O debate eleitoral deve ser “nacionalizado” ou “municipalizado”? A questão, recorrente nos meios de comunicação pela voz de analistas e mesmo de alguns protagonistas da peleja – candidatos e dirigentes partidários – prossegue no transcurso da atual campanha, apesar de um certo quê de bizantinice. Apresenta-se em duas dimensões. Uma, subjetiva, diz respeito à conveniência tática de esta ou aquela corrente política explorar o desempenho do governo Lula no discurso dos candidatos. A outra, objetiva, relaciona-se com a impossibilidade, em qualquer análise séria, de se apartar os problemas estruturais de nossos municípios da problemática nacional.

No plano subjetivo tático, as opções variam conforme a realidade política de cada município e as motivações dos atores em presença. O PCdoB, por exemplo, que integra a base de sustentação do governo federal, manifesta a convicção de que, embora municipal, o pleito contém um irrecusável sentido nacional – sobretudo pelos seus resultados nas capitais e grandes e médias cidades, que pesarão na correlação de forças políticas no período pós-eleitoral. Daí ser necessário fazer da conexão dos problemas locais com a questão nacional um fator de esclarecimento e de mobilização do eleitorado. Informar sobre o complexo processo transitório do modelo de desenvolvimento herdado para um novo projeto nacional e destacar os avanços conquistados pelo governo e defender as bandeiras do crescimento da produção com expansão do emprego e valorização do trabalho impõem-se com destaque na plataforma dos candidatos comunistas.

Costuma-se afirmar, com razão, que é no município que o cidadão vive, trabalha, luta, sofre suas agruras e alimenta suas esperanças. Os problemas do país se concretizam no município. Especialmente nos de perfil urbano.

Isto é tão evidente quando se examina o processo de urbanização verificado no Brasil a partir dos anos 30, quando começou a se inverter a relação entre o agrário e o industrial na evolução da sociedade brasileira, com a progressiva hegemonia do urbano-industrial (mesmo conservando intacto o monopólio da propriedade fundiária rural) na formulação e implementação das políticas públicas de incremento da economia.

Esse processo teve significativo rebatimento na distribuição espacial da população. Dos anos 40 ao final da década de 80, quando o país cresceu economicamente a taxas elevadas (comparando-se com a média mundial), exibindo um PIB anual de 7%, as cidades – sobretudo metrópoles emergentes, como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte – passaram a exercer grande poder de atração em relação à população interiorana do próprio Sudeste e, em grande medida, do Nordeste. Verificou-se movimento migratório de grandes proporções que resultou num crescimento da população urbana da ordem de 125 milhões de habitantes em apenas seis décadas. Em 1940 apenas 18,8% da população brasileira eram considerados urbanos; em 2000 esse percentual se elevou a 82%, segundo os critérios do IBGE.

O crescimento da economia no período se deu sob o padrão de um capitalismo dependente, concentrador da propriedade, da riqueza e da renda e engendrador da miséria, cujas conseqüências, hoje, fazem-se mais perversas em razão das duas últimas décadas de semiestancamento da economia e da crise financeira e fiscal do Estado brasileiro em tempos neoliberais, que reduziram drasticamente a capacidade governamental de investir em infra-estrutura e programas sociais.

Assim, é nas cidades, mormente nos grandes aglomerados urbanos como as Regiões Metropolitanas, onde explodem as principais demandas frustradas da população – sobressaindo-se o desemprego e a falta de segurança, a que se ajuntam carências referentes à infra-estrutura e a políticas sociais básicas – educação, saúde, moradia, transporte, lazer, cultura, esporte, preservação ambiental.

Hoje, no Brasil, há 15 grandes aglomerados urbanos, comportando cerca de 400 cidades de médio e grande porte. (O relativo desaceleramento do crescimento populacional nos grandes centros, que se verifica presentemente, produz certa redistribuição espacial da população, incluindo territórios interioranos, mas não altera a tendência à concentração da massa de deserdados nas periferias das suas cidades-pólo).

Esses aglomerados concentram pessoas e atividades econômicas em uma mesma área: cidades cujas malhas urbanas, interligadas fisicamente (conurbadas) ou não, realizam, entre si, intenso fluxo de bens e serviços e acentuada mobilidade de seus habitantes. Numa série de reportagens acerca desse fenômeno, o Jornal do Commercio, do Recife, cunhou a expressão “cidadão metropolitano” para caracterizar o indivíduo que reside em uma cidade, mas se desloca para trabalhar, freqüentar a escola ou fazer compras nas cidades circunvizinhas.

Força do poder local

Por outro lado, sob o impulso da globalização dos fluxos financeiros, produtivos, comerciais e tecnológicos e sob o estímulo da redução de custos de transporte e das facilidades de comunicação, as cidades são condicionadas a assumir a centralidade das ações nas mais diferentes esferas da vida social, envolvendo a sociedade civil, o Estado (nas suas diversas instâncias) e a iniciativa privada. Governos municipais, com a Constituição promulgada em 1988, assumem cada vez mais a iniciativa e a responsabilidade sobre problemas como transporte, infra-estrutura, saúde, educação básica, defesa ambiental e até segurança, segundo a proposta do atual governo federal de implantação do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP). Tais problemas, de natureza estrutural, compartilhados pelas cidades de uma mesma região, reclamam soluções que dependem, a um só tempo, de políticas públicas de âmbito federal e de encaminhamento intermunicipal, articulado sob forma consorciada, com a presença imprescindível do Estado e da União.

Essa emergência do poder local não nega, contudo, a afirmação de Milton Santos (A Cidade nos
Países Subdesenvolvidos. Civilização Brasileira, 1965) de que "a cidade não tem poder para forçar a evolução regional de que depende o seu próprio desenvolvimento. As possibilidades de evolução regional são criadas fora da região e da cidade, de acordo com os interesses do mundo industrial” (poderíamos acrescentar agora: e do mundo financeiro).

Isto nos remete a fatores condicionantes situados no modelo de desenvolvimento do País. Vale dizer, a transição da situação atual, ainda palmilhada por obstáculos de cunho neoliberal, a uma situação futura, que se deseja venha a ser calcada num padrão de desenvolvimento soberano, democrático e progressista. Pois se as conseqüências do modelo de desenvolvimento fazem-se sentir cruéis sobre a vida nas cidades, nelas também se situa o palco privilegiado da luta pela mudança de rumos no país – seja pelo conflito social que abrigam (formato contemporâneo daquilo que já apontavam Marx e Engels em meados do século XIX: a cidade como locus da reprodução do capital e da luta de classes na sociedade capitalista), seja pelo poder de pressão que pode ser exercido pela rede de prefeitos das capitais e das cidades de grande e médio porte.

Prefeitos majoritariamente progressistas, sintonizados com os propósitos do governo Lula, poderão cumprir importante papel, como interlocutores qualificados, na viabilização de um pacto nacional pelo desenvolvimento com a expansão do emprego e a valorização do trabalho.

Luciano Siqueira é vice-prefeito de Recife (PE) e candidato à reeleição junto com o prefeito João Paulo.

EDIÇÃO 74, AGO/SET, 2004, PÁGINAS 24, 25