A carta – capítulo 21
– O senhor sabia que não pode fumá no ônibu?
Ele se vira para a senhora magrinha, cabelos brancos amarrados em coque no alto da cabeça, óculos de lentes grossas deformando ainda mais o olho estrábico. Volta-se para a janela, dá um trago fundo e defenestra o cigarro ainda pela metade. Enquanto solta a fumaça, pensa em como a família o irá receber depois de tantos anos. Talvez fosse melhor telefonar… Não. Iria dizer o quê? Escrever uma carta, quem sabe. Ligar pra algum conhecido… Olhaí: ligaria pra… Mestre Duda? Mestre Duda, taí: perguntaria por ela, pelos filhos. Será que a sogra ainda estava viva? Aquela ali não morre é nunca. A velha sabe os caminhos de enganar a morte.
O ônibus sacoleja pela estrada maltratada. O ar quente da tarde é amainado pela massa que o veículo desloca. Não fosse a dona véia aí, acenderia outro camarada.
Parada. "Vinte minutos" é o que ouve do motorista. Espera que se desfaça a muvuca do desembarque. Mal põe o pé fora do ônibus, acende um cigarro. A velha o encara, censurando-o. Ele, nem xite pro pingo de gente.
– Me vê um cartão aí, mestre – solicita ao jornaleiro – Eta peste cara isso, meu amigo!
Vai até o orelhão, disca para o posto telefônico de Saco das Varas.
– Alô – atende uma voz feminina arrastada do outro lado.
– Quero falar com Mestre Duda.
– Da bodega?
– E tem outro aí?
– Quem quer falar?
Fica uns segundos na indecisão. Dizer o nome é denunciar-se. Não dizer, pode ser que o velho não atendesse.
– Diga que é um parente… Melhor: diga que é um amigo do Amazonas. Quero lhe fazer uma surpresa.
– Então o senhor volte a ligar daqui a dez minutos.
Põe o fone no gancho e principia a formular as perguntas que fará. Entra na lanchonete, pede um café e um bolinho de carne. Enquanto come, acompanha os ponteiros do relógio de parede. Quanto mais próximo o momento do novo telefonema, aumenta uma sensação indefinida na boca do estômago. O coração parece não bater: tem a impressão de que lateja.
Termina a pequena refeição, vai em demanda do telefone. Disca. Na outra ponta da linha, a mesma voz dolente:
– Só um momento.
– Alô.
– Mestre Duda?
– Sim.
– Aqui quem fala é Ulisses.
– Quem?
– Ulisses!
– Ulíssi?! Eita pêntia! Onde você tá, rapaz?
– A caminho, Mestre, a caminho. Como tão as coisas por aí?
– Rapaz, tão é quente. Chega quando?
– Não sei, depende do que o senhor me disser.
– Quer saber de Ciana e os menino, não é? Eles vão bem, vão bem…
E Mestre Duda resume a história da família de Ulisses até aquele dia. O homem sente o nó crescer na garganta. Vê os filhos, sobretudo os olhos tristes do mais velho. Sente como um soco a notícia da morte da caçula. Fuma avidamente enquanto ouve. Por fim, Mestre Duda menciona o caso do Cabo Jorge:
– … e o velho tá em São Paulo, no bem bom. Teve até reunião na casa de Gulóra e tudo.
– E vão fazer o quê?
– Sei não. Mas corre por aí que Tenório vai a São Paulo acertar contas com o velho.
Enquanto o vendeiro vai dando detalhes, uma idéia vai se insinuando na base do cérebro de Ulisses:
– Mestre Duda, o senhor pode me fazer um favor?
– Diga lá.
– Consegue pra mim o endereço do Cabo em São Paulo?
– O que cê vai fazer, Ulíssi?
– Sei ainda não, Mestre. Posso ligar daqui a três horas, que é quando o ônibus pára de novo?
– Olha lá, rapaz… Não vai se meter em encrenca.
– Se avexe não, Mestre. Posso contar com o senhor?
– Tá certo. Você ligue mais tarde, então.
– Muito abrigo, visse.
– Aviso a Ciana que você vem.
– Não. Melhor não. Quando tudo tiver resolvido, eu mesmo chego e logo tudo se vê. Esse mundo é mesmo uma bola, Mestre. Quando a gente da fé, ói nóis de cara com o destino. Até.
– Até.
Embarca. O sol já toca a colina lá longe. Ulisses se fixa no futuro próximo. A vida, finalmente, recomeça.