ocupou o centro da sala. Tenório, sentado num tamborete, braços cruzados, semelhava um centurião romano. Mãe Gulóra olhava pro nada, absorta. Leonardo olhava para a mãe, como em busca de respostas. Esta retribuía-lhe o olhar com mil indagações. Lucinda concentrava-se para o momento em que fosse acionada para ler a carta de Argemiro. Dona Mariana é que rompeu o cerco do constrangimento geral: olhou pra Lucinda e disse serena:
— Vá buscar a carta, minha filha, vá.
A menina esperou o consentimento da mãe, que, com um meneio de cabeça, aprovou. Num instante, Lucinda foi e voltou com a carta já aberta. Ajeitou-se na cadeira de palhinha, passou os olhos pelas primeiras linhas, olhou os circundantes e indagou:
— Posso?
Todos assentiram com a cabeça. E Lucinda começou:
— "São Paulo, 25 de março de 2004. Minhas queridas Mãe Gulóra e Emerenciana. Espero que esta encontre todos bem por aí. Aqui vamos todo mundo bem também. Escrevo para lhe dar uma notícia que tem muito tempo acho que vocês aguardam. Por um acaso, passando numa oficina aqui em Santa Cecília, encontrei Cabo Jorge. Está magro, muito velho, mas continua o gaiato de sempre. Tava lá na oficina fazendo piada, contando lorota, todo pachola. Não me viu. Lolinha quer me convencer que foi engano meu, mas foi não. Era o homem mesmo. De qualquer maneira vou lá confirmar a história toda. Pelo jeito, ele mora ali por perto. Vou procurar saber isso também. Tá com jeito de ser feirante. Apareceu lá na oficina com uma perua velha, com umas tábuas amarradas em cima e uns caixotes dentro. Parecia fruta. De qualquer forma, vou procurar saber mais e torno a escrever para vocês. Um abraço e saudações a todos daí. Do sempre amigo Argemiro Vieira".
Dona mariana olhou para Mãe Gulóra. Essa devolveu uma pergunta:
— O que vosmicê quer fazer agora, minha irmã?
— O que você fazia no meu lugar, Maria?
— Não bulia com isso. O que passou, passou.
— Você fala assim porque não foi você.
— Não, minha irmã, não fui eu que fui desonrada à força. Desonrei-me com esse traste porque quis. Não tenho por isso motivo para querer fazer alguma coisa.
— Ter uma irmã violentada não é motivo o bastante, Maria?
Mãe Gulóra baixou o rosto. Os olhos marejaram. Tudo aquilo lhe doía muito. Amara muito. Amara demais. Ia fugir com ele. Quando soube da notícia de Mariana violada, quis imediatamente ela mesma vingar a irmã. Mais tarde soube que ele, o seu cabo, é que tinha cometido aquela desgraceira. Ficou prostrada, sem ação; sem acreditar; em estado de choque.
Mariana, envergonhada, dilacerada na carne e na alma, só sabia chamar pela irmã. Diante do mutismo de Maria, se desesperava ainda mais, pedia a morte. À aproximação do pai, seu Manoel Tenório, lançava gritos lancinantes, de horror e de vergonha: "Não, não venha! Me perdoe, meu pai! Me perdoe! Maria, diga a ele que me perdoe!". A mãe a agarrava pelos braços, tentava ninar a filha: "Chame tia Osana! Traga um médico! Calma, minha filha, não há nada a perdoar. Fique calma".
Velha Gulóra pôs-se a gemer baixinho. As lágrimas minavam a dor concentrada em anos. Emerenciana ergueu-se, foi até a mãe, abraçou-a. Dona Mariana condoeu-se também. Foi até a irmã, tocou-lhe os cachos, agachou-se diante dela e disse:
— Eu sei o quanto isso te faz sofrer, Maria. Me perdoe. Acho que não devia ter vindo aqui te aborrecer com essa história. Mas…
— Não há o que perdoar, Mariana – replicou Mãe Gulóra, fungando –. Você está certa em querer fazer justiça. E não tá errada em vir me procurar. Tem ano que você espera de mim uma atitude, eu sei. Você não pôde e não quer acreditar que meu amor por você tenha sido menor do que o que eu senti por ele, não é? Eu sei disso também. No fundo, você quer que a gente volte a ser irmã de novo. É como se fosse assim uma maneira, um jeito de compensar tudo aquilo que você perdeu, não é? Eu sei. Tudo bem: acho muito justo. Diga, o que você quer que eu faça?
Dona Mariana, olhos a escorrer lágrimas, ficou sem ação diante da irmã. Que capacidade era aquela de traduzir anos de agonia? De onde vinha aquilo tudo tão justo e certeiro? Abraçou sua Maria e puseram-se as duas a soluçar diante da pequena audiência. Emerenciana acompanhava a cena em lágrimas. Tenório parecia de pedra, os nervos tensos, os braços apertados sobre o peito. Lucinda desfazia-se em água e sal, tomada por toda aquela história para ela inesperada. Leonardo, olhos arregalados, assustado, lutava com os próprios sentimentos.
Lá fora alguém bateu palmas. Emerenciana foi ver quem era.