A emancipação das treze colônias norte-americanas do domínio colonial inglês no século XVIII e o conseqüente estabelecimento das bases do novo Estado nacional deu-se sob a égide de inúmeros princípios filosóficos e políticos associados aos ideais de liberdade e democracia, expressos na declaração de independência e na nova Constituição do que passariam a ser os Estados Unidos da América. Mediante um longo processo histórico, iniciado no século XIX e consolidado já nos primórdios do século XX, e a partir de uma reinterpretação própria e unilateral daqueles princípios de liberdade e democracia que marcaram a sua fundação enquanto nação emerge uma potência imperialista que deixará sua marca avassaladora sobre os acontecimentos históricos mundiais dos dois últimos séculos.

Compreender tal metamorfose, de uma nação democrática e progressista, em seus primórdios, a nação imperialista hegemônica dos dias atuais passa, necessariamente, pelo estudo de sua própria trajetória histórica. Portanto, apresentar aqui uma mera sinopse dos fatos e momentos mais significativos da evolução histórica dos Estados Unidos seria uma contribuição possível para melhor explicar tal metamorfose. Porém, outra possibilidade que se coloca para a compreensão dessa transformação poderia ser – e é isso que aqui propomos – por meio do testemunho e da interpretação de um intelectual que vivenciou diretamente alguns dos momentos cruciais das transformações operadas no seio da sociedade norte-americana na segunda metade do século XIX: o herói revolucionário e líder do processo da independência cubana, José Martí (1853-1895), que viveu nos Estados Unidos ao longo de quinze anos.

As primeiras impressões e imagens que emergiram das crônicas e artigos jornalísticos desse jovem revolucionário cubano – que chega aos Estados Unidos em 1880 – demonstraram, inicialmente, uma admiração e até mesmo um certo deslumbramento pelas instituições democráticas norte-americanas, pelo espírito empreendedor daquele povo, assim como pelas oportunidades que brindavam as iniciativas individuais. Declarou que se encontrava, finalmente, em um país “onde cada um parecia ser seu próprio dono, onde se podia respirar livremente” – por ser a liberdade fundamento e essência da vida. Chegou mesmo a dizer sentir-se na “casa da liberdade”, onde haviam se fundido a América e o trabalho, resultando uma nação símbolo da prosperidade. Opinião justificável para quem acreditava na liberdade como um valor supremo e que a riqueza e o trabalho eram a garantia da independência pessoal e, sobretudo, da independência das nações. Elemento esse bastante caro a Martí, que lutava incansavelmente naquele momento pela independência de sua nação cubana, à época ainda colônia espanhola. Nem algumas dúvidas no âmbito de certos valores éticos e morais daquela sociedade o impediram de afirmar sua convicção de que jamais houve, em nenhum outro lugar do planeta, um povo mais feliz, frenético e empenhado em tão útil labor, ou ainda, que tenha criado e gozado de maior fortuna material.

Tais impressões, na verdade, eram comumentemente compartilhadas por inúmeros intelectuais e pensadores do século XIX, sobretudo europeus e hispano-americanos que, na busca ansiosa por construir uma nova era para a humanidade, encontravam-se maravilhados diante de vários aspectos da vida nos Estados Unidos, como reconhecia o próprio Martí. Tratava-se de uma intelectualidade que supunha terem a verdade, a liberdade e a dignidade alcançado, por fim, um lar seguro no Novo Mundo.

Entretanto, as primeiras imagens norte-americanas de José Martí já continham, por outro lado, elementos de cautela e mesmo de certa desconfiança. Ao lado dos elogios acima, afirmava também que tanto as virtudes quanto os vícios da sociedade estadunidense não podiam ser analisados à primeira vista e tampouco julgados a partir exclusivamente da turbulenta vida novaiorquina (onde se encontrava). Se os Estados Unidos representavam efetivamente tudo aquilo que aquela intelectualidade a ele contemporânea supunha, para Martí somente o tempo e a observação direta e meticulosa da vida cotidiana daquele país poderiam demonstrá-lo e corroborá-lo.

E assim foi. Fruto dessa meticulosa observação do cotidiano daquele país, a partir de 1881, por meio de suas Cartas de Nova York, publicadas por alguns dos mais importantes jornais de inúmeros países hispano-americanos, Martí logo iniciou sua ação de questionamento, num primeiro momento, de aspectos importantes da vida e dos valores da cultura estadunidense e, num segundo momento, no questionamento da política internacional expansionista e imperialista levada a cabo por seus governantes, principalmente, naquele momento, em relação à América Latina. No geral, sua visão dos Estados Unidos era a de uma realidade social que, como todas as demais, se apresentava como um conjunto contraditório, de excessos e carências, vícios e virtudes.

Entre os principais vícios detectados situava a ambição, a vaidade e, principalmente, a excessiva adoração da riqueza e dos valores materiais que, em conjunto, se sobrepunham – e obscureciam -, num profundo descaso, aos valores morais e espirituais. Nem o tema da tão propalada liberdade estadunidense escapou à sua crítica, pois havia para ele uma contradição entre a prática da liberdade no âmbito interno e no âmbito externo, das relações com os demais países. Para Martí, os Estados Unidos foram constituídos por povos que migraram para a América exatamente pelo excesso de amor à liberdade e à virtude. Uma honrosa herança que remonta aos primórdios da colonização. Por isso via aquele país como a “casa da liberdade”. Entretanto, ressaltava a contradição entre essa tradição de liberdade e as práticas de seus sucessivos governos que mantinham uma nefasta inclinação a manchar essa valiosa herança, na medida em que subjugavam outras nações em seu proveito e, assim, comprometiam o princípio da liberdade para além de suas fronteiras.

Aqui chegamos a um ponto importante da análise, a partir do testemunho de José Martí, da trajetória histórica da república dos Estados Unidos, desde sua fundação no século XVIII, enquanto arquétipo de nação independente, democrática e progressista, até sua paulatina transformação, no final do século XIX e início do XX, em uma potência imperialista e expansionista, sobretudo, num primeiro momento, em relação ao restante do continente americano. Trata-se da contradição estabelecida por Martí, em seu esforço por decifrar e compreender o caráter dos norte-americanos, entre os americanos “fundadores” – que, segundo ele, amavam o “cimento” em detrimento do “ornamento” – e os americanos de sua época – considerados bem mais pragmáticos, utilitaristas e imediatistas. Os últimos estariam abandonando progressivamente determinados valores e virtudes que haviam sido cultivados pelos seus antepassados, numa verdadeira traição aos ideais fundantes da pátria norte-americana. Os primeiros padeciam de uma “enfermidade de grandeza” que, embora remediável, gradualmente se dissemina deformando moralmente aquela sociedade. Tal enfermidade consistia em reduzir e limitar a vida à conquista da fortuna. Para ele, deveria haver sempre um limite no que tange ao preço a ser pago na obtenção da prosperidade.

A partir da segunda metade da década de 1880, seus artigos iriam privilegiar o tema do isolamento da sociedade norte-americana em relação ao restante do continente e do mundo. O egoísmo exacerbado e amplamente disseminado era o grande alvo da crítica martiana. Ele identificava naquela sociedade uma tendência a se limitar determinados valores e virtudes ao âmbito das fronteiras nacionais, negando-os para além das mesmas. Mais tarde dirá que seriam negados mesmo internamente, ou seja, para determinados estratos sociais menos favorecidos e/ou discriminados (caso dos negros e trabalhadores, por exemplo). Assim, os Estados Unidos constituíam um exemplo de nação voltada para si mesma, isolada e alheia em relação às “maravilhas e dores do resto do universo humano”. Se prestavam algum serviço ou exemplo, ao praticá-la e respeitá-la internamente, não contribuíam com a vitória universal da liberdade.

A questão para Martí seria saber, nesse contexto em certa medida marcado pelo conflito entre alternativas possíveis, quais forças guiariam o futuro da civilização norte-americana: o espírito puritano defensor dos direitos humanos ou o espírito cartaginês de conquista e de lucro mercenário? – questionava ele. Nesse conflituoso campo encontravam-se em pugna – numa correlação desigual de forças -, distintos projetos para o futuro do país e do continente. Internamente, de um lado, apresentavam-se os elementos de renovação e recomposição, que visavam “assegurar a liberdade ameaçada” e humanizar a então “violenta e dolorosa vida”; de outro, a política dominante, onde imperavam aqueles elementos contrários à “paz dos povos” e à “honradez do homem”. A questão era: qual desses espíritos iria finalmente preponderar na cena norte-americana?

Nesse sentido, sua condenação converge, num primeiro momento, para os elementos de ordem moral. Aquele povo, deslumbrado, e orgulhoso, de sua inquestionável grandeza e prosperidade, corria o risco de cair num condenável “pigmeísmo moral”. Martí se ocupou de informar-se sobre os caminhos e descaminhos da sociedade estadunidense, especificamente no que tocava às desigualdades sociais e ao problema da má distribuição da riqueza. Saudou, por exemplo, em 1887, a publicação do livro do socialista norte-americano Henry George, Progress and Poverty (Progresso e Pobreza) – de grande sucesso na época -, que descrevia, de forma pioneira, as conseqüências da miséria industrial nos Estados Unidos. Chegou a concordar com a idéia de que aquela república se transformava aos poucos também em uma república de classes, dividida entre ricos e pobres, privilegiados e trabalhadores, o que arranhava a tão propalada imagem da democracia norte-americana. Aos poucos aquela sociedade se degenerava deixando para trás tradicionais virtudes americanas – por serem, conforme dizia, “pouco remunerativas”. Emergia ali o afã desmedido – descrito por Martí como uma enfermidade pública – pelas riquezas materiais, junto com o desprezo em relação a quem não as possuía e o culto indigno aos que as logravam, não importando se à custa da honra ou do crime. Sua crítica visava ainda à especulação financeira, às fraudes eleitorais, à corrupção nos setores da justiça, da igreja, da imprensa etc.

Tal crítica aos valores da sociedade estadunidense, já bastante dura, radicalizou-se ainda mais ao final da década de 1880, mas, sobretudo em 1889 e 1890, no contexto da realização em Washington, das conferências interamericanas. Denunciava a emergência de uma “consciência imperial”, que se apoiava no desconhecimento e desdém em relação aos demais povos. Pairava, assim, a desconfiança em relação àquela nação que, outrora, havia sido exemplo maior da liberdade e que caminhava a passos largos para a sua destruição com o comprometimento da liberdade de outras nações. Tudo isso num momento em que se discutia abertamente, nos meios políticos norte-americanos, a viabilidade da anexação de Cuba ao território estadunidense. Num momento em que eram propostos, pelos Estados Unidos aos demais países do continente, inúmeros tratados comerciais ou convênios que, na verdade, representavam uma ocupação pacífica e decisiva, principalmente do México, da América Central e das Antilhas, sem estar descartada a ocupação mediante intervenção militar direta.

A grave e substancial transformação histórica encontrava-se em seu momento mais decisivo. As ameaças da política imperial dos Estados Unidos eram cada vez mais constantes e sofisticadas. Percorria livremente, nos meios intelectuais e políticos dos Estados Unidos, uma série de teorias que tinham em comum o reconhecimento de que todo o continente seria um natural domínio da América do Norte. A imprensa veiculava livremente planos para a ampliação do poder e da influência norte-americanos, endossados pelo então secretário de Estado, James Blaine. Os anos de 1889 e 1891 seriam decisivos para a consciência martiana sobre os riscos que representava a política externa dos Estados Unidos. Foram os anos em que ocorreram em Washington as duas Conferências Internacionais Americanas – ativamente acompanhadas por Martí. Em suas crônicas sobre a Conferência de Washington (1889-1890), ele procurou analisar o significado do convite de união proposto pelos Estados Unidos às demais repúblicas americanas, revelando os interesses que estavam por trás de tal convite: mediante os tratados comerciais propostos, estender seus domínios pelo continente. Interesses não declarados oficialmente, mas que a própria imprensa norte-americana da época se encarregava de tornar públicos.

A Conferência de Washington teria confirmado as suspeitas de Martí sobre as reais intenções da política externa dos Estados Unidos em relação ao restante do continente americano. Quando, por exemplo, um grupo de delegados latino-americanos sugeriu que a conquista fosse eliminada para sempre do direito público americano, que as cessões territoriais fossem nulas se feitas sob a ameaça da guerra ou pressão armada, os representantes dos Estados Unidos, numa atitude isolada, se negaram a assinar tal projeto, consentindo ao final, após longos debates, em declarar eliminada a conquista “por vinte anos”. O temor dos Estados Unidos não estava apenas em limitar suas possíveis ações anexionistas futuras, mas em que tal fato pudesse também colocar em xeque o direito desse país sobre os territórios já conquistados, principalmente do México. Tal episódio colocou frente a frente, em posições antagônicas, os Estados Unidos e as demais nações do continente americano.

Desmascarava os objetivos escusos da Conferência: reduzi-la a um conjunto de recomendações que pudessem fundar o direito eminente que os Estados Unidos se arrogavam sobre toda a América. Martí, ao referir-se a inúmeras teorias (Doutrina Monroe, Destino Manifesto, Missão Civilizadora, Pan-americanismo, entre tantas outras do gênero) proclamadas por vários líderes políticos e ideólogos estadunidenses, concluiu que, na verdade, desde há muito, aquela nação do norte sonhava com o domínio continental, numa demonstração inequívoca de como aquele povo havia sido criado na esperança e certeza da possessão do continente.

Nesse contexto, Martí continuava sua denúncia de que na opinião pública dos Estados Unidos, sobretudo por meio da imprensa escrita, era deflagrada uma verdadeira campanha que tencionava justificar e legitimar o natural e nada imoral propósito de estender por todo o continente, como uma cruzada dos tempos modernos, os domínios da civilização norte-americana. Tal era a contradição, segundo Martí, de quem, ao atualizar e reinterpretar os postulados da doutrina Monroe, invocava o dogma contra um estrangeiro para trair a outros. Denunciava, portanto, uma verdadeira campanha armada nos meios de imprensa norte-americanos: citava, numa interminável seqüência, as manifestações e os artigos de norte-americanos “ilustres”, que corriam de jornal em jornal, carregados da ideologia do destino manifesto e outras do gênero expansionista. Essa nova doutrina geopolítica se encaixava perfeitamente nas aspirações expansionistas e anexionistas norte-americanas. Qualquer argumento que pudesse justificar a empresa expansionista ou o direito “natural” dos Estados Unidos sobre o continente americano, particularmente sobre o istmo e o Caribe, seria propagandeado sem escrúpulos. Definitivamente, entre tais ideólogos estadunidenses, os limites do conceito de liberdade se ampliavam substancialmente para permitir inclusive a liberdade de domínio sobre todo o continente.

Assim, a partir desse momento, os textos martianos centraram o ataque no conceito “egoísta e interessado” de liberdade, tal qual ele vigorava na América do Norte. Essa concepção limitada da liberdade teria inclusive raízes na própria formação histórica daquele povo, originário de uma fusão entre o “mercador holandês”, o “alemão egoísta” e o “inglês dominador” que, num determinado momento de sua história, não viram crime em condenar à escravidão uma multidão de homens. Não se poderia sequer dizer – segundo Martí – que nos Estados Unidos estaria preponderando aquele elemento mais “humano e viril”, ainda que sempre “egoísta e conquistador”, dos “colonos rebeldes”.

Para ele, caberia perguntar se esse elemento, que teria consumido a raça nativa; fomentado e vivido da escravidão de outras raças; reduzido e roubado os países vizinhos, teria ou não sido depurado com a introdução contínua de uma multidão de imigrantes europeus, vista como cria do despotismo político e religioso. Assim, num texto de 1889, dizia que a admiração justa pela prosperidade dos homens liberais reunidos no gozo da liberdade, obra comum da mundo, não pode se sustentar quando tais homens atentam contra a liberdade de outros povos e se servem de seu poder para criar uma nova forma de despotismo.

Em suma, tendo passado já cerca de dez anos de exílio nos Estados Unidos, Martí havia adquirido plena consciência do que representava aquela nação para a América e para o mundo naquele final de século XIX. O rápido desenvolvimento que começava a apresentar esse país e o seu modelo político-institucional despertavam grande atenção e admiração de muitos representantes dos meios intelectuais e políticos das outras nações da América. Num momento em que na Hispano-América predominava a idéia de que o colonialismo teria sido responsável por quase todos os problemas que enfrentavam as novas repúblicas, como a falta de desenvolvimento, a falta de democracia, de liberdade etc, os Estados Unidos se apresentavam como aquela jovem nação que, após mais de um século de conquista da sua independência frente à Inglaterra, conseguia enfim trilhar com sucesso um caminho próprio, à margem da Europa. Era inescapável a tentação de considerar que as demais nações do continente também poderiam lograr tal façanha. O alegado caráter democrático de suas instituições, de sua Constituição, o espírito empreendedor de seu povo, a manutenção de um regime de liberdades lhe conferiam o status de mais novo modelo de civilização e progresso, ao lado dos modelos franceses e ingleses. Era bastante difícil, para qualquer membro da intelectualidade da época, escapar a essa análise. Martí, inclusive, num primeiro momento, como vimos, não ficou imune a tal influência. Mas, com o passar dos anos, percebemos em seus escritos uma clara evolução de seu juízo acerca do panorama político e social daquele país. Um juízo que culmina com a convicção martiana de que o imperialismo e expansionismo não passavam de mais uma manifestação do estado geral de degeneração moral de que padeciam os Estados Unidos.

Eugênio Rezende de Carvalho é professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás. É autor de Nossa América: a utopia de um Novo Mundo (Anita Garibaldi, 2001) e América para a humanidade: o americanismo universalista de José Martí (Editora da UFG, 2003).

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 38, 39, 40, 41, 42