O professor doutor Carlos Lessa, presidente do BNDES, fala a Princípios sobre o debate suscitado em torno da integração da América do Sul, do legado de Vargas e dos desafios a superar para que o país implemente um novo modelo de desenvolvimento

Fala-se hoje na integração sul-americana, na retomada das idéias bolivarianas e parece ter chegado a hora da Frente Ampla nas eleições do Uruguai. Há uma rebelião social e política no continente, sobre os escombros do desastre neoliberal. O senhor notou recentemente a formação de um “eixo” entre Caracas, Brasília e Buenos Aires. O professor Lessa está otimista?

Carlos Lessa – O tema da integração sul-americana saiu do espaço dos seminários, discussões de especialistas em comércio e mesmo de estadistas sul-americanos, e parece estar se convertendo numa diretiva política prática para muitos governos da América do Sul. Atribuo essa entrada da integração na ordem do dia a três dimensões. É óbvio o fracasso do neoliberalismo em criar um destino para os povos da América do Sul. Não é nada diferente do que acontece com a África Sub-saariana. São continentes que foram sendo jogados fora das grandes correntes do mundo globalizado. São parceiros cada vez de menor importância.
Isso, dialeticamente, abre para nós a idéia de buscar soluções conjuntas. Então, eu diria que o primeiro elemento que alavanca o empenho da integração no momento é o fato de que a América do Sul vai perdendo importância no concerto mundial. Perde por muitas razões, mas a principal delas é que não temos petróleo para agüentar o tranco da economia norte-americana. A economia norte-americana consome 32-33% do petróleo no mundo. Todas as Américas – Norte, Central e Sul, o Caribe – não chegam a ter 18% do petróleo no mundo. Portanto, isso exige que o império norte-americano tenha o seu epicentro geopolítico lançado cada vez mais para a Ásia Central e cada vez mais para o Oriente Médio, onde há um espaço de competição crescente entre essa expansão e a China, o crescimento e a vulnerabilidade da Europa e a própria vulnerabilidade americana. Então, há uma geopolítica mundial cuja orientação principal estratégica é cada vez mais referenciada ao hemisfério Norte.
Por outro lado, o comércio intrafirmas e as trocas no mundo das rápidas inovações tecnológicas articulam de forma cada vez mais dinâmica os países do centro do mundo e a periferia é relegada a um segundo plano. Então, tudo isso leva a que a construção de uma união geopolítica na América do Sul entre na ordem do dia.
E, finalmente, tem a presença de dirigentes que têm sensibilidade, a exemplo do presidente Lula, que percebeu com muita rapidez a importância desse movimento geopolítico em direção à América do Sul. Nós do BNDES fomos acionados desde o primeiro momento e temos nos movido para levar adiante algumas operações que vão consolidando no plano prático essas relações. Ao mesmo tempo tem havido um desdobramento da diplomacia brasileira para reduzir temores nos países irmãos do continente quanto a pretensões de hegemonia por parte do Brasil.
A Argentina por sua vez pôs em prática da maneira mais disciplinada todas as recomendações do neoliberalismo. Quando o modelo fracassou, os argentinos não tiveram apoio nenhum no momento de dificuldade. Proporcionalmente o Brasil deu mais apoio do que os países ricos. Por isso os argentinos são hoje extremamente sensíveis à idéia da integração sul-americana. E, ao mesmo tempo, acho que estão se desarmando em relação a tensões que pudessem ter havido com o Brasil. Por isso está em formação um eixo Caracas-Brasília-Buenos Aires.

Então o senhor está otimista com essa nova situação?

Carlos Lessa – Sou sempre um otimista, porém não sou ligeiro nas observações. Acho que a tendência é muito clara desse eixo ir se consolidando. Acredito que a reconfirmação do presidente Chávez da Venezuela é um ingrediente muito importante. A ele coube resgatar a figura de Bolívar, muito pouco conhecido no Brasil, e que teve a intuição da necessidade de nossa integração.
Com o presidente Chávez reconfirmado e a disposição dos argentinos de levar para frente articulações, tenho a impressão de que isso está evoluindo muito bem. Num espaço modesto, o BNDES, do ponto de vista institucional, é um instrumento importante desse processo. Mas quando começamos a atuar, dando resposta ao presidente Lula, em articulações com Argentina, Venezuela, Peru, Bolívia, Paraguai, houve quem, neste país, dissesse que estávamos fazendo algo que iria contra as prioridades nacionais. Na verdade, nós reforçamos as prioridades nacionais à medida que avançamos nessa união sul-americana.
Primeiro porque fisicamente nossos países estão ainda muito afastados. Quer dizer, a ligação Atlântico-Pacífico por terra não está ainda garantida. Esse é um projeto que ainda estamos discutindo com Argentina. Vamos dar solidez às articulações entre os dois oceanos por dentro do continente, e isso vai ter um efeito sinérgico espetacular nas economias sul-americanas.
Segundo, do ponto de vista mercadológico o poder de compra dos povos sul-americanos é mais ou menos o poder de compra do Brasil. Então, isso significa que a união sul-americana dobra o mercado à disposição de empresas brasileiras, mas também mais que dobra o mercado à disposição de qualquer empresa localizada em outro país. Então, é previsível que haja uma forte alimentação de articulações econômicas entre empresários destes países. Quando eu digo empresário também estou falando das universidades, dos sindicatos, das populações.
E, em terceiro lugar, o BNDES está fazendo uma coisa do nosso mandato, que é apoiar as exportações. Porque não financiamos investimentos em outro país realizados por terceiros. O que fazemos é apoiar empresas brasileiras a aumentar suas exportações, ou exercitar operações conjuntas com países irmãos. Portanto, estamos robustecendo a articulação entre as nossas economias. Já temos operações efetivas importantes com Equador, Venezuela e República Dominicana. Estamos muito próximos de começar a assinar projetos com Bolívia, Paraguai e Peru, e de projetos comuns com a Argentina. Também pensamos em fazer um projeto que articula Argentina e Chile.

Como o senhor poderia fazer uma correlação entre a construção de Vargas e os desafios de um novo modelo?

Carlos Lessa – O longo período de Vargas é quando o Brasil avança no processo de modernização. Há uma pauta de questões que a era Vargas colocou para a vida brasileira. Então, discutir Vargas é projetar essa discussão para os tempos atuais, não para copiar, mas para mostrar que o cenário histórico exige um projeto nacional articulador e fundador. É sintomático que Fernando Henrique Cardoso tenha marcado sua posição como presidente propondo eliminar a era Vargas. Ele foi absolutamente consistente com a sua visão demiúrgica de uma dissolução do Brasil na globalidade, que era para ele o paraíso. Porque a preocupação em desmontar, objetivamente, instituições que vieram da era Vargas e, ao mesmo tempo, desqualificar a idéia de projeto nacional, são duas operações do ponto de vista ideológico e operacional fundamentais para que o Brasil dissolvesse sua identidade na entropia de uma globalização, que era o seu sonho.
Mas o Brasil é muito maior do que esse sonho – na verdade, pesadelo. Apesar da demolição de muitas construções da era Vargas, subsistiu, ou se renovou, uma série de dimensões da mesma época. O movimento sindical, por exemplo, foi em grande parte formatado institucionalmente na era Vargas, mas a partir dessa formatação foi ganhando musculatura, maturidade e desempenho, que se expressam na própria organização política brasileira de hoje.

O que poderia ser simbolizado, digamos, na eleição do próprio presidente Lula…

Carlos Lessa – O próprio Lula é, simbolicamente, uma expressão da imanação de um movimento que teve o autopatrocínio de Vargas. Se bem que muitas das instituições desenhadas naquele momento precisam hoje ser modernizadas, adequadas etc.
O grande débito da era Vargas foi o democrático. Na verdade, a própria experiência democrática brasileira projetada até aquele momento era insignificante. Quando a idéia da modernização, a idéia da irrupção dos tenentes, a idéia dos novos atores sociais pós-I Guerra Mundial vão se apresentando para rejeitar a configuração oligárquica – ou a ausência de um projeto nacional – nenhum deles é porta-voz de uma proposta consistente de organização democrática. Isso pode aparecer num ou noutro intelectual, num ou noutro articulista do período, mas não é proposta central de nenhum ator político. Não se encontra isso nas manifestações do empresariado do período. O que eles pensavam era a imensa necessidade de construir um pacto, ou romper estruturas, para superar uma situação que impedia o Brasil de caminhar para a modernidade, que era inibidora do desenvolvimento. Sem dúvida nenhuma falta o elemento democrático.

Mesmo assim o senhor não acha que a Constituição de 1934 avança mais no sentido da democracia, diferente do golpe de 1937?

Carlos Lessa – São momentos distintos. Tampouco 1934 representou uma proposta para ser operacionalizada.
Hoje estamos fazendo a demonstração do aperfeiçoamento democrático, e aparecem episódios importantíssimos, como a supressão de Collor sem nenhuma perturbação institucional. Fizemos uma Constituição presidencial com ares parlamentaristas. Há nela problemas, inclusive de operacionalização. Acho que os últimos vinte anos, ao contrário do batismo dado por certas pessoas de décadas perdidas – ponto de vista do desenvolvimento econômico, em parte do ponto de vista do desenvolvimento social -, apresentam avanços do ponto de vista do desenvolvimento político.
Agora, em nome desse plano se pretendeu “jogar a água da bacia fora com a criança dentro”, com a criança sendo a idéia do projeto nacional, a identidade nacional, a idéia de que o Brasil precisa robustecer suas forças produtivas, porque não há como fazê-lo sem o Estado. É impossível fazê-lo sem o Estado. A idéia da inclusão social, que hoje não é mais uma categoria resultado, como sonhavam os modernizadores dos anos 1930, dos anos 1940, dos anos 1950. Agora, inclusão social é uma diretiva estratégica para o próprio fortalecimento da democracia.
A idéia de que, sendo Vargas pouco democrático se devem jogar fora todas essas bandeiras por ele desfraldadas e, em muitos casos, poderosamente, em nível da história, alavancadas, é um absurdo. Há aqui uma astúcia perversa. Se nós remontarmos os ponteiros da história e voltarmos aos anos 30, explicamos muito do que aconteceu. Como também conseguimos explicar muito do que aconteceu na entrada dos anos 1950 por cenários internacionais muito angustiantes. Quando Vargas assume, o mundo tinha assistido ao Japão invadir a China, a Itália querendo destruir a Etiópia, a Alemanha engolindo a Tchecoslováquia e a Áustria; um mundo em que velhas civilizações estavam sendo absolutamente esquartejadas. Nesse cenário a idéia de interesse nacional e de robustecimento da nação é condição sine qua non para a sobrevivência.
Então, isso está na cabeça dos tenentes e de Vargas, que achavam, corretamente, que as oligarquias anteriores não tinham essa preocupação. Tanto que os tenentes ficavam preocupadíssimos com o equipamento militar brasileiro. A idéia da siderurgia como fundamental é de um general, o Macedo Soares, que vai ser o primeiro homem a interpretar a siderurgia – matéria estratégica do governo Vargas – porque sem aço uma civilização não se defende. A mesma idéia estava por trás do petróleo. Preocupava muito naquele momento que na guerra promovida pelas petroleiras entre o Paraguai e a Bolívia o exército brasileiro não pudesse conseguir garantir suas fronteiras. Quer dizer, é muita visão estratégica num cenário mundial que colocava sob risco a nação.
A mesma preocupação aparece depois da II Guerra. Há um momento de euforia, mas rapidamente começa a aparecer o clima da guerra fria que, com a guerra da Coréia, passou a ser o anúncio da terceira guerra mundial. De novo o problema era que o Brasil entraria para tal guerra com a infra-estrutura antiquada, ferrovias velhas, sem energia elétrica suficiente, sem portos adequados. Era preciso dar prioridade absoluta à infra-estrutura. O que o Vargas fez? Reforça fantasticamente as construções de estradas em cima da idéia de que sem caminhão, estrada e combustível não há industrialização moderna. A eletrificação, para suprir o país de energia. Superar aquela maldição “Rio, cidade que nos seduz, de dia falta água e de noite falta luz”, que era o Brasil daquele tempo. Vargas prioriza a organização de portos, em que a infra-estrutura estava destruída era de antes de 1930. Não houvera muito avanço em matéria de infra-estrutura da década de 30 nem nos anos 40 e havia esperança de que o Brasil, tendo participado do esforço dos aliados, teria um plano Marshal… O BNDES surgiu por sugestão da comissão mista Brasil-Estados Unidos para ser o banco da infra-estrutura. É uma criação de Vargas. A mesma preocupação que levou a dar importância ao controle do ciclo nuclear e que leva ao fortalecimento das instituições de pesquisas de física.
A geração Vargas é nacionalista, que queria um país industrializado e moderno, mas queria um país cuja nação fosse preservada. Por quê? Porque sem nação não seria possível robustecer o povo nacional. Por outro lado, o povo nacional seria o grande construtor da nação. É um jogo interativo.

O senhor foi pioneiro, em meados dos anos 90, em recolocar o debate sobre a importância da auto-estima brasileira para enfrentar os nossos grandes dilemas…

Carlos Lessa – Aí vou me permitir fazer um paralelismo entre Vargas e Lula. Eu tenho andado num estado de muita alegria com uma campanha que o ministro Gushiken vem implementando a partir de uma orientação firme do presidente da República, a campanha que pega como mote a expressão do Câmara Cascudo “o melhor do Brasil é o brasileiro”. Essa, para mim, é uma síntese genial, porque o maior ativo que o Brasil tem é o nosso povo. Gosto de falar de povo brasileiro. E de povo nacional.
O capitalismo foi inventando variadíssimos acordos sociais que não caem dentro da polaridade capital-trabalho. Na verdade, o capitalismo reinventa o artesão, reinventa setores médios continuamente. Sempre penso que o mundo do automóvel explica a grande empresa multinacional do setor e explica o operariado metalúrgico. Mas há todo um neoartesanato gigantesco, que surge em torno do automóvel e do caminhão. Há também o autônomo, que é ao mesmo tempo dono do seu instrumento de trabalho, e há o flanelinha, que é uma figura espantosa. É um sujeito que cobra pedágio num espaço que não é dele. Então, isso é uma coisa medieval, muito parecida com aquele que cobra pedágio para se atravessar uma ponte.
Mas o que eu quero dizer é que, primeiro, o capitalismo cria uma variedade espantosa de classe sobre classe e nenhuma delas passa a ser depositada na história, são reinventadas continuamente. Segundo, o conceito de povo é um conceito que estabelece um princípio de cooperação; todos em relação à nação. No sentido de que a nação é o espaço para todos. Como estou convencido de que é muito importante a idéia de nação hoje, porque a questão social é nacional, o mundo não tem nenhuma estrutura de solidariedade para resolver os problemas sociais. Basta ver como está a progressão da Aids na África Sub-saariana. E a consciência mundial se mobiliza em torno disso? Como no caso da Argentina. A geopolítica mundial não toma conhecimento desse problema. As instituições das nações unidas estão sendo esvaziadas.
Se o mundo da globalização tivesse permitido a mão-de-obra ir para o mercado de trabalho, se o mercado de trabalho fosse mundializado e se a população pudesse se deslocar para onde tem oportunidade de sobreviver, eu diria que a nação estaria superada. Mas, não é assim, porque não se vai para a Europa, não se vai para os Estados Unidos. Há barreiras para movimentação e exportação e mão-de-obra. Portanto, a questão social é nacional. O desenvolvimento nacional é fundamental para todo o povo. E por isso a idéia de povo é fundamental, porque é a idéia da cooperação, de todos juntos em torno da nação. Nação e povo são duas categorias das quais não posso abrir-mão.
Essa idéia do povo nacional é fundamental. Acho que o presidente Lula tem alguma coisa de gênio. Ele pegou isso integralmente. E o entusiasmo dele com a campanha “o melhor do Brasil é o brasileiro” é exatamente a idéia de levar a auto-estima, porque é uma condição sine qua non para se poder fazer um projeto nacional levantar a auto-estima. Aí novamente Getúlio nos ajuda muito, porque Getúlio foi uma alma de gigante. Costumo dizer que se Getúlio tivesse alma de Fernando Henrique Cardoso ele não criaria a Petrobrás e se Juscelino tivesse alma de FHC nós não tínhamos Brasília.
Os modernistas fizeram uma coisa muito bonita, eles descobriram o povo brasileiro. Sabe por quê? A inteligência brasileira olhava a Europa e até se envergonhava um pouco do jeitão local. Tanto que a elite brasileira colocava casimira e casaco de pele para ir ao Teatro Municipal a 40 graus em pleno verão; importou-se até pardal para o Rio de Janeiro ficar com aspecto de Paris. Para você ter uma idéia do que foi a francofilia.
E então os intelectuais europeus começam a fazer a crítica da civilização européia, vem a revolução soviética etc. O que é que os intelectuais brasileiros tiraram disso? Que não estamos mais prisioneiros da matriz européia. O que o pessoal nosso diz? Não precisa ir a lugar nenhum, basta olhar o povo. Aí ocorre a descoberta do Brasil pelos intelectuais, e até do povo.É o Brasil brasileiro, o que o Getúlio pede para a Aquarela do Brasil, do Ari Barroso.
Para mim, a era Vargas – que Fernando Henrique quis retirá-la do imaginário brasileiro, mas não pôde – está se repondo por inteiro. Ela se repõe na medida em que o presidente Lula percebe a importância da identidade, da auto-estima. Ela se repõe quando se formula como projeto comunitário a revitalização e a transposição de águas do São Francisco – o projeto equivalente à Brasília desta geração. Acho que se repõe quando se volta a falar de política industrial, quando se volta a falar de desenvolvimento. Ela está sendo reposta pela constatação de que o país tem de robustecer a geração de energia, reforçar a logística. Ela se coloca pela própria geopolítica nossa, que está propondo aos parceiros uma unidade pela prosperidade sul-americana, não para trocas comerciais.
Para mim, estão colocados todos os ingredientes para nós nos reorientarmos nessa direção. Aí tem questões que passam pelo financiamento; tem questões que passam pela tecnologia, tem questões que passam pela produção científica, tem questões que passam pelo robustecimento do sistema de ensino. Quer dizer, temos todo um painel de questões.
Agora, diga-se de passagem, é curioso que em muitas dessas questões Vargas é também pioneiro.

A. Sérgio Barroso é mestre em economia pela Unicamp e Ana Rocha é jornalista.

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 58, 59, 60, 61, 62, 63