O ano de 2004 tem um significado especial na vida das brasileiras: foi decretado pelo presidente Lula como o Ano da Mulher no Brasil, com o lema faz diferença acabar com a indiferença, tendo como atividade prioritária a realização da I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, coordenada pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), da Presidência da República, envolvendo mais de 120 mil mulheres, reunidas em plenárias municipais e regionais em 2.000 municípios e Conferências Estaduais nos 26 estados e Distrito Federal. Neste ano acontecerão eleições municipais, onde a presença das mulheres tem importância fundamental, pois estão em maioria no colégio eleitoral – 58.604.626 eleitoras -, podendo, portanto, decidir uma eleição.

Ao convocar a I CNPM, com o objetivo de “propor diretrizes para fundamentação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres”, o governo brasileiro propôs a análise da realidade brasileira tendo em mente os desafios para a construção da igualdade e que também fosse realizada uma avaliação das políticas públicas para as mulheres até então desenvolvidas por governos municipais, estaduais, e federal, e que se aprovassem diretrizes para a Política Nacional para as Mulheres.

A Conferência foi um feito inédito no Brasil, pois pela primeira vez um governo conclamou os vários níveis de governo e sociedade civil a contribuírem com a elaboração de um Plano Nacional de Políticas para as Mulheres. A realização da conferência não começa do nada, considerando-se a existência de uma trajetória anterior que não poderia ser esquecida e descartada.

Segundo o Documento-Base, elaborado para contribuir com as conferências estaduais, “o contexto de atuação das brasileiras na luta contra a discriminação nos últimos vinte anos foi marcado por dois vetores: um importante movimento no sentido de ampliar os direitos de cidadania e de consolidação da democracia política; e o agravamento das condições socioeconômicas e a conseqüente limitação de uma democracia social. Para as mulheres, o movimento por efetivação da cidadania, conquistada com a Constituição de 1988, foi mais do que um reencontro com mecanismos democráticos, historicamente frágeis no país. Significou o reconhecimento de sua cidadania e do princípio da igualdade entre homens e mulheres” (SPM, 2004).

Para Jacqueline Pitanguy, uma das primeiras presidentes do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, “a partir da mudança na conjuntura política do país, quer seja, o processo de democratização dos anos 80, que parcela significativa do movimento de mulheres se propôs não só a buscar, desde seu espaço de sociedade civil, uma interlocução com o governo, mas também a penetrar nos aparelhos de estado”.

Após a I Conferência Mundial sobre a Mulher, promovida pela ONU, realizada no México em 1975 – somando-se a isso o processo de redemocratização do país, depois de anos de regime militar -, houve uma reanimação do movimento de mulheres e feminista no país. Nas eleições de 1982 as mulheres dos partidos políticos jogaram papel importante, fazendo com que fossem incorporadas aos programas dos candidatos as reivindicações das mulheres, criando já naquela época articulações e realizando encontros sobre mulher e política. Em 1983 surgem em São Paulo e Minas Gerais os primeiros Conselhos dos Direitos das Mulheres, que incorporam em seus quadros militantes feministas e em 29 de agosto de 1985 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), pela Lei 7.353, com o objetivo “de promover em âmbito nacional, políticas que visem a eliminar a discriminação da mulher, assegurando-lhe condições de liberdade e de igualdade de direitos, bem como sua plena participação nas atividades políticas, econômicas e culturais do país”.

Em 1989, surge na Prefeitura de São Paulo, a primeira Coordenadoria Especial da Mulher, órgão diferenciado dos Conselhos, com caráter executivo e articulador de políticas.

Ao lado da mobilização dos movimentos de mulheres e feministas, as conferências da ONU também contribuíram, segundo Clara Araújo, para criar “ambiente propício para o reconhecimento da cidadania da mulher e institucionalizou a ‘questão da mulher’ como questão de estado e objeto de políticas públicas”. E, ainda segundo Clara, “a luta pelo reconhecimento e afirmação de direitos, as mulheres e a igualdade de gênero entraram de forma definitiva na agenda política institucional das nações e dos organismos internacionais”.

Os governos do estado e município de São Paulo foram pioneiros na criação das primeiras Delegacias de Defesa da Mulher, das Casas Abrigo, dos Serviços de Aborto Previsto em Lei, dos Comitês de Vigilância à Morte Materna, Centros de Referência de Atendimento às Mulheres envolvidas em situação de violência – a exemplo da Casa Eliane de Grammont, iniciativa pioneira no gênero. No Brasil, foi nas áreas da saúde e da violência onde o movimento de mulheres e feministas mais acumulou, trazendo como conseqüência maior avanço na elaboração de políticas para as mulheres. A violência contra a mulher deixou de ser assunto tratado no âmbito do privado, passando a ter caráter institucional, assim como deixou de ser caso de polícia e segurança para ser enfrentada como questão de saúde pública.

Ampliou-se a abordagem da saúde da mulher com a elaboração do Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher e, posteriormente, com a incorporação, nas políticas, dos direitos sexuais e direitos reprodutivos – planejamento familiar, mortalidade materna, DST e HIV/AIDS, direitos e responsabilidades compartilhadas entre homens e mulheres.

O município de São Paulo hoje tem a maior rede de creches do país e foram as mulheres que lideraram a luta por creches no início da década de 80, constituindo-se um amplo movimento que resultou na conquista de equipamento fundamental para a criança que, certamente, contribuiu para minimizar a dupla jornada de trabalho das mulheres.

Os movimentos de mulheres e feministas no Brasil têm uma diversidade de atuação e organizações. Em 2002 onze articulações, redes e entidades, entre elas a UBM (União Brasileira de Mulheres), realizaram a Conferência de Mulheres Brasileiras que aprovou a Plataforma Política Feminista, documento construído a partir da mobilização de 5.200 ativistas, mobilizadas em 26 Conferências Estaduais e que na sua apresentação diz: “os movimentos de mulheres reafirmam seu potencial de contestação, mobilização e elaboração política e, estrategicamente, posicionam coletivamente os conteúdos de seus discursos plurais frente ao contexto político brasileiro, reafirmando sua autonomia de pensamento, projeto e ação. Em um ano eleitoral, de disputas acirradas, é da maior importância que a Conferência Nacional e a Plataforma Feminista tenham se tornado a expressão de um conjunto relevante das mulheres brasileiras que integram diversos movimentos sociais, afirmando também a diversidade e a capacidade de aliança entre feministas”.

Em outro momento, junho de 2003, treze articulações, redes e entidades do movimento feminista e de mulheres, apresentaram o Documento do Movimento de Mulheres para o Cumprimento da Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, pelo Estado Brasileiro: Propostas e Recomendações. Este foi o relatório alternativo da sociedade civil, entregue ao Comitê CEDAW, na 29ª Sessão, de 30 de junho a 18 de julho de 2003, em Nova York, na mesma ocasião em que, após 20 anos de ratificação pelo Brasil da Convenção, o governo brasileiro apresentou o Primeiro Relatório Governamental. A UBM foi uma das entidades a contribuir com o relatório das organizações feministas que, além de subsidiar o Comitê CEDAW, também “pretende subsidiar o novo governo, buscando a construção do diálogo e a melhoria da qualidade dos programas e ações governamentais na esfera federal para a erradicação da pobreza, promoção da equidade e justiça”.

A I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, iniciativa do governo do presidente Lula, coordenada pela SPM com a parceria do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, vem coroar uma trajetória histórica, onde as mulheres foram protagonistas, de luta por direitos, de superação de desafios, de conquistas, de mudanças de comportamentos e mentalidades, buscando alcançar a igualdade e eqüidade de gênero. A I CNPM também abre novas perspectivas para as mulheres no Brasil na medida em que aprovou princípios e diretrizes da Política Nacional para as Mulheres.

Os resultados aprovados na Plenária final da Conferência apontam que uma Política Nacional para as Mulheres “estrutura diretrizes e princípios para intervenções governamentais, visando à inserção construtiva das mulheres nas ações do Estado, promovendo políticas concretas que efetivem a igualdade e equidade de gênero, raça e etnia e a livre orientação sexual, considerando as mulheres como sujeitos e não apenas como apêndice da família ou recurso poupador de investimentos públicos”. Além disso, enfatiza: [ela é] “uma estratégia de longo alcance no sentido da democratização do Estado e construção de uma nova institucionalidade que exige a gestação de um processo articulado entre os distintos sujeitos, dentre os quais as mulheres que, em suas múltiplas experiências e movimentos, vêm dando enorme contribuição ao país”.

As discussões em todo o processo e na plenária final reafirmaram que a Política Nacional para as Mulheres “fundamenta os planos governamentais, orienta-se pelos princípios da igualdade na diversidade, autonomia das mulheres, laicidade do Estado, universalidade, participação e solidariedade”.

As diretrizes gerais aprovadas apontam para a necessidade de políticas integradas que garantam a construção da igualdade, que ampliem as condições para autonomia e auto-sustentação das mulheres, que possibilitem o exercício dos direitos sexuais e reprodutivos, a descriminalização do aborto (tema que gerou maior debate e polêmica) e o reconhecimento da violência de gênero “como violência estrutural e histórica que expressa a opressão das mulheres e como questão de saúde pública”. Reafirma a necessidade das modificações da divisão sexual do trabalho e que o Estado tem sua parte de responsabilidade, aí incluída a ampliação dos equipamentos sociais. A soberania nacional; políticas de desenvolvimento que garantam a superação das desigualdades econômicas; e a distribuição de renda e a ampliação das políticas públicas que visem à melhoria da qualidade de vida das mulheres também foram contempladas nas diretrizes gerais.

A Conferência demonstrou o potencial de mobilização, organização e contribuição das mulheres com o debate. Houve 3.844 propostas, vindas de lugares distintos, contemplando as diversidades regionais, de raça, de etnia, de geração e de orientação sexual, englobando os 5 eixos temáticos: 1. Enfrentamento da pobreza: geração de renda, trabalho, acesso ao crédito e à terra: 2. superação da Violência contra a Mulher – prevenção, assistência e enfrentamento; 3. promoção do bem-estar e qualidade de vida para as mulheres: uso e ocupação do solo, saúde, moradia, infra-estrutura, equipamentos sociais, recursos naturais, patrimônio histórico e cultural; 4. efetivação dos direitos humanos das mulheres: civis, políticos, direitos sexuais e direitos reprodutivos; e 5. desenvolvimento de políticas de educação, cultura, comunicação e produção de conhecimento para a igualdade.

A I Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres foi vitoriosa em todos os sentidos: de mobilização das várias instâncias governamentais, da participação efetiva e grande contribuição dos diversos movimentos de mulheres e feministas, aí incluídas idosas, jovens, negras, índias, com destaque para as negras que representaram mais de 40% das participantes.
Conquista maior é que teremos, pela primeira vez no Brasil, um Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, cuja elaboração está a cargo do Grupo de Trabalho Interministerial, criado através do decreto de 15 de julho de 2004, com a participação de representantes de sete Ministérios, de duas Secretarias Especiais e uma do Conselho Nacional de Direitos da Mulher, sendo coordenado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres e contando com a participação nas reuniões e discussões de representantes dos governos estaduais, municipais e DF.

As mulheres brasileiras construíram um momento histórico para o Brasil com a realização da I
Conferência Nacional de Política para as Mulheres. Esperamos que o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres contribua efetivamente para a construção de “um mundo de igualdade contra toda opressão”.

Liège Rocha é membro do Comitê Central do PCdoB e ex-presidente da União Brasileira de Mulheres.

Referências
ARAÚJO, Clara. Diagnostico para as Conferencias estaduais – versão preliminar. Brasília, s. n. t. 27 p.
BRASIL. Presidência da Republica. Secretaria Especial de Políticas para as mulheres para as Conferências Estaduais: Documento Base; I Conferência Nacional de Políticas para as mulheres. Brasília, SPM, 2004. 60p. (Série Documentos).
________ Presidência da Republica. Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres; Resultados da Plenária Final 17 de julho de 2004. Brasília, SPM, 2004. 60 p.
PITANGUY, Jacqueline. Movimento de Mulheres e Políticas de Gênero no Brasil, s.n.t., 24 p.
PLATAFORMA POLITICA FEMINISTA; aprovada na Conferencia Nacional de Mulheres Brasileiras, Brasília 6 e 7 de junho de 2002. Brasília, Comissão Organizadora da Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, 2002. 64 p. Il.
O BRASIL E A CONVENÇÃO SOBRE A ELIMINAÇÃO DE TODAS AS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER: documento do movimento de mulheres para o cumprimento da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, pelo Estado Brasileiro: propostas e recomendações. Brasília, Agende e Cladem, 2003. 88 p.

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 64, 65, 66, 67