A carta – capítulo 34
Abordado por dois investigadores da Civil, Argemiro não atina no que se passa. Só depois do primeiro aperto, o cano lhe magoando os rins, se apavora, dispara uma profusão de "qué isso" e "o qué queu fiz" e entra, algemado e aos protestos, no camburão. Os policiais rodam com ele um par de horas. Recolhem aqui e ali marginais e os despejam na delegacia. Vão de carona na viagem de Argemiro. Todos mudos, olham-se no escuro da viatura.
Enquanto encara o rosto suado de um jovem negro, olhos chamejantes, o sergipano matuta. De passo em passo, chega a Cabo Jorge e Glória. Mas algo não encaixa. Ela não é mulher de mandar recado. E o Cabo… estava estirado na cama… Mas já despertou. Podia ter recebido visita de um amigo da polícia. A filha pode ter lhe contado da conversa e… Não, não contaria. Ela não gosta do velho. Mas pode ter contato à irmã… Um amigo… um amigo…
– Filha da puta!
Os parceiros de infortúnio tomam um susto. Um deles indaga:
– Que foi, tio? Quem é filho de puta aqui?
– Aqui, ninguém! – emendou Argemiro, furibundo – Mas em Santa Cecília, um cabra safado de um mecânico, filho de uma quenga rampêra, é! Ah!, mas deix'stá! Deix'stá, que a tua batata tá assando, cururu! Hm!
Descarregados os dois últimos "passageiros", Argemiro ainda roda uns minutos. O carro pára. A porta traseira é aberta e o sol das três invade a gaiola. Estão num descampado – uma orla de arbustos delimitando a cabeceira do terreno. Pássaros chilram ocultos. Insetos esvoaçam sobre o lixo espalhado.
Argemiro sente um frio na espinha, mas já tem tudo arranjado. Se puder falar, safa-se. Mas, e se nem quiserem conversa?
– Sabe por que tá aqui, amigo? – pergunta um sujeito magro, após acender um cigarro.
– Por causa de Cabo Jorge – responde Argemiro, suor escorrendo pelas costas, mas semblante seguro.
Os policiais entreolham-se. Esse, pelo jeito, vai piar rapidinho. Pena.
– E o que você quer com o velho?
– Ele estuprou uma amiga e matou um meu parente lá em Sergipe. Vim pra tomar satisfação com o cujo, mas Deus chegou inhantes. Tô vingado e em paz.
– Mas o homem não morreu.
– E nem era pra morrer. Era pra ficar assim mesmo, se acabando devagar.
– E como é que você ia fazer isso?
– Eu não ia fazer é nada. Ia me apresentar, contar toda a história pra famia dele, como contei, e ia deixar que ele se espatifasse sozinho.
– O cara aí é poderoso – ironizou o mesmo do cigarro.
Súbito, num lance brusco, agarrou, com uma das mãos, as bochechas de Argemiro:
– Escuta, ô gordo, tá me achando com cara de otário, de mané?! Vai me dizer que você ronda o velho só pra se exibir?! É bom ir cantando rapidinho, que minha paciência é curta! E a dos "meninos" também…
Livre do torniquete, Argemiro encosta-se no Camburão. Recompõe-se. Calmo e cadenciado, toca a desfiar toda a história desde o princípio. Mal inicia a introdução, rumores de impaciência surgem. Conforme desenrola o novelo, a audiência vai se aproximando. Ao cabo do relato, metade do sol imersa no horizonte, os policiais deschaveiam as algemas e o largam lá, só, no meio do nada.