A impostura liberal
Não obstante mesmo alguns dos mais considerados teóricos liberais, nomeadamente o ítalo-americano Giovanni Sartori, terem reconhecido as profundas diferenças históricas entre democracia e liberalismo e, conseqüentemente, o caráter problemático de suas relações, a idéia de que os Estados Unidos são por excelência o país da democracia, sistematicamente disseminada, ao longo de muitas décadas, pelos cérebros de aluguel do cartel midiático imperialista e pelos cães de guarda a seu serviço, adquiriu e conservou a solidez de uma evidência do senso-comum. Pretendemos oferecer subsídios para compreender por que tão grande mistificação tem mostrado tão persistente eficácia.
Enfatizando, desde logo, que seria preciso extrema simplicidade de espírito para supor que o “valor universal” assumido pela fusão do liberalismo com a democracia resulte de um projeto friamente meditado em algum gabinete da Casa Branca, notamos primeiramente que a palavra democracia não é mencionada nem na Declaração de Independência norte-americana, de 4 de julho de 1776, nem na declaração dos direitos do homem que a acompanha, nem na Constituição dos Estados Unidos, de 17 de setembro de 1787, e nem mesmo na “Gettysburg Address” de 19 de novembro de 1863, em que o presidente Abraham Lincoln, no auge da guerra da secessão, homenageou os combatentes do Norte abolicionista que ali tinham caído. Os termos-chave dessa concisamente eloqüente alocução são liberty, freedom, people e o princípio segundo o qual all men are created equal. Ela se encerra com a célebre exortação para que “o governo do povo, pelo povo, para o povo nunca desapareça da face da terra”. Não se pode duvidar da inspiração democrática (embora falte a palavra) de um homem como Lincoln, mas mesmo naquela época, em que o poder político nos Estados Unidos não tinha se encouraçado numa monstruosa máquina bélica e burocrática, era preciso uma noção muito elástica de “povo” para sustentar que o governo era dele, exercido por ele e para ele. Cabe, entretanto, reconhecer, no plano dos princípios, que a supressão da escravidão ultrapassou a hipocrisia dos “Pais Fundadores”. Eles também tinham proclamado, um século antes, que todos os homens foram criados iguais, mas, por serem ricos fazendeiros donos de muitos escravos, excluíam seu plantel humano do campo de aplicação desta “verdade evidente em si mesma (self-evident)”.
Segundo um dos mais respeitados dicionários de inglês dos Estados Unidos, “ser adepto da forma democrática ou republicana de governo” é apenas o sexto significado do termo liberal; sempre segundo o mesmo dicionário, por liberalism devemos entender a “filosofia política que preconiza liberdade (freedom) pessoal para o indivíduo, formas democráticas, reforma gradual das instituições políticas e sociais etc.” (1).
Já nas línguas neolatinas, herdeiras diretas dos termos líber e libertas, são chamados liberais os adeptos de doutrinas e partidos que priorizam as liberdades individuais, notadamente as econômicas e democratas os que defendem a soberania do povo. Quanto ao fundo, a soberania popular, princípio supremo da democracia, não é incompatível com a supremacia da propriedade privada e da liberdade individual, valores supremos do liberalismo. Mas os dois princípios podem, e costumam, tornar-se contraditórios em situações de crise revolucionária. As idiossincrasias lingüísticas refletem as peculiaridades da cultura de um povo: é sintomático que a ocultação da diferença entre aquelas duas categorias políticas esteja enraizada na própria linguagem corrente do “sonho americano”. A correspondente fusão das duas ideologias repousa, pois, numa confusão conceitual: a anexação do termo democracia e, conseqüentemente, de seu prestígio histórico, pela doutrina liberal.
Quando democracia se tornou, ao longo do século XX, a principal palavra-chave do vocabulário político estadunidense, seu significado, castrado de todo conteúdo revolucionário passara a designar a concepção da ordem política própria ao liberalismo. Tal foi, esquematicamente, o roteiro de uma das mais bem sucedidas mistificações de nossa época: o amálgama entre liberalismo e democracia reduziu as idéias, instituições e valores democráticos aos liberais, de modo a erigir a chamada democracia liberal, entendamos, a absorção da democracia pelo liberalismo burguês, em “pensamento único” imperial. Vale notar, entretanto, que essa absorção só se tornou litúrgica na linguagem oficial estadunidense durante a guerra fria, para contrastar os regimes “democráticos” do Ocidente com o “totalitarismo” comunista. Tanto assim que a palavra democracia não é mencionada num dos mais célebres pronunciamentos do governo estadunidense no século XX, a famosa mensagem ao Congresso do presidente Franklin Roosevelt (de 6 de janeiro de 1941), em que ele anunciou um mundo baseado em “quatro liberdades humanas essenciais”:
A primeira é a liberdade de palavra e de expressão – em qualquer parte do mundo. A segunda é a liberdade para qualquer pessoa de adorar a Deus de sua própria maneira – em qualquer parte do mundo. A terceira é estar livre da carência (2), o que, traduzido em outras palavras, significa pressupostos econômicos que assegurem a todas as nações um tempo de vida pacífico para todos seus habitantes – em qualquer parte do mundo. A quarta é estar livre do medo, o que, traduzido em outras palavras, significa redução de armamentos em escala mundial até o nível e de maneira abrangente o bastante para que nenhuma nação permaneça em posição de um ato de agressão física contra seu vizinho – em qualquer parte do mundo. Esta não é a visão de um milênio distante. É a base definida para um tipo de mundo que podemos atingir em nosso tempo e em nossa geração. Este tipo de mundo é a verdadeira antítese da chamada nova ordem da tirania que os ditadores procuram criar com a explosão de uma bomba”.
A liberdade de exprimir é boa, mas é socialmente manipulada, em escala internacional, pelo cartel midiático do capital, que tem o dinheiro para imprimir. A liberdade de crença seria mais ampla se incluísse a de não se prosternar diante de nenhum ídolo. Quanto a libertar a humanidade, “em nosso tempo e em nossa geração”, da miséria e do medo, é só olhar o que ocorre no planeta, sobretudo depois que o colapso da União Soviética rompeu, em favor do bloco imperialista, o equilíbrio estratégico instaurado em 1945: com o apoio do cartel político-militar da OTAN (ainda que reticente no Iraque de 2003), a máquina bélica da “única superpotência” desencadeou um novo surto de agressões coloniais que ab-rogou na prática os princípios da soberania nacional e da não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados, reativando os métodos nazi-fascistas da “guerra total” e da destruição maciça dos países considerados inimigos(3).
Não foi preciso esperar tanto, porém, para constatar a patética falácia das “quatro liberdades”. Quatro anos e meio depois de elas terem sido solenemente anunciadas, o Pentágono e a Casa Branca, empenhados em implantar um “tipo de mundo” que seria a “verdadeira antítese” daquele “que os ditadores procuram criar com a explosão de uma bomba”, ofereceram ao mundo estarrecido o indizível espetáculo de cerca de duzentos mil corpos carbonizados em alguns minutos pelo clarão letal dos dois imensos cogumelos radioativos. A dupla explosão nuclear de Hiroshima e Nagasaki precipitou a capitulação incondicional do orgulhoso e arrogante militarismo japonês. O argumento atômico não lhe deixava outra saída. Reduzido à condição de protetorado e de base operacional da máquina de guerra estadunidense no lado asiático do Pacífico, o Japão assimilou, sobretudo, a liberdade de se inclinar perante o mais forte. Tanto assim que voltou às atividades bélicas, meio século depois, para fornecer tropas auxiliares à infame ocupação imperialista do Iraque.
Assim como uma pose fotográfica, com sorriso estereotipado e atitude estudada, não pretende oferecer uma imagem espontânea do retratado, mas a que lhe é mais favorável, os documentos e pronunciamentos solenes que emanam de governantes e dirigentes políticos não descrevem a anatomia das instituições, nem os interesses materiais fundamentais da ordem que representam. Neles não encontraremos, evidentemente, a verdade profunda do liberalismo, mas tão somente as idéias-força que idealizam as teses e programas que eles sustentam.
Tal como exposta por John Locke, seu principal fundador, a doutrina liberal oferece uma imagem bem diferente e certamente mais próxima da verdade objetiva. No célebre ensaio que consagrou aos fundamentos da ordem política, ele argumenta que seu objetivo essencial não é garantir a liberdade: os homens já são livres no estado de natureza, mas tal liberdade lhes é de pouca valia sem a garantia da propriedade, que só a commonwealth lhes assegura(4). Segundo seu ilustre patriarca, portanto, o liberalismo é a filosofia política dos proprietários.
Renascimento do liberalismo
Se a projeção internacional dos esplêndidos objetivos anunciados por Roosevelt em 1941 ficou por conta de seus sucessores, de Truman a Reagan e deste aos Bush, pai e filho, bem como da repulsiva caterva de seus cúmplices e asseclas(5), é incontestável que as instituições políticas dos Estados Unidos e de seus sócios da OTAN configuram uma ordem jurídico-constitucional em que se combinam, com pesos específicos variáveis, componentes liberais e democráticos. Sustentamos que, nesta síntese, os valores liberais (individualismo, prioridade da propriedade privada sobre o interesse coletivo, separação e controle recíproco dos poderes, auto-regulação econômica promovida pelo mercado “competitivo” etc) predominam sobre os democráticos (soberania do povo, igualdade social e prioridade do interesse coletivo sobre o individual). Com efeito, nenhum destes valores paira, indiferente, acima da base econômica da sociedade, nem, portanto, da oposição entre o capital e o trabalho.
Lembrando, em notável artigo, que a doutrina do direito “natural” de propriedade está baseada naquilo que Locke considera “o meio divino de tornar a terra produtiva e lucrativa: ‘melhorá-la’ (improve it)”, Ellen Wood critica “a interpretação convencional” de que é o trabalho, enquanto tal, que fundamenta o direito de propriedade:
Se lermos cuidadosamente o capítulo de Locke sobre a propriedade, veremos com clareza que ele não está se referindo ao trabalho enquanto tal, mas à utilização da propriedade de modo produtivo e lucrativo, seu “melhoramento”. Um proprietário (ou senhor de terra) empreendedor, disposto a realizar os “melhoramentos” fundamenta seu direito à propriedade não através de seu trabalho direto, mas através da exploração produtiva da sua terra pelo trabalho de outras pessoas. Terras sem “melhoramentos”, terra que não se torna produtiva e lucrativa (como, por exemplo, as terras dos indígenas nas Américas) constituem desperdício, e como tal, estabelecem o direito e até mesmo o dever daqueles decididos a “melhorá-las” a se apropriarem dela(6).
Compreende-se assim por que o liberalismo constitui, por excelência, a doutrina mais adequada à dominação burguesa. Em suas formas históricas de concretização ele se adaptou politicamente a diferentes correlações de força. No século XIX, combateu em duas frentes: contra as sobrevivências da velha ordem feudal-absolutista, mas também contra a nascente democracia social e principalmente sua expressão mais avançada e radical, o comunismo. Após a I Grande Guerra, pela qual as grandes potências liberais (Inglaterra e França), aliadas à Rússia czarista, foram tão responsáveis quanto os dois impérios centrais (Alemanha e Áustria-Hungria), os valores liberais sofreram compreensível e generalizada desmoralização, que se agravou com o drama de milhões de ex-combatentes, feridos e mutilados, cuja sombria frustração foi amplamente explorada pelos fascistas e nazistas. A longa e profunda depressão da economia internacional que seguiu o estouro da Bolsa de Nova Iorque em 1929 transformou a frustração das massas em desespero. A seqüência é sobejamente conhecida. Vale lembrar apenas, quanto à decrepitude e à podridão do liberalismo, que mesmo a Inglaterra, onde ele sobrevivera, sujou-se, de parceria com a França, ao caucionar, em Munique, 1938, o expansionismo hitleriano na Europa central.
O renascimento do liberalismo a partir de 1945, já agora pretendendo registrar nos anais da história a exclusividade do uso da democracia, explica-se principalmente pela pujança dos Estados Unidos, que emergiram vitoriosos do confronto mundial e na plenitude de sua força, enquanto a União Soviética, que com seus vinte milhões de mortos, suportara o peso maior da luta contra o nazismo, tinha de se empenhar em enorme esforço de reconstrução, para o qual, por razões óbvias, não podia contar com os dólares do Plano Marshall… Sem dúvida, as grandes potências liberais mostraram-se permeáveis, em graus diversos, à ampliação dos direitos de cidadania, notadamente, nos Estados Unidos, daqueles conquistados pelas lutas dos afro-americanos. Mas o maior segredo do conformismo social e da estabilidade institucional da grande potência hegemônica e de seus sócios da OTAN é a transferência, através da pilhagem imperialista do planeta, do impacto das contradições de classe para os continentes explorados.
Historicamente, o limite da evolução democrática das sociedades burguesas, portanto do máximo avanço do interesse coletivo (o qual, sobre a base das relações capitalistas de produção, é o dos que vivem da venda de sua força de trabalho), concretizou-se nas conquistas sociais dos trabalhadores europeus durante o quarto de século que seguiu o término da II Guerra Mundial. A partir de 1979, a elevação da taxa de juros básica nos Estados Unidos a patamares inéditos, que chegaram a 20% ao ano(7), e a imposição, na Inglaterra, pela ultra-reacionária Margaret Thatcher, da política econômica preconizada por Hayek e consortes (já aplicada experimentalmente no Chile sob a bota de Pinochet, pela “escola de Chicago”), marcaram o começo da destruição do “capitalismo de bem-estar social”.
Logo em seguida, em 1980, com a chegada do torpe canastrão R. Reagan à presidência do Império estadunidense, a reação neoliberal se impôs no centro hegemônico do capitalismo internacional. (Nos Estados Unidos, é verdade, havia menos a demolir do que na Europa: o “sonho americano” de ficar mais rico que o vizinho restringira espaço para a consolidação dos direitos sociais dos trabalhadores).
Encorajado e ampliado pelo desmoronamento do bloco soviético, pelo declínio dos dois principais partidos comunistas ocidentais (francês e italiano) e pela capitulação da social-democracia européia, a portentosa vaga reacionária logrou, em boa medida, ao longo dos anos 1990 reduzir drasticamente os gastos sociais do Estado, achatar os serviços públicos, suprimir importantes direitos dos trabalhadores, “precarizar” os empregos, num retrocesso generalizado rumo ao restabelecimento dos anos dourados da “Belle Époque” liberal-imperial. O “sonho americano” de Bush e caterva é apagar da história todos os avanços da humanidade desde a grande revolução de outubro 1917.
João Quartim de Moraes é professor de ciência política na Unicamp
Notas
(1) Webster's New World Dictionnary of the American Language, NewYork and Cleveland, The World Publishing Company, 1970, pp.813-814 (verbetes liberal e liberalism).
(2) A palavra-chave do texto original é freedom ("of speech and expression, of religion. from fear, from want") e não liberty. O descompasso entre o léxico político anglo-saxônico e o dos demais idiomas manifesta-se aqui na concorrência entre dois significantes (um de origem latina, outro de origem germânica) para designar a idéia que nos idiomas neolatinos se expressa apenas pelo termo de origem latina (libertas). Sem entrar em pormenorizadas considerações semânticas, notaremos apenas que freedom não é sinônimo exato de liberty. Tanto assim que, salvo engano, não se diz "liberty from want" (ou "from fear").
(3) Sem mesmo esperar que Boris leltsin enterrasse no fétido lodaçal do neoliberalismo os restos mortais da grande revolução de outubro 1917, os valentões do Pentágono invadiram o Panamá com mortíferos bombardeios sobre a população civil, para, logo depois, despejarem sobre o Iraque um dilúvio de bombas, numa das mais atrozes operações genocidas desde a guerra do Vietnã. Os massacres balísticos da Sérvia em 1999, do Afeganistão em 2001 e, novamente do Iraque, em 2003, confirmaram mais e mais que há hoje poucos países da periferia a salvo de um ataque semelhante.
(4) Cf. o capítulo IX, sobre os fins da sociedade política e do governo, em especial os § 123 e 124, de Concerning civil government. No § 124 Locke é categórico : "The great and chief end…of men uniting into commonwealths, and putting themselves under government, is the preservation of their property; to which in the state of Nature there are many things wanting".
(5) Sem esquecer, porém, que, além do genocida nuclear Truman, o tartufo Clinton (idealizador do muro americano, algoz da Sérvia e do Iraque) e, antes dele, J. Kennedy, iniciador da agressão colonial ao Vietnã, os democratas também têm as mãos sujas de sangue…
(6) Ellen Wood, "As origens agrárias do capitalismo", Crítica marxista, nº. 10 (2.000), pp. 21-22.
(7) Em 1979, Paul Volcker, que acabara de assumir o comando do Federal Reserve, não tendo obtido apoio de seus sócios do FMI para fortalecer o dólar (cuja taxa de inflação atingira um ritmo anual de 15%) tomou unilateralmente a decisão de elevar brusca e brutalmente a taxa de juros, para atrair os dólares que estavam "flutuando" nas mãos dos especuladores do mundo inteiro. Esta medida desencadeou tremendo efeito recessivo, que se propagou por todo o sistema capitalista internacional e, ainda mais duramente, pela periferia, provocando na América Latina, com a chamada "crise da dívida externa", duas décadas de retrocesso econômico.
EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 18, 19, 20, 21, 22