Capitalismo e desemprego nos Estados Unidos
"A estagnação do emprego" é o título do artigo, na Monthly Review de Abril de 2004, de autoria de Harry Magdoff, John B. Foster, Robert W. McChesney. Magdoff, como se sabe, é um importante pensador de esquerda, nos Estados Unidos, que se dedica com seus companheiros, nesse artigo, a mostrar como a evolução do capitalismo dá sinais nada alentadores para os trabalhadores assalariados de todos os setores da economia.
As contínuas flutuações econômicas nos Estados Unidos têm demonstrado, nos últimos tempos, uma agravante: após cada recessão é menor a geração de oportunidades de trabalho. Para se ter uma idéia, desde que Bush assumiu a presidência, o país já perdeu 2,3 milhões de empregos. A dificuldade é tal que parte dos trabalhadores acaba desistindo de procurar trabalho, pelo menos por um tempo; com isso, deixam de compor a força de trabalho e, por isso, em parte, a taxa de desemprego não é maior, estando, hoje, "oficialmente", em 5,6%.
O artigo mostra que o problema está numa reestruturação do mercado de trabalho que produz mudanças profundas naquela sociedade. A desregulação dos mercados, o deslocamento para outros países – com salário real menor – de certas funções do processo de trabalho, as inovações tecnológicas, estão entre os fatores provocadores dessas mudanças.
Após análise acurada dos dados os autores concluem que a economia estadunidense passa por alterações que produzirão um incremento de longo prazo – denominado por Karl Marx de "exército industrial de reserva". Em outras palavras, o número de trabalhadores desejosos de trabalhar e que não encontrarão oportunidades tende a crescer.
Assim como o processo de redução de postos de trabalho já atingiu secularmente a indústria e a agricultura, agora, atingirá o setor serviços que foi, no século XX, o grande gerador de emprego. As tecnologias de informação já vêm atuando nesse sentido há algum tempo mundo afora, inclusive no Brasil.
Para quem conhece o pensamento marxista sobre a questão é evidente que estamos diante de um aprofundamento da tendência inexorável e contraditória do capitalismo de ver-se "livre" do trabalho que é a fonte originária da própria valorização do capital. Ou seja, os tempos de capitalismo dito globalizado têm acelerado o movimento previsto por Marx, segundo o qual a combinação de acumulação de capital, progresso tecnológico e concorrência acirrada acabaria por conduzir o sistema a uma crescente dificuldade para a classe trabalhadora. É claro que o progresso das técnicas é bem-vindo. O problema é que, no capitalismo, isso conduz a tornar desemprego aquilo que seria tempo livre para os trabalhadores, dado o aumento incrível da produtividade que torna possível ofertar mais bens e serviços com menor uso de mão-de-obra.
Mesmo um capitalismo portentoso e poderosíssimo como o americano já não oferece amplas chances de sociabilidade
E então? Os autores abrem na seqüência a recorrente discussão dos economistas críticos: haverá uma estagnação econômica já que o consumo da economia não evoluirá positivamente com esse cenário de desemprego estrutural? A resposta deles parece ser afirmativa: estaríamos diante de uma tendência ao subconsumo que terminaria por levar a economia à estagnação. Afirmam eles: "(…) raramente o investimento cresce por longo tempo sem pelo menos existirem expectativas de um rápido crescimento do consumo". É uma tese equivocada, desde as descobertas de Marx, Schumpeter, Keynes e Kalecki. O capitalismo depende essencialmente do investimento e do consumo dos próprios capitalistas, das altas classes médias, dos gastos militares com "guerras nas estrelas" (ou no Iraque, entre outros), das incessantes inovações produtivas, financeiras etc. Portanto, não será por estagnação que o capitalismo, para escapar de um impasse econômico, acabará se redimindo face ao desemprego e à má distribuição de renda. Marx tinha claro que o desemprego estrutural não será resolvido no capitalismo ao longo da história. O capital explora o trabalho e depois o descarta. O capital gera suas crises acumulando demais, especulando demais, gerando dinheiro pelo dinheiro, independentemente da sorte das pessoas. Por isso, Marx concluiu que o capital é um modo de produção historicamente limitado e que tenderia a ser substituído por outro "socialmente superior".
Nossa crítica à tese subconsumista, entretanto, não retira de forma nenhuma o alto valor do artigo de Magdoff e seus colegas. Mesmo um capitalismo portentoso e poderosíssimo como o americano já não oferece amplas chances de sociabilidade, é o que eles demonstram de maneira exemplar. Imaginem os capitalismos do tipo do brasileiro! A estagnação do emprego (extratos)
Monthly Review
Quando a carência em postos de trabalho coincide com uma crise estrutural mais profunda; quando a procura agregada e, por conseguinte, as oportunidades de investimento são obstruídas pela baixa taxa de emprego e por baixos salários, e quando a falta de emprego cria um problema político, desencadeia-se por vezes movimentos de contestações das massas e das sociedades. Nos EUA, tais contradições são visíveis em 2004.
Para tentar saber qual a atitude da administração Bush sobre a atual crise do emprego, seria lógico consultar o recente relatório do presidente sobre questões econômicas (Economic Report of the President).
É habitual o relatório do presidente sobre questões econômicas incluir um capítulo relativo ao mercado de trabalho, pelo menos uma vez em cada ano. A administração de George H. W. Bush publicou por duas vezes capítulos sobre o mercado de trabalho, e os quatro relatórios que elaborou continham uma média de 16 páginas dedicadas às questões do emprego; já nos oito anos da administração Clinton, foram publicados quatro vezes mais capítulos dedicados ao mercado de trabalho.
A negligência relativamente à vertente emprego não se deve ao fato de este tema se ter tornado uma não-questão. Na realidade, a omissão nesta matéria reflete o fato de se tratar de um calcanhar de Aquiles econômico da atual administração.
Esta situação remete para o que foi vulgarmente designado por "recuperação sem criação de emprego" na recessão de 1990-1991, pois apesar da economia norte-americana ter-se recuperado da recessão de 1990-1991, o crescimento do emprego foi quase nulo durante mais de um ano.
De acordo com o relatório do Economic Policy Institute para o mês de fevereiro de 2004 ("Understanding the Severity of the Current Labor Slump"), em todas as recessões anteriores desde os anos 30, "o defasamento entre o final de uma recessão e o ponto mais baixo do ciclo em matéria de emprego nunca tinha excedido três meses"; todavia, na atual quebra do emprego, só 21 meses depois do final da recessão (29 meses desde o seu início) esse ponto foi finalmente atingido.
Forem, o que mais atraiu a atenção no Economic Report of the President de 2004 foi uma sub-reptícia previsão sobre o emprego, inserida sem comentários num quadro. Sob o título "previsões da administração", esse quadro mostra várias projeções relativas ao PIB, à inflação, às taxas de juros e à taxa de desemprego, incluindo igualmente as transformações previstas pela administração no que se refere ao emprego em atividades não agrícolas – que contribui para um aumento da média do número de postos de trabalho em cerca de 2,6 milhões em 2004. Dado que esta média se baseava em dados mensais e que o nível de novos postos de trabalho era já muito inferior nos primeiros meses do ano ao necessário para produzir este resultado final, era evidente que, para alcançar a média de 2,6 milhões de empregos em todo o ano de 2004, deveriam ser efetivamente criados muito mais de 3 milhões de postos de trabalho.
Reestruturação do mercado de trabalho
Como explicar esta estagnação do emprego? Obviamente, neste contexto isto não é apenas o resultado das flutuações normais do ciclo econômico, mas antes o resultado de mudanças estruturais mais profundas na economia capitalista.
Durante os três primeiros trimestres das quatro recessões anteriores à depressão do início dos anos 90, as dispensas permanentes representavam em média cerca de metade do total das dispensas, cerca de 70% na recessão do início dos anos 90 e perto dos 90% na recessão de 2001.
O impacto mais significativo da perda de postos de trabalho fez-se sentir no setor industrial. O emprego nesta área decresceu 16% entre junho de 2000 e dezembro de 2003 – a maior quebra cíclica em mais de 40 anos – tendo continuado a decrescer em 2003.
Embora estejam a ocorrer mudanças estruturais invulgarmente significativas no mercado de trabalho, fica ainda por explicar o que se esconde por trás dessa realidade. A resposta mais evidente é que as empresas estão a utilizar a recessão como desculpa para reestruturarem a mão-de-obra, de forma a reduzirem os custos unitários do trabalho e as despesas salariais.
As empresas não só reduziram o pessoal como passaram cada vez mais a recorrer a trabalhadores temporários e à externalização (outsourcing).
A amplitude da externalização da produção e da prestação de serviços em geral por parte das empresas é extremamente difícil de avaliar. No entanto, não há dúvidas de que vem se tornando cada vez mais persistente à medida que a reestruturação, com o objetivo de reduzir drasticamente os custos unitários do trabalho e as despesas globais, se tornou onipresente em toda a economia.
Stephen Roach, economista-chefe e diretor do departamento de economia mundial na Morgan Stanley, referiu-se às mudanças estruturais ocorridas em nível mundial e que afetam agora a economia norte-americana como "nova arbitragem mundial do trabalho". De acordo com esta análise, novas forças que estão a promover a deslocalização "atuam agora como um poderoso retardador nas fontes tradicionais de criação de emprego das economias com níveis salariais elevados".
Assim sendo, o capital multinacional é capaz de tirar partido das assimetrias mundiais para criar mais formas viciosas de concorrência entre grupos de trabalhadores que são geograficamente imóveis e conseqüentemente incapazes de se unirem.
Estagnação econômica
Em geral, as explicações dos conservadores e dos liberais sobre o fato de a recuperação ocorrer sem criação de emprego limita-se aos fatores expostos supra: 1) deslocações de mão-de-obra (em geral supostamente temporárias) decorrentes do crescimento da produtividade; e 2) reestruturação econômica, nomeadamente deslocalização para a China ou outros países, suscitando a questão da "proteção dos empregos norte-americanos". Todavia, uma explicação mais profunda não deveria limitar-se a estes fatores; deveria sim reconhecer que a quebra do emprego é uma manifestação de tendências inerentes ao próprio capitalismo.
O verdadeiro repto para o capital gerado pela elevada taxa de desemprego e subutilização da mão-de-obra não reside diretamente na carência de postos de trabalho ou no fato de muitos trabalhadores terem sido objeto de dispensas permanentes. O problema reside algures: no fato de o sistema, por mais dinâmico que seja na oferta (em termos de produtividade, da sua capacidade de expansão e de geração de excedentes econômicos) não se poder expandir durante muito tempo sem que a procura agregada aumente.
Esse problema indica a persistência de problemas para a economia. Durante a recuperação, o emprego não só estagnou como decresceu, assim como os salários agregados e os salários reais dos trabalhadores ocupados diminuíram. Em dezembro de 2003, 33 meses após o início da recessão, os salários agregados e os salários reais situavam-se 0,7% abaixo do nível anterior à recessão.
Isto suscita a questão mais lata da natureza e lógica da acumulação no capitalismo monopolista globalizado. A estagnação do emprego analisada até suas raízes conduz ao problema da profunda estagnação da economia capitalista em geral. Isto pode ver-se na taxa de crescimento da produção mundial per capita, que tem vindo a decair desde a década de 60.
Numa economia madura monopolista, a estagnação, caracterizada por um crescimento relativamente lento e um desemprego e excesso de capacidade crescentes, transforma-se no estado para o qual a economia flete -falta de fatores específicos de desenvolvimento que contribuam para tirar a economia da depressão. A questão a explicar, neste caso, não é tanto a estagnação em si (como muitos economistas ainda pensam), mas antes a existência de um crescimento mais ou menos rápido durante determinados períodos breves.
Embora tendendo para a estagnação, a economia norte-americana foi estimulada por vários meios artificiais, muito semelhantes às máscaras de oxigênio utilizadas pelos alpinistas para escalar os picos mais altos. A maior fonte de estímulo nas últimas décadas tem sido um vasto fluxo de dívida privada e pública associada a uma época de especulação financeira. Outro tem sido o impulso providenciado por quantidades maciças de despesas militares.
Grandes inovações tecnológicas e a emergência de indústrias totalmente inéditas podem ajudar a injetar uma nova dinâmica na economia, porém podem se tornar insuficientes – tal como no caso da segunda vaga de automobilização da economia norte-americana na década de 60 ou o desenvolvimento das tecnologias da informação nos anos 90.
A íntegra do texto original assim como as fontes de dados, encontram-se em http://www.monthlyreview.org/0404editors.htm e no volume 55, nº 11, Abril de 2004 da revista Monthly Review.
EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 19, 20, 21, 22