Não era chuva: tava mais para cascata. Na avenida, corria um rio. Das ladeiras, afluentes vinham engrossá-lo. Janelas lacradas por vridros, crianças assistiam dos apartamentos os espetáculo da tempestade. Debaixo das marquises, transeuntes e mendigos se apertavam contra as portas de aço cerradas. Meninos de rua, sentados no asfalto, fendiam a correnteza aqui e ali.

      Ulisses, ilhado num bar, cerveja no copo, fumava. Tudo acertado, e essa chuva pra atrapalhar. Paciência. Uma hora, ela se ia. O diacho era a hora. E nem podia bater um telefone. Era mesmo o cabrunco.

      Pensava em Ciana. Precisava fazer aquilo por ela e pelos meninos. Sua ausência precisava ter valido alguma coisa. Porque, de suas aventuras e desventuras, o que era mesmo que trazia pra ela? Ele conhecera mundo, deitara-se com deusas e bruxas, enfrentara a goela do garimpo, as minas de sal, pedreiras. Disputara com abutres, até, em lixões. Agora era hora de vergar o arco da vida e acertar as contas com ela. Precisava acertar. E agora essa chuva, esse temporal, esse maremoto na avenida. O que tinha deus contra ele? Por que baralhava assim seu destino?

      A noite ia fechando na medida que a chuva apertava. Entra correndo no bar um travesti, seda do vestido empapada, maquiagem em desmanche:

      – Cruzes! Qué isso, minha nossa senhora?! Olha só pra isso! Tô toda arregaçada!

      Sacudiu a cabeleira, enquanto rebolava o quadril volumoso. As gotas bateram na cara de Ulisses e respingaram em sua cerveja. Ele se encolheu instintivamente e olhou contrariado para a bicha. Essa, por um instante, parou de se chacoalhar, ergueu a cabeça e deu com ele. Sorriu. Voltou a sacudir a cabeça e molhar os circundantes.

      Ulisses amassou o cigarro no cinzeiro cedido pelo balconista. Engoliu o resto da cerveja, levantou-se e se postou diante da moça. Ela levantou o busto siliconado. Vendo aquele homem ali, encarando, falou, inocente e simpática:

      – Oi.

      – Dá pra… "senhorita"… pará? – intimou Ulisses.

      – O que, meu bem?

      – De molhar os outros.

      – Ah, não tá vendo que tô toda encharcada.

      – Pois então vá desencharcar em outro lugar.

      – Onde, querido, se aqui a gente não pisca sem esbarrar em alguém?

      – Na puta que pariu, por exemplo.

      – Olha, bofe, se tem alguém aqui parido de puta, não sou euzinha, tá?

      – E quem seria, pode vosmicê informar.

      – Posso, posso sim querido: vo-ce-zinho.

      O soco saiu repentino, feito raio. O travesti dá com os costados na parede, mas não tomba. Rapidamente se recompõe e cai dentro: desfere um soco que pega Ulisses no estômago e o levanta do chão. Dobrado, toma uma outra porrada nas costas e beija o chão sujo do boteco. Daí em diante, vira bola: toma chute bico fino na cara, nos rins, nas costelas. Uns sujeitos tentam resgatá-lo da sova, mas a bicha já tinha aberto uma navalha – e sabia usar: agachou-se, desfigurada, e talhou nas costas de Ulisses um jogo da velha, rubro, perfeito. Ergueu-se em triunfo, encarou os presentes, e saiu para a chuva.

      A ambulância chegou quase um par de horas depois. No pronto-socorro, foi deixado numa maca, no corredor. Um residente, que já passara por ali inúmeras vezes, percebe que ele não geme mais. Aproxima-se, toma-lhe o pulso, ausculta o coração. Outro residente se achega:

      – E aí?

      – Ele tava muito machucado. Acho que foi hemorragia interna.