– Cabo Jorge, seu pai, chegou em Saco das Varas lá pelo ano de 61. Acho que foi bem no comecinho do ano. Veio substituir um cabo que tinha se aposentado. O batalhão lá era um nadinha: nem batalhão era: era um punhado de soldado, um sargento, o Cabo e um delegado, que não parava lá. Quem mandava ali em tudo era mesmo o sargento. Eu era miúdo ainda: brincava de calção pela rua. Tinha o que… uns 11, 12 ano. Gostava de parar o que tava fazendo pra ver os macaco marchar. Era muito engraçado: aqueles molambo esmirradim com aquele baita fuzilzão no ombro. Dava até dó. Quando o Cabo chegou, fez boa figura. Era bonito, o danado do homem. E cheio de lérias. Conversador que só. Tinha um bigodinho que deixava as moça toda derretida. Corria o boato que ele vinha corrido de Urubu Brabo, onde tinha corneado um grandão do lugar. E ele não desmentia não. Dava aquela risada de quem diz nem sim nem não. Aí ele conheceu Gulóra. Moça bonita, filha de Manoel Tenório. Senhora do mundo e de suas coisas. Gulóra na verdade se chama Maria. Mas a vó, Dona Vivinha, que Deus a conserve em sua guarda, queria porque queria que a menina chamasse Glória e o nome acabou que pegou. Glória pra cá, Guilória pra lá, ficou Gulóra pra uns, Glória pras mais moça. Gulóra tinha uma irmã… tem uma irmã: Mariana. Era tudo diferente da mais velha: baixa, cabelo pra claro. Mas muito bonita também. A diferença de idade era pouca: coisa de um ano e meio. Não desgrudavam. Unha e carne. Todo menino era enrabichado por ela. Naquele ano, ela começava como professora do Grupo, se não me engano. Mãe Gulóra não estudou muito. Fez só o principal. Ela, a gente admirava. Mariana, a gente queria era um bem danado. Coisa de menino. Cabo Jorge cresceu os óio pra cima de Gulóra, morena bonita e brava. Não era uma brabeza assim destemperada não. Era educada, sorria pra todo mundo. Gostava mesmo de ajudar. Mas bulissem com Mariana, pra ver: ela virava no Cão. Fizessem desfeita a ela ou alguém de quem ela gostasse: ela escurecia ainda mais aqueles óio preto dela e ai do sujeito. Ela tinha um jeito de falar assim meio que nem você, moça: soltava a raiva à conta-gota. Uma vez, ela riscou um sujeito à faca. O léso achou de bulí com Mariana, que voltava do Grupo: assoviou, chegou junto e, coitado do ignorante, agarrou a menina pela cintura. A bichinha chegou toda assustada em casa. Tinha medo do pai fazer desgraça, contou à irmã. Hum: ela catou a pexêra e foi buscar o sujeito na bodega. Não deu aviso: agarrou o cabra pelo ombro e meteu uma chapada com o lado da lâmina. Do talho, saiu um filete de sangue. Quando o infeliz se armou pra revidar, ela já tinha feito trapo da roupa dele. Levaram o cujo pra farmácia. Depois dessa, ninguém nem queria olhar pra Mariana. O namoro com o Cabo começou num baile. Ela tava sentada, esperando um par. Dançava bem a danada. E não dava ousadia. O cidadão queria arrochar mais um pouco, ficava plantado, com cara de lolô, no meio do salão. Uma vergonha. Cabo Jorge veio, com aquela ginga dele, aquele riso de lado, maroto, chamou a moça. Ela primeiro recusou. Ele disse umas graça pra ela, ela fez força pra não rir, depois riu e cedeu. Dançaram a noite toda que Deus deu. Mariana também dançou, mas com outros pares. Gulóra ficou foi o Cabo. Encontra aqui, se cruza ali; bilhete, recado, passeio, ói os dois namorando. Seu Mané Tenóri mandou chamar o sujeito: "Quais são suas intenções". Cabo Jorge falou em coisa séria, prometeu aliança pra logo e coisa e tal. Principiaram a namorar em casa. E foi em casa que Cabo viu Mariana.

      – Senhora Glória?

      – Sim.

      – Seu pai acordou.

      – Obrigada. Seu Argemiro, vou lhe pedir um favor.

      – Pois peça, moça.

      – Que o senhor me espere aqui alguns minutos.

      – Eu queria mais é ver o Cabo.

      – Não pode ser. Ele acaba de acordar e nem sei como está. O senhor me aguarda aqui que, num instante, eu volto.

      – Eu tenho o que fazer, siá menina. Não posso assim ficar à disposição.

      – O senhor já almoçou?

      – Não.

      – Então almoçamos juntos. Já volto.

      – Mas Gulóra…

      Ela já vai pelo corredor.

      – Diacho de mulher! É Gulóra escritinha. Por nossa senhora!

      Da porta do quarto, Glória vê o médico conversando com o pai. Esse, ao percebê-la, ensaia um sorriso.

      – Talvez demore um pouco para se lembrar das coisas – sussurra-lhe a enfermeira.

      – É melhor assim – devolve Glória. – Talvez seja mesmo melhor assim.