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    Comunicação

    A carta – capítulo 40

          Quando seu Jorge desperta, a escuridão ainda persiste. Aos poucos, sombras difusas vão se formando e sons lhe chegam nítidos. Manchas passeavam pelo ambiente, falavam entre si. Uma voz desconhecida declarou, num arremedo de euforia:       – Finalmente! Pensei que não acordava mais. Olha, Maria, nosso belo adormecido despertou.       – Como vai, seu […]

    POR: Redação

    4 min de leitura

          Quando seu Jorge desperta, a escuridão ainda persiste. Aos poucos, sombras difusas vão se formando e sons lhe chegam nítidos. Manchas passeavam pelo ambiente, falavam entre si. Uma voz desconhecida declarou, num arremedo de euforia:

          – Finalmente! Pensei que não acordava mais. Olha, Maria, nosso belo adormecido despertou.

          – Como vai, seu Jorge? Como se sente? – inquire a que ele supõe ser a tal Maria.

          – Onde eu tô, dona? Quem é a senhora? – devolve o antigo cabo de polícia.

          – Na Santa Casa. Eu sou Maria. Essa é Lucinete.

          – Eu não vejo ninguém. Só mancha.

          Maria e Lucinete se olham. A primeira sai. Lucinete volta-se para o paciente e passeia a mão diante de seus olhos:

          – O que o senhor tá vendo, seu Jorge?

          O velho retrai-se, como se um pássaro voejasse baixo em torno:

          – Qué isso, dona?

          – Estou mexendo minha mão.

          – Parece mais um trapo. (…) Quêde minhas filhas? E Inácia, quedê?

          – Fique tranqüilo. O médico vem conversar com o senhor…

          – Elas foram embora, não é? Me largaram, não foi? Diga; pode dizer.

          – Sua esposa teve alta semana passada. Ela e sua filhas… bem… tem uma semana que não retornam as ligações do hospital. O senhor foi encontrado inconsciente por uma enfermeira tem uns quatro dias. Pensamos em coma. Os médicos ainda analisam o seu caso. Foi bom o senhor ter acordado.

          – E o moço?

          – Que moço?

          – Teve um moço aqui. Chama Tenório. É meu filho.

          – O senhor tem um filho? Onde ele mora?

          – Filho meu mais Gulóra… Minto: mais Mariana. Minto ainda: meu filho só meu, nascido não sei de quem, vindo não sei daonde.

          Cala-se por um instante. Súbito, retoma:

          – Devia de chamar Moacir. A senhora leu Iracema? Eu li. Li muita coisa. Mas não sei de nada. Olhe, não sei o que me deu. Ou iantes sei: sei que ela me sorria. Uns dentes pequenos tinha ela. Carne morena… carnes de Gulóra, essas. A dela era dum queimado. Era pequena, eu sei. Chorava muito; pedia pela virgem. Rasgou minha farda, gritou pela mãe, pela irmã. Tive raiva, tive gana; bati nela, torei seu vestido. Moça virgem é boa, num sabe? Elas diz que não querem, mas, no fundo, são doida por um macho. E macho eu era; e macho eu fui, e sou! Que Cabo Jorge quando põe um olho numa moça, seja quenga, seja santa, ela é dele. E ela não queria, coitada. Trancou o chibiu, aí é que ficou melhor: meti foi rasgando. Eita, que foi uma gritaria. Aí é que eu gozava mais. Perdia ali as duas. Perdia Gulóra e o sossego. Perdia Inácia e Mariana. Glória, faz tempo que perdi. Perdi o juízo. Não teve jeito: tive que matar. O cabra veio no meu encalço, eu ia fazer o quê? Dançar com ele? Matei. Chegou na bodega e disse "te achei cabra". Voou cadeira , dona. No fim, ele ficou no chão, estrebuchando. Rasguei-lhe os intestino de baixo pra cima. Caí no mundo, na desgraça. Caí, dona, caí.

          A última frase foi dita já diante do médico e da enfermeira Maria. Lá fora, buzinas trombeteavam que a tarde caminhava pro fim.