Dez anos pós-real: desnacionalização, dívidas e desemprego
Mistificação, cinismo e deboche à nação: eis o que se pode dizer das declarações, artigos e entrevistas, dos autores do sofisticado engodo da “estabilização” da economia – dez anos do Plano Real.
Fartamente badalado na mídia, revelou-se indisfarçável o esforço ideológico dos submissos à “globalização financeira” – em malabarismos nada gratuitos –, e justificativas que têm a ver com a reorganização da passagem a uma outra etapa da ofensiva ultraliberal contra o Brasil.(1)
Nos discursos (como que combinados) de comemorações dos dez anos do plano, FHC, Edmar Bacha, Armínio Fraga, Pedro Malan e Pérsio Arida, especialmente, orquestraram um simulacro explicativo: o objetivo do Plano Real reduziu-se essencialmente ao da “estabilização da moeda”, ou a “uma reforma monetária”, com objetivo de debelar a inflação.
Segundo FHC, o Real levou nosso povo a uma “mudança de atitude geral”, para além da moeda: os brasileiros “passaram a perceber o quanto vale o dinheiro”. Aplaudindo a própria afetação narcísica – coisa de intelectual burguês sem capital –, e ainda declarando o intuito manipulatório do plano econômico conduzido por ele como presidente da República, diz FHC que “quando a população passou a sentir que tinha ganho, que foi a partir de julho, os dados de pesquisa começaram a mudar”. E prosseguindo a deliciar-se: “Não há dúvida: sem o Real, não seria possível [sua reeleição]. Nem popularizar meu nome”, afirmou em entrevista (Folha de S. Paulo, 27/6/2004, p. B-8).
De acordo com Bacha – um dos principais mentores do Plano, junto com Winston Fritsh –, o Real teria começado em 1993 (Fundo Social de Emergência e URV), e terminado em 1996, com o fim da indexação salarial, quando passara a funcionar a nova moeda numa economia desindexada: “Ou seja, uma economia com uma inflação baixinha. O Plano foi isso”, enfatizou; até porque não se deve confundir a reforma monetária com a política econômica que se seguiu, acrescenta em sua enrolação, Bacha (Folha de S. Paulo, idem, p. B-9). A mesmíssima cantilena é enfatizada por Fraga, para quem, “O Plano Real, por si só, foi um mecanismo de estabilização da economia pré-anunciado, com a URV” (Folha de S. Paulo, idem, p. B-6) Fazendo contas de uma inflação de “mais de 1000%” entre 1988-1992, Malan engrossa o coro para dizer que a queda sustentada da inflação”, somada à “relativa abertura às importações” (!!) e as privatizações, levaram a “maior eficiência e competitividade” um número expressivo de empresas brasileiras (Valor Econômico, 30/6/2004, p. F6)
Definindo os objetivos principais do plano, o afirmado por Bacha tem o inteiro aval de Pérsio Arida, para quem houve remoção do “componente da indexação automática, que conferia a inflação um caráter fortemente inercial à inflação brasileira. Desapareceu, assim, a especificidade da nossa inflação”, diz (Valor Econômico, idem, p. F5). Já para Gustavo Franco, o arrogante ex-presidente do BC, tornado o crupiê da maior jogatina financeira(2) de que se tem notícia em nossa história, “não houve nenhum erro muito sério” com o plano; “acho que falhamos no terreno fiscal”, diz ele (Folha de S. Paulo, idem, p. B-7). Elogiado por FHC, na entrevista acima citada, como tendo “enorme capacidade de resolver problemas”, Franco, acusado inclusive por inúmeros economistas conservadores em manter uma política cambial de supervalorização da moeda, quebrando o país e levando-o à recessão após a crise asiática, repete num raro cinismo: “Não faria um milímetro diferente” (Valor Econômico, idem, p. F7).
Um festival de mentiras
São mentirosas as afirmações de que o Plano Real se limitava ao combate à inflação. Como tinha escrito Malan, além da inflação sob controle, a “melhoria continuada das condições de vida da maioria da população”, o Plano Real visava ao “crescimento sustentado, como mudança estrutural e aumento da produtividade média da economia”.(3) O próprio Franco chegou a teorizar que, no Plano, a estabilização, “para ser bem sucedida”, deveria enunciar “um novo modelo de desenvolvimento”; e os recursos que advieram das privatizações – “síntese das mais importantes na reforma do Estado”, complementara – estavam servindo para “reduzir a dívida pública e elevar a poupança pública”.(4) Indo mais além, conforme dois outros formuladores destacados da “teoria” do Plano, José Roberto Mendonça de Barros e Lídia Goldenstein(5), “O ponto de partida do Real foi a retirada da inércia inflacionária e a desindexação. O ponto de chegada deve ser o crescimento sustentado, entendido como uma elevação importante na taxa de investimento – suficiente para elevar o produto, a renda e o emprego com simultânea redução das desigualdades que caracterizam o país”. Perfeito!
Ora, o Plano Real, elaborado por inegável criatividade de brasileiros apátridas, inseriu-se completamente nas diretrizes do Consenso de Washington, tendo como metas fundamentais as chamadas reformas liberais de abertura comercial, as privatizações e a desregulamentação e liberalização financeira. Por muito pouco não levou o país aos primórdios coloniais.
Seus trágicos resultados podem assim ser comprovados, na seguinte síntese:
1. O que Luciano Coutinho advertira cursar uma “especialização regressiva”, materializou-se no maior processo de desnacionalização da história da economia brasileira. O que significou uma transferência de propriedade de empresas nacionais para investidores e sem contrapartida proporcional do investimento brasileiro no exterior; internacionalização que aprofundou a participação estrangeira na indústria e desnacionalizou atividades de serviços antes dominadas por empresas de capital nacional, públicas ou privadas.(6) Como concluiu Laplane, apesar de uma estrutura produtiva “mais eficiente” que a do início dos anos 90, as mudanças profundas na estrutura produtiva brasileira tornaram-na “mais desnacionalizada e mais dependente de insumos importados a produzir” (idem, p. 51).
Note-se que a enganação neoliberal apostava no financiamento externo como supridor da poupança doméstica. Entre 1990-95 e 2001, o IDE (Investimento Direto Estrangeiro) no Brasil passou de US$ 2 bilhões (média anual) para US$ 22,4 bilhões, respectivamente. Entretanto, foi intensa a desnacionalização da economia brasileira, bem como o aumento da vulnerabilidade externa: apesar desse fluxo considerável, a taxa de investimento produtivo da economia brasileira oscilou, com tendência declinante, entre 21 e 19% do PIB; exatamente entre 1994 e 2002, a taxa caiu de 20,8% para 18,7% do PIB. Voltados fortemente à aquisição de empresas públicas nas privatizações, o IDE aprofundou muito o grau de internacionalização produtiva da economia brasileira, o que, longe de aumentar o potencial de crescimento, “agravou a restrição externa”.(7)
Na linguagem mais direta de Reinaldo Gonçalves(8), nos governos de FHC verificou-se um tipo de processo de desnacionalização “inusitado na história da economia brasileira”, por ter envolvido “o enfraquecimento generalizado dos blocos de capitais nacionais”, e cuja particularidade encontra-se na perda de posição relativa de empresas estatais e privadas nacionais; ao lado de crescente importância relativa de grupos estrangeiros, no movimento geral de concentração de capital.
2. O que seguiu a implacável lógica liberal, registrado pelo vertiginoso endividamento público. Entre 1994 e 2002, a dívida pública brasileira subiu como em nenhuma época, passando de 30% do PIB para 56,5% no final do período considerado. Além disso, a parte da dívida dolarizada atingiu 49% do seu estoque, passando a ser altamente concentrada em empréstimos para pagamento de curto prazo.
Por outro lado, exatamente entre 1996 e 2002, enquanto a renda das empresas consideradas não-financeiras aumentou em 20%, o excedente operacional do setor financeiro cresceu nada menos que 178%, em função da elevadíssima taxa de juros e a política do câmbio valorizado que explodiu a dívida pública, desde o início do Real. Decorreu precisamente daí 30% do valor total do crescimento das contas nacionais (R$ 157 bilhões no PIB do período) terem sido apropriados por credores na forma de juros: “O país se transformou na república dos rentistas!”, enfatizou corretamente M. A. Cintra.(9)
Sob outro ângulo, e de acordo com estatísticas do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), a dívida externa bruta, que em 1994 era de pouco mais de US$ 148 bilhões, saltou para US$ 241 bilhões em 1998. E o que se tem afirmado como sendo a causa originária da flagrante vulnerabilidade externa, aparece com nitidez na recente declaração do ex-ministro de FHC e economista Bresser Pereira, que vale a pena transcrever:
“De repente, Washington, Nova Iorque começaram a dizer que nós devíamos crescer usando mais recursos do exterior, ou seja, entrando em déficit em conta corrente e aumentando o nosso endividamento externo: endividamento externo financeiro e endividamento externo patrimonial, que é com empresas que fazem investimentos diretos. Ora, essa política foi desastrosa para o Brasil. Por quê? Por dois motivos fundamentalmente: primeiro, porque o Brasil já estava muito endividado e você sabe muito bem que, a partir de uma relação dívida/exportação de um e meio, uma vez e meia, torna-se muito mal para o desenvolvimento, torna-se muito perigoso para o desenvolvimento aumentar a dívida”.(10)
3. Segundo o IBGE, em fins de 1994 o desemprego vitimava 4,5 milhões de trabalhadores, ou 6,1% da força de trabalho no país. Encerrado o primeiro mandato de FHC (1998) avançara para 7 milhões de brasileiros, ou 9,2% da PEA: leia-se, em seu primeiro mandato FHC foi responsável por mais 2,5 milhões de desempregados. Em 2000, o desemprego emerge explosivamente: 11,5 milhões de trabalhadores, ou quase 15% da PEA. De acordo com o economista M. Pochmann, comparando-se os dados do Censo Demográfico de 2000 com os de 1994, encontra-se um adicional fantástico de 7 milhões de novos desempregados gerados durante sete anos de governo FHC; quer dizer, um milhão de desempregados a mais para cada ano de governo.(11)
4. Fenômeno perverso, conhecido em todos os países dependentes que se tornaram vassalos do receituário neoliberal – e confirmando definitivamente que vivemos a época da especulação rentista e à custa da massacrante exploração do trabalho –, a vertiginosa queda na renda dos trabalhadores, teve nos governos de FHC exemplo mais que nítido. Assim, constatou-se que, nos anos referidos acima (1996-2002), a renda per capita disponível caiu 5,2%, a renda média familiar anual disponível regrediu de R$ 19,9 mil para R$ 17,4 mil (queda de 12,4%), o que representou uma queda no consumo familiar per capita de 13,7% e 6,6%, respectivamente (Cintra, idem). Em 1992, a renda do trabalho (salários e remuneração) correspondia a 44% do PIB; em 2002 caiu para 36%.(12)
5. De 1990 a 2002, a produtividade do trabalhador na indústria cresceu 2,6% ao ano, entretanto “isso à custa de um acentuado decréscimo do nível de emprego e com baixo investimento”, revelou o IEDI (Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial); produtividade desde 1999 “estagnada” a partir da desvalorização do real (O Estado de S. Paulo, 23/05/2004). Desvalorização, aliás, que não fez reagir as exportações. Como bem resumiu o industrial E. Staub, “de repente, com o Plano Real e a sobrevalorização da moeda, de 1994 a 1998, destruiu-se esse esforço [exportador]. A conta foi zerada e voltamos a ter déficit. Retrocedemos na história. A surpresa seguinte foi as exportações não reagirem à desvalorização forte de janeiro de 1999”.(13)
Em suma: a “estabilização” inflacionária do Real jogou no fundo do poço os salários dos trabalhadores, elevando a recordes absolutos as taxas de desemprego no Brasil. Um liberalismo de contrabando – ou o “comospolitismo” de cócoras – decompôs acentuadamente a indústria nacional, tornando o país prisioneiro da especulação rentista e muito mais dependente.
Aliás, não é à toa que, com o habitual sarcasmo, o ex-ministro Delfim Neto recorda que ainda em janeiro de 1995, alertara ir o Brasil “pagar caro” pela política cambial adotada, vez que a indústria sofreria “conseqüências devastadoras”. Claro, acrescentando reconhecer a “excelência” do programa de controle inflacionário: fora baseado no “sutil e inteligente congelamento da estrutura de rendimentos” (Valor Econômico, 15/6/2004, p. A2).
Sérgio Barroso é economista e membro do Comitê Central do PCdoB
(1) Grandes banqueiros e ex-dirigentes da Fazenda e do Banco Central do Brasil, dos governos de FHC aninham-se desde o final de 2003 num "aparelho" conhecido como "Casa das Garças" (Núcleo de Estudos de Política Econômica, Casa das Garças, Rio de Janeiro). Persistindo em intentos nefastos ao país, Edmar Bacha, Pérsio Árida e André Lara Resende, agora teorizam sobre uma nova bateria de "reformas" ou um desdobramento do Plano Real: o principal problema do país agora é "a incerteza jurisdicional" – leia-se: "a resistência de indivíduos e firmas a tornar sua poupança disponível para aplicações financeiras no país", escreve Bacha ("Lições de uma década", Folha de S. Paulo, 24/6/2004). Ninho de garças ou valhacouto de hienas?
(2) É simplesmente emblemático estar Gustavo Franco atualmente sofrendo processo judicial para condenação por "crime de improbidade administrativa", instaurado em dezembro passado pelas procuradoras da República, Valquíria Nunes e Raquel Branquinho. Artifícios (circulares, carta-circulares do BC etc), para burlar legislação existente (e eficiente), datada de 1962 (Lei 4.131), que regula a evasão de divisas, representariam cerca de US$ 80 bilhões desviados irregularmente, via as contas CC-5, fundamentalmente a liberalização havida entre 1996 e 2002 ("Uma manipulação extraordinária", de Raimundo Rodrigues Pereira, Revista Reportagem, n° 53, fevereiro de 2004).
(3) Ver o megalomaníaco artigo, de Pedro Malan: "As perspectivas do Real no limiar do novo século". In: O Brasil e o mundo no limiar do novo século, volume II, de Velloso, J. P. R. (org), José Olympio, 1998, p. 42-43.
(4) Ver, de G. Franco, "O Plano Real em perspectiva de médio prazo". In: O Brasil e o mundo no limiar do novo século, volume II, de Velloso, J. P. R. (org), José Olympio, 1998, p. 68.
(5) Ver: "Economia competitiva, solução para a vulnerabilidade", de J. R. Mendonça de Barros e L. Goldenstein, In: O Brasil e o mundo no limiar do novo século, volume II, de Velloso, J. P. R. (org), José Olympio, 1998, p. 140.
(6) Cf. Mariano Laplane & Fernando Sarti, "O Investimento Direto Estrangeiro e a internacionalização da economia brasileira nos anos 90". In: Internacionalização e desenvolvimento da indústria no Brasil, de Mariano Laplane, Luciano Coutinho e Célio Hiratuka (org.). Trata-se da mais importante e consistente pesquisa sobre o tema (Unesp/ Unicamp, 2003, p. 49).
(7) Cf. Sarti, F. & Laplane, M., "O Investimento Direto Estrangeiro e a internacionalização da economia brasileira nos anos 1990”. Economia e Sociedade, jan./jun. 2002.
(8) Em: Globalização e desnacionalização, de R. Gonçalves, Paz e Terra, 1999, p. 137.
(9) Ver: "Os limites da retomada", de Cintra {Folha de S. Paulo, 5/7/2004, p. b-3), sobre dados da resenha de Renda, Consumo e Crescimento, de Dupas, G. (org.), Publifolha, 2004.
(10) Ver: Para Bresser, erro nos anos 90 foi país tentar crescer com poupança dos outros, depoimento de Bresser Pereira à Agência Brasil, 1º/7/2004.
(11) Os dados e referências encontram-se em Questões sobre a nova situação brasileira, de A.Sérgio Barroso, mimeo. Ao III Seminário Internacional – Crisis, Revolución y e Socialismo. Cuadernos Marxistas, Buenos Aires, 127 a 29 de maio de 2004.
(12) Cf. Pochmann, M., entrevista "Renda do trabalho migra para bancos e governo". In: Valor Econômico. 1º , 2 e 3/8/2003, p. A-3.
(13) Entrevista de Eugênio Staub, O Brasil Diante de uma Oportunidade Histórica, Carta do ledi, 4 de julho de 2003.
EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 15, 16, 17, 18