Diante da folha rosa, Lucinda pesava as palavras. Deveria começar de forma a não denunciar de imediato suas intenções. Seria amena, apresentando-se como alguém que ele não conhecia, mas que, de alguma forma, lhe era muito próximo. Falaria da mãe? Ou faria suspense? Depois do primeiro parágrafo, apresentar-se-ia melhor: "Sou filha de Emerenciana. Emerenciana Régis de Almeida". Ou: "Sou filha de Emerenciana. Uma mulher contente, órfã de pai… Não, não fica bom".

      Enquanto escrevia no quarto, a mãe estava metida na faina de todo o dia: lavar, passar, cuidar do almoço, das galinhas e do porco. Ela, Lucinda, ficava com o resto da arrumação da casa: fazer as camas, varrer, tirar pó, ajeitar roupas nos baús, lavar louça e por aí vai. Leonardo trabalhava no comércio local e cuidava da mula, única coisa de valor que o pai deixara. Também era responsável pela pequena horta e a plantação de macaxeira no fundo do terreno.

      A casa tinha também uma mangueira de junto da cozinha. Em época de manga, Lucinda vivia ali trepada catando as espadas. Sentava ela mais a mãe, e as duas danavam a chupar a fruta – os dentes cheios de fiapos; o suco a escorrer pelos pulsos.

      Deu início a tudo. Ali, começava a girar a roda do mundo.Resolveu trabalhar em papel de pão uns rascunhos. Escrevia e logo emendava. Parava muito a refletir, sopesando cada vírgula,pensando nos múltiplos efeitos. E a coisa enroscava. Quando as frases pareciam engatar umas nas outras:

      – Lucinda!

      – Nhóra!

      – Chegue aqui, minha filha!

      E lá ia a menina acudir Emerenciana, mais que mãe, sua companheira, como costumava dizer às amigas. Muitas delas confessavam sua inveja:

      – Queria que a minha fosse assim, feito a tua.

      Lucinda enchia o rosto de carinho e sorria um riso mole e feliz.

      O dia foi-se lá pra trás das árvores e a noite se instalou mansa. Sapos coaxavam na Lagoa; comiam insetos. Apesar do inverno, ainda não chovera. Mas uma certa aragem se percebia.

      Lucinda resolveu dormir. Amanhã decidia por onde iria naquela empreitada. De sono fácil, logo agarrou a sonhar. Viu o pai,vestido de polícia. Todo mundo o chamava de Cabo Ulisses. Num átimo, ele estava na bodega, discutindo com tia Mariana. Ela dizia que o amava. Mãe Gulóra chorava sentada no balcão e bebia alguma coisa. De repente, não era mais seu pai, mas um policial qualquer. Aproximou-se dela, perguntou seu nome e eles já estavam na praça perto de uma jaqueira. Mas na praça não tem jaqueira. O soldado, a essa altura, já tinha virado em Tenório, que a abraçou pela cintura e pelejava pra lhe roubar um beijo. Acordou assustada.

      O vento fazia música na cumiêra. Lucinda se levantou e foi ao banheiro. "Sonho maluco", pensou. Ouviu o ressonar da mãe no quarto contíguo. Rememorou os olhos sempre rindo naquela tristeza que só ela, Lucinda, sabia.

      Ali sentada, decidiu que não mais se policiaria. Que as folhas de embrulho recebessem tudo: sua mágoa, suas lembranças, os olhos de sua mãe, as rugas da avó, a dolência e melancolia de Leonardo. Que subisse das ínferas paragens toda a bile das décadas de tia Mariana, toda a força e mármore de Tenório. Que a palavra, assim incandescente, fosse, ato contínuo, moldada.