A Nova América? Os neoconservadores e a hegemonia
Quatro anos depois da controversa eleição de 2000, os norte-americanos voltam às urnas para escolher o presidente que ocupará a Casa Branca a partir de janeiro próximo, tendo como opções o ocupante do cargo, George W. Bush, ou o democrata, John Kerry. Como sua antecessora, que abriu o século XXI, a de 2004 é percebida como um momento definidor. Somente o fato de ser a primeira disputa pós-11 de setembro e numa época de guerra, com operações militares simultâneas no Afeganistão e no Iraque, bastaria para considerá-la significativa. Contudo, mais do que reflexo dessa campanha antiterror, 2004 possui um significado maior. Atualmente, confrontam-se dois programas políticos internos e externos bastante diferenciados: dos neoconservadores, hoje em Washington; e dos moderados, tanto republicanos quanto democratas. A partir do resultado desse embate, serão definidos os rumos dos EUA e de sua inserção internacional.
Analisando a política estadunidense, muitos são os que atribuem a 11/9 a motivação para que as iniciativas preventivas e unilaterais da presidência Bush fossem formuladas. A própria administração destaca esse aspecto, utilizando os atentados para justificar a mudança de estratégia (não por acaso que Nova Iorque foi escolhida para sediar a convenção republicana). Não mais invulnerável, e frente à perda de sua normalidade, a superpotência restante tem o direito e o dever de se defender, superando o medo e demonstrando sua força para todos que desejarem desafiá-la no futuro. Tal mudança – iniciada em 2001 com a invasão do Afeganistão; avançada em janeiro de 2002 com o Eixo do Mal (Irã, Iraque e Coréia do Norte); e formalizada na Doutrina Bush em setembro do mesmo ano -, seria, portanto, apenas uma sequência natural dos acontecimentos. Segundo a nova Doutrina de Segurança Nacional (NSS/2002), diante de ameaças claras à sua segurança, os EUA deveriam reagir à altura, passando de uma postura de contenção à prevenção.
Neste cenário, define-se como principal risco a combinação entre terror e tecnologia em um mundo transnacional. Para manter sua segurança e assegurar a estabilidade global, os norte-americanos têm como tarefa combater esse terrorismo, assim como as nações bandidas e/ou falidas que lhes fornecem proteção e recursos para treinar efetivos e adquirir meios de destruição em massa. Para essas nações, deve ser aplicada a estratégia da mudança de regime por meio de atividades políticas ou militares, implementando governos democráticos (e, por consequência, confiáveis) no lugar dos agressivos e corruptos da atualidade. As ações no Afeganistão e no Iraque são exemplos práticos de tal postura.
Com relação às demais potências, apesar do alto grau de interdependência entre o núcleo das democracias, sugere-se atenção aos seus desenvolvimentos. Mais do que parceiras, Europa Ocidental, Japão e, principalmente Rússia e China, são definidas como possíveis competidoras. A avaliação do potencial de risco desses países será feita da mesma forma que a dos outros: a partir da percepção de seu alinhamento ou oposição à segurança e interesses norte-americanos.
Para perseguir essas metas, os EUA deverão ter à disposição todos os meios necessários, investindo na preservação da superioridade incondicional das Forças Armadas, havendo possibilidade de utilização de armas nucleares. Aqui, temos a reavaliação da postura nuclear dos EUA que, durante toda a Guerra Fria, haviam se comprometido a não atacar primeiro seus inimigos nuclearizados e a abrir um precedente perigoso: o uso do elemento decisivo contra nações que não detêm tal tecnologia, quebrando tratados. O multilateralismo é visto de forma secundária, assim como meio ambiente, comércio e ajuda humanitária.
Todavia, a Doutrina Bush não é um resultado direto do 11/09, apesar dos atentados terem ajudado a legitimá-la. Mesmo antes, posturas como a recusa ao Tratado de Kyoto, as difíceis negociações para o Tribunal Penal Internacional, os incidentes bilaterais com China (a queda do avião-espião), Rússia (a construção do escudo nuclear) e Europa (a reforma da OTAN, as disputas comerciais), dentre outras, já revelavam tais inclinações.
As idéias que fazem parte da NSS/2002, haviam sido expostas previamente na campanha eleitoral de 2000. Na oportunidade, a estratégia não fora definida como preventiva, mas sim como “Internacionalismo Diferenciado”, em contraposição à postura multilateral de Clinton que, segundo os republicanos, enfraquecera o país. Em retrospecto, a formação e ascensão desse projeto neoconservador pode ser localizada na época da bipolaridade. Nos anos 1980, Ronald Reagan assumiu a presidência, buscando a confrontação com a antiga URSS (e quaisquer grupos comunistas), visando vencer o conflito. Termos similares como Império e Eixo do Mal, a presença de nomes na presidência atual, remanescentes desse período como Dick Cheney, Condoleeza Rice e Paul Wolfowitz, demonstram a ponte entre os projetos.
Por meio de uma política de incremento exponencial dos gastos militares – no qual se incluíam recursos para o aumento da capacidade nuclear e convencional, somando o polêmico “Guerra nas Estrelas”, que prometia instalar um escudo antimísseis para impedir ataques nucleares -, Reagan reanimou a hegemonia. Internamente, a agenda do neoliberalismo ganhou força, promovendo-se amplos cortes de impostos e de programas sociais, buscando diminuir o governo e incentivar o progresso individual.
Inicialmente, essas políticas foram bem sucedidas, garantindo pressões diretas sobre a URSS que, em 1989, finalmente levaram à sua queda, ao lado do processo de fragmentação interna acelerado pelas medidas de Gorbachev. Além disso, a economia crescera rapidamente e gerara a impressão de uma era de prosperidade contínua.
Contudo, no segundo mandato de Reagan, as consequências dessas iniciativas começaram a ser sentidas com a desaceleração econômica, os déficits gêmeos, comercial e público, levando às hipóteses do declínio que estiveram presentes até meados da década de 1990.
Porém, dado seu carisma e popularidade que o tornaram relativamente imune a crises, Reagan conseguiu fazer seu sucessor, George Bush, seu vice. Bush-pai assumiu em 1989, ano do encerramento da Guerra Fria. Para os neoconservadores, esse momento passou a ser definido como de unipolaridade, definindo-se como prioridades: a manutenção da liderança global dos EUA; a prevenção do surgimento de hegemonias regionais; e o avanço em áreas estratégicas da Eurásia, antigas zonas de influência soviéticas. Tais posturas foram reveladas em um documento do Pentágono, mas não receberam o respaldo do então presidente, sendo abafadas.
Bush e seus assessores James Baker e Lawrence Eagleburger, fazem parte, bem como o atual secretário de Estado Collin Powell, do grupo moderado, majoritário do partido republicano, que tem como opção a preservação do perfil liberal da liderança. Nesta visão, a hegemonia deve ser exercida de forma multilateral e cooperativa, canalizando seu poder através de parcerias e organizações internacionais. Tal postura não elimina o recurso à força ou a ações isoladas, mas as considera um último recurso. Trata-se, portanto, de uma tática de engajamento na qual o poder é demonstrado indiretamente, o que, de certa forma, “esconde” a prática hegemônica. As duas guerras no Iraque, em 1991 e em 2003, representam essas diferenças.
A ação de Clinton no campo externo, através da Estratégia do Engajamento e da Expansão, manteve o padrão, acrescendo uma ofensiva no campo econômico que retomou o dinamismo interno e externo norte-americano. Assim, depois da ascensão com Reagan, os neoconservadores perderam influência com Bush e, com a eleição e reeleição de Clinton no período 1993-2000, foram legados a uma posição distante da linha de frente da política. Contudo, sua reorganização permitiu a nova ascensão em 2000, havendo especulações de que essa vertente tenha sido a responsável pela eclosão do escândalo Lewinski e do processo de impeachment de Clinton. E, a partir de 1998-1999, tanto democratas, pressionados pela crise, quanto republicanos moderados, visando à volta ao poder, permitiram a reação dessa corrente que propunha uma nova América, seja através do citado Internacionalismo Diferenciado ou de um rearranjo doméstico.
Não só era preciso recuperar a força dos EUA, mas também voltar a liderar, garantindo ao país plena margem de manobra. Igualmente, era necessário reavaliar as bases de tal poder, recuperando a verdadeira moral e valores nacionais. Esses ideais, ao longo dos anos, haviam sido minados por um excesso de liberdades que a própria legislação permitira, levando a um aumento da violência e à desagregação familiar. O caso Lewinski era apenas um exemplo, assim como o aborto, o homossexualismo e a exacerbação dos direitos de minorias e imigrantes ilegais.
Marcada por uma retórica de tom religioso e salvacionista, essa agenda era apresentada como uma necessidade imediata, mas não mostrada abertamente ao público. Para não perder os votos moderados, os neoconservadores montaram a campanha em torno de temas clássicos do partido republicano: segurança, corte de impostos, posse de armas de fogo e liberdade individual. Mantendo uma posição de baixo perfil, a plataforma foi chamada de “conservadorismo com compaixão”, sendo caracterizada por posições ambíguas como na questão do aborto: apesar de se declarar pessoalmente contra o mesmo, Bush garantira que não interferiria no processo jurídico institucional para reverter esse direito.
Contudo, logo depois da posse, iniciaram-se ações que contrariaram tal retórica, cortando recursos de programas liberais e os enviando para iniciativas de grupos religiosos que defendiam a proibição do aborto e a abstinência. Recentemente, debates como o das uniões civis de pessoas do mesmo sexo, e seu casamento, foram criticados, sugerindo-se uma emenda constitucional que os proibisse. Na convenção, Bush reafirmou sua posição, mesmo depois de ter colocado que o “conservadorismo com compaixão” não tem como objetivo dizer às pessoas como organizar suas vidas.
No pós-11/9, essa postura de limitação de liberdades civis e de revisão de direitos, acelerou-se, visando a um controle mais direto da vida dos cidadãos sob a justificativa da segurança. Contando com a maioria no Legislativo, Câmara e Senado, Bush tem conseguido a aprovação da quase totalidade de suas políticas e nomeações de juízes a cortes estaduais e federais, que somente conseguem ser bloqueadas pelos democratas com o uso de dispositivos legais. Por fim, a maioria dos governos estaduais permite não só influenciar as leis desses Estados, como também assegurar a mobilização da máquina política, essencial para a reeleição, cuja agenda não oferece surpresas: foco no terrorismo e na reforma social.
Como indicado, a escolha da cidade de Nova Iorque para a convenção republicana, representa essa prioridade de segurança e reforma, desejando provar o sucesso de Bush em ambos os campos, assim como explorar o sentimento de medo da opinião pública. Em tempos de guerra, o país precisa de um líder e não de um presidente cujas opiniões mudam conforme as circunstâncias – perfil atribuído a Kerry.
Essa imagem de indecisão e falta de comprometimento dos democratas com a segurança foi explorada exaustivamente. Bastante diretos e agressivos, discursos como de Rudy Giuliani, Dick Cheney, John McCain, Arnold Schwarzennegger e de um Senador democrata, Zell Millner da Geórgia, que não apóia Kerry, contrapuseram a determinação de Bush à ausência de propósito dos adversários. Guerra, terror, liberdade e liderança, associados à idéia da missão especial da América foram também trabalhados por esses oradores – principalmente por Bush ao aceitar formalmente a indicação. Ainda que temas domésticos tenham sido abordados – economia, saúde, previdência, direitos civis -, sua posição foi secundária.
Diante dessas acusações, os democratas tentam recuperar sua iniciativa política e oferecer uma campanha propositiva, comprometendo-se a enfrentar o problema do terrorismo, mas sem deixar de lado as demandas internas. Tal tentativa parece não obter resultados satisfatórios, com Bush mantendo um empate técnico com Kerry apesar das deficiências de seu governo. Dentre elas, podem ser mencionadas: o conflito do Iraque, seu encaminhamento e conseqüências; a situação no Afeganistão; a desaceleração da economia; e o crescente déficit federal.
Antes, nem a convenção democrata, ou a indicação de John Edwards para a vice-presidência, afetaram esse equilíbrio. A descrição de Kerry como um líder, herói do Vietnã idealista, que deseja a reconciliação com o mundo sem abrir-mão da segurança dos EUA e slogans como “a esperança e/ou ajuda estão a caminho” não têm conseguido motivar o eleitorado. Na verdade, o aumento favorável das intenções de voto depois da convenção foi conseguido pelos republicanos, não pelos democratas. No que se refere às eleições legislativas, os números também revelam uma América dividida.
Por enquanto, os democratas, da mesma forma que os republicanos moderados, continuam em uma posição defensiva. Mesmo antes dos atentados essa ausência de mensagem liberal e empatia com o público já se faziam sentir, e se revelaram na derrota de Gore em 2000. Não cabe aqui rediscutir sobre o fato de que Gore “ganhou, mas não levou”, uma vez que essa dinâmica é parte da estrutura do sistema político dos EUA e dificilmente será mudada, mas sim indicar as dificuldades do reposicionamento democrata. Afinal, alterando os mecanismos vigentes de eleição, republicanos e democratas poderiam se arriscar a perder seu comando dos processos, gerando espaços para novas forças.
Mais do que derrotar os republicanos no curto prazo, a prioridade democrata deve ser revitalizar o partido e sua agenda. A lição dos neoconservadores, de sucesso, fortalecimento e unidade – apesar de sua posição minoritária no partido republicano e no espectro geral da política dos EUA -, deveria servir como exemplo. Em uma eleição que, aparentemente, novamente será decidida por poucos votos, sairá vitorioso o partido que mobilizar suas bases e convencer os indecisos. Paradoxalmente, ambos estão ligados, uma vez que isto garante o voto dos partidários fiéis, mas também dissemina essa influência (e, por que não dizer, entusiasmo), ao eleitor menos comprometido. Não se pode esquecer de que a presença de Ralph Nader no pleito mais uma vez “roubará” de Kerry os votos da ala mais à esquerda do partido democrata.
Se uma vitória de Kerry poderá significar o retorno da tática multilateral, a continuidade de Bush representará, simultaneamente, o endurecimento e o esgotamento do unilateralismo. Ao reafirmarem seu projeto, os neoconservadores desmistificam a natureza do sonho americano, dentro e fora de casa, quebrando a imagem do Império da Liberdade. E, ao desconstruírem a ordem internacional, criada por eles mesmos, os EUA legam ao sistema a era da desordem hegemônica.
Cristina Soreanu Pecequilo é doutora em Ciência Política/USP, Professora de Relações Internacionais/UNIBERO e Pesquisadora NERINT/UFRGS. Autora de A Política Externa dos EUA, Ed. UFRGS; EUA: Hegemonia e Liderança na Transição e Introdução às Relações Internacionais, ambos pela Ed. Vozes.
EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 23, 24, 25, 26