– E aqui é por quilo, é?

      – O senhor pega essa bandeja aí, o prato, o talher e se serve.

      Argemiro ri por dentro. A moça tá é achando que ele não sabe se virar num restaurante como aquele.

      – Tá certo. Então eu vou acompanhando a moça pra ver como faz.

      Já à mesa, Glória dispara:

      – O senhor falava de Mariana.

      – Olhe, moça, eu não sei falar e comer, num sabe. Primeiro eu como. Você devia era de fazer a mesma coisa, se não esfria. A gente fala já.

      Glória tem ânsias de sacudir aquele baixote curvado sobre o prato. Argemiro sente um olhar fulminando sua moleira, mas não dá trela. Quando terminasse, falaria. Sabe que está fazendo raiva a ela. Até gosta disso. Mas o fato é que não dá mesmo conta de comer e falar. Quando trabalhava em obras era assim: o povo todo a tagarelar e ele debruçado sobre a marmita, tome que tome. Depois de saciado era que ia puxar prosa.

      Terminado o prato, pensa em engatar a sobremesa. Mas aí ia ser abuso. A menina ia acabar se agastando com ele. Bebe o resto de suco, toma de um guardanapo, limpa-se. Enquanto tenta tirar um palito do paliteiro, recomeça:

      – Gulóra e o Cabo passaram a namorar em casa, debaixo das vista de Mané Tenóri. Os passeio era tudo acompanhado de tias e primos. Mariana ia também. Por essa época as duas foram se afastando. Mariana sofria, tadinha. Aquele viço dinhantes, aquele jeito de chegar na classe e dizer bom dia, tudo ia ficando assim sem alegria. Diz teve um dia que o cabo chegou na casa da namorada e só encontrou lá dona Vivinha e a mais nova. A velha tava ocupada picando fumo sentada lá no oitão. Gostava dali porque, dizia, corria uma fresca. O Cabo deu os boas tardes e foi se acomodar na sala. Mariana chegou, toda simples e perguntou "Quer alguma coisa, Jorge? Um suco?". O Cabo deu aquele riso quebrado dele e disse "Serve você". Mariana ficou roxa, de vergonha e indignação. "Olhe, Jorge, não lhe dou essas ousadias, visse". E saiu pisando duro. Não contou nada à irmã. Não contou nada a ninguém. E toda a vez que Cabo Jorge ia visitar Gulóra, lançava uns óio cumprido pra Mariana. Aproveitava umas deixa e lhe dizia gracejo. Aí veio a festa de noivado. Em Saco das Vara todo mundo já comentava os chamegos de Gulóra com o Cabo. As beata falavam mal da moça: "Aposto que já andou, essa uma. Olha os óio. Olha como mexe as cadeira". E, de fato, Gulóra tinha se entregado ao Cabo. Não sei como foi, nem onde. Sei que tava tudo certo pro noivado, aliança comprada e tudo. O rala bucho ia ser na casa de Manduca,
tio de Gulóra, por ser lá mais largo, com um terreiro bem maior que o de Mané Tenóri. Tudo certo, tudo andando. O sanfoneiro já ia na décima música. Na mesa, de junto da mãe, tava Gulóra. Nada de Cabo. Nada de Mariana. Sei que dali um pouco chega Mestre Juliano, padrinho da mais nova. Encosta no pai da moça e lhe diz assim, todo sério, duro: "O compadre precisa de vir comigo". Gulóra quis saber o que se passava. Sua mãe foi logo ficando aflita. Acabou que todo mundo foi pra casa de seu Tenóri e lá viram foi Mariana toda machucada, vestido roto, olhos de pavor, agarrada à madrinha, dona Imaculada. Foi ver o pai, abriu o berreiro. Coisa pavorosa de ver, moça: a menina parecia que tava vendo o Cão: esbugalhava os óio, gritava "perdão, perdão pai" e fazia de um tudo pra se esconder do velho. "Quem fez isso, compadre?", perguntou Mané Tenóri, mão apertando o rebenque. Mestre Juliano mostrou um trapo que tinha arrancado das mãos de Mariana. Era um pedaço de farda. Eu, que já tinha manjado tudo, corri pra pensão onde o Cabo morava. "Chegou aqui correndo, com a farda rasgada, dizendo que tava atrasado", me disse Noquinha, dona do lugar. "Vai pra onde com esse saco, menino?! E vai assim rasgado pro noivado?, perguntei a ele". "E ele foi por onde, dona Noquinha?", quis saber eu. "Por aí, no caminho do Matadôro". Corri feito o cabrunco. Dei uma volta pelo Carrapicho pra sair por trás da Gameleira, que dava em cima do Matadôro. Me escanchei numa árvre e esperei. Dali vi o Cabo se embrenhar nos mato. Desci e fui no rasto. Quando chegou na Panela, eu perdi ele. Voltei por onde vim e corri avisar todo mundo. Foi um atropelo danado: uma ruma de gente se armando pra buscar o sujeito. Quando dei os detalhe a seu Tenório, uma nuvem desceu no rosto do velho. Gulóra, neste instante, voltava da delegacia: foi conferir um a um os praça. Quando soube da confirmação de que era o Cabo quem tinha desgraçado Mariana, sentou apalermada. Nem parecia ela. Aliás, nunca mais foi a mesma Gulóra.