A aproximação das eleições presidenciais nos Estados Unidos nos oferece uma oportunidade única para o exercício da reflexão estratégica e geopolítica. Isto porque, à medida que o tempo foi passando, os destinos políticos da maior nação do mundo passaram a influenciar, cada vez de modo mais intenso, o futuro político de todo o sistema interestatal. E isto é uma prova de força.

Embora o début norte-americano como potência mundial deva ser remetido à 1ª Grande Guerra, quando os Estados Unidos “solucionaram” o conflito europeu, desenhando a paz futura através dos famosos “14 Pontos” do presidente Woodrow Wilson, somente agora, na década de 1990, a grande nação norte-americana pode exercer sua hegemonia sem ser desafiada, militar ou ideologicamente, por qualquer outra potência. E esta é, inequivocamente, outra demonstração de força.

Não obstante, esta será também a primeira eleição presidencial cercada pelo temor de um iminente ataque terrorista, o que levará o povo norte-americano a votar com medo, talvez fazendo cair para menos de 50% o comparecimento às urnas, que já é tradicionalmente bem baixo. Se isto vier a ocorrer, será sem dúvida uma demonstração de fraqueza.

Além disso, é absolutamente certo que até novembro a situação iraquiana não deverá estar estabilizada, pois o precário equilíbrio entre curdos, sunitas e xiitas vem se fazendo às expensas da autoridade americana, a qual progressivamente está perdendo o controle de áreas inteiras para as milícias locais. O plano de “transferência de soberania” para o “novo governo iraquiano”, é outra peça publicitária mal produzida, que não tem conseguido convencer a opinião pública internacional, iraquiana e até mesmo norte-americana sobre o “acerto” e os “benefícios” da intervenção militar no país de Saddam Hussein – cujo julgamento, diga-se de passagem, constitui outro embaraço terrível para a legitimação da coalizão anglo-americana. Desse ponto de vista, portanto, não se pode negar que a não-pacificação do Iraque representa um duro golpe nas pretensões hegemônicas norte-americanas, e mais um inegável sinal de fraqueza.

Um balanço mais detalhado da situação sugere, assim, que tratemos a questão em três níveis, a fim de aquilatar melhor o real poder do novo “Império”: um mais abrangente, ligado aos movimentos de “longa-duração” tanto da economia quanto da política, a que denominaremos de nível estratégico; um segundo, relacionado à crise do próprio sistema eleitoral, que está colocando em xeque o conceito estadunidense de “democracia”, e que denominaremos de nível político; e, por último, caberia uma análise relacionada aos personagens concretos que viverão o embate eleitoral deste ano, ao qual apropriadamente chamaremos de nível psicológico.

O objetivo geral deste balanço será fundamentar um juízo a respeito da grande dúvida que assalta a opinião pública esclarecida de todo o planeta, qual seja a questão de se saber se o belicismo do governo Bush poderá ser estancado com a mudança de presidente ou, ao contrário, prosseguirá independentemente de quem venha a ocupar o comando da Casa Branca. Passemos aos detalhes.

O nível estratégico

A partir dele se fixam as diretrizes principais da política externa, e tem a ver com o fenômeno da percepção de segurança compartilhado pelas elites acadêmicas, empresariais e militares, responsáveis pelo estabelecimento de objetivos nacionais a serem alcançados em longo prazo. Supõe ainda a identificação de um inimigo, que deverá ser neutralizado ou vencido, o que serve para orientar a mobilização de todos os recursos do Poder Nacional, numa determinada direção.

Como é sobejamente conhecido, esse inimigo, durante cerca de meio século foi a União Soviética, adversária geopolítica, militar e ideológica, que não podia ser batida nos dois primeiros quesitos, mas que, inegavelmente, foi derrotada no plano ideológico, a partir do momento em que se auto-dissolveu em 1991, vencida pela pressão popular em defesa dos valores liberais da democracia, do nacionalismo e do consumismo.

É, portanto, a partir de 1991, que a estratégia norte-americana deverá apresentar uma importante mudança de foco, uma vez que foi considerada superada a fase de “contenção do comunismo”, podendo ter início uma outra, de conservação e expansão da hegemonia mundial dos Estados Unidos. Nesse momento, surgiu a obra de Francis Fukuyama, O fim da História, segundo a qual, através de uma análise hegeliana, a humanidade havia atingido seu ponto mais alto de desenvolvimento com a vitória dos supremos valores da civilização contra a barbárie: a “democracia” no plano político, e o “livre-mercado” no plano econômico.

Embora saudada como uma nova “Bíblia”, pelo empresariado e pelos meios de comunicação de massa, em quase todo o mundo, no seio da elite militar estadunidense a obra foi mal recebida, compreensivelmente porque retirava dos militares qualquer função mais significativa, já que não havia mais valores a defender. Assim, na perspectiva de se contrapor aos inevitáveis cortes no orçamento militar, sugeridos pelo livro de Fukuyama, o Pentágono encomendaria, para um dos seus ideólogos mais fiéis, uma outra obra que respondesse àquela, identificando os “novos inimigos” da “liberdade” e do “american way of life”. Por essa razão, em 1996, saiu editado, com grande estardalhaço, o livro de Samuel Huntington – cujo título O choque de civilizações foi escolhido a dedo. Ele indicava, de modo simples e compreensível, a todos que a vitória do liberalismo não representava uma garantia universal de paz, pois restavam ainda sérios obstáculos culturais a serem removidos, antes da completa americanização do mundo. Desde então, esta tem sido a “obra-guia” que tem norteado os movimentos, tanto da diplomacia quanto das forças armadas estadunidenses, na formulação e consecução de sua política exterior.

Segundo o ponto de vista de Huntington, o grande pesadelo que segue atormentando o Ocidente é a dificuldade de introjeção dos valores democráticos no seio das sociedades autárquicas asiáticas e, em particular, uma aliança entre o “islamismo” e o “confucionismo” é vista com grande apreensão. De forma hábil e persuasiva, ele identifica dois inimigos de peso, o Islã e a China, propondo uma nova Cruzada para combatê-los, o que passaria a justificar plenamente a continuidade dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento de armas.

Esse convite à retomada unilateral por parte dos Estados Unidos, da “corrida armamentista”, embora restrita às armas convencionais (recorde-se que o “escudo antimísseis”, prometido por George W. Bush, nunca saiu do papel), não deixou de ter no episódio de 11 de setembro de 2001 um apoio extraordinário. Ele representou, de algum modo, a “confirmação” da “profecia huntingtoniana” de que os inimigos da “liberdade”, invejosos do alto grau de civilização alcançado pelos EUA, tudo fariam para atingir e enfraquecer o “farol da Humanidade”. Foi então que uma série de projetos engavetados veio à tona, tentando convencer a estupefata opinião pública norte-americana de que seu governo não fora atingido “de surpresa” e encontrava-se teórica e empiricamente plenamente preparado para dar a resposta adequada, na hora e no lugar que julgasse convenientes e com a contundência que entendesse necessária a esses “inimigos da raça humana”.

Vieram, assim, as agressões ao Afeganistão e ao Iraque, corroboradas não apenas por um atávico, e nesse caso considerado “legítimo”, desejo de vingança, mas também porque coroariam todo um plano “meticulosamente” elaborado, vendido ao grande público como algo longamente meditado pelo presidente em exercício – que receberia o pomposo título de “Doutrina Bush”. Trocada em miúdos, tal “doutrina” prega cruamente que os Estados Unidos têm direito de “atacar preventivamente” qualquer país, desde que seus serviços secretos detectem movimentos suspeitos, que possam sugerir que um eventual atentado terrorista esteja sendo preparado contra o território ou a interesses norte-americanos, no futuro. Já que o novo objetivo estratégico é a “Guerra ao Terror”, o “ataque preventivo” comparece como o modus operandi indispensável para que o fim colimado seja efetivamente alcançado. Só restaria, então, como tarefa pré-militar, serem definidos os “alvos”, o que foi bastante facilitado com a introdução da noção de “eixo do mal”. Ele corresponderia a uma espécie de “fila indiana” onde permaneceriam perfilados os “Estados delinqüentes”, na ordem em que o Departamento de Estado julgasse que deveria ser despejada a “ação corretiva” dos bombardeios aéreos.

Essa “Doutrina” vem secundada não apenas por uma nova geração de armas, com “telemática embarcada”, mas também por uma nova visão a respeito do comportamento previsível das demais potências, em relação aos Estados Unidos. Um mês antes de ser divulgado o documento oficial do Pentágono defendendo a “guerra preventiva”, Henri Kissinger faria publicar um artigo, divulgado mundialmente em agosto de 2002, no qual defendia a “necessidade de os EUA atacarem o Iraque”, não apenas porque este país estivesse, presumível e secretamente, desenvolvendo um arsenal de armas de destruição em massa, mas simplesmente porque as demais potências não iriam impedir a ação norte-americana no Iraque e, ao invés disso, obrigatoriamente deveriam se mostrar, em seguida, dispostas “a cooperar na sua reestruturação”, já que “nenhum país quer que os EUA ocupem uma posição exclusiva numa região tão central para o fornecimento energético e a estabilidade internacional” (sic).

Assim, neutralizados pela disposição diplomática e pela capacidade militar dos Estados Unidos, todos os demais atores mundiais ver-se-iam reduzidos à condição de colaboradores involuntários do esforço de guerra e de reconstrução do Iraque; e é neste precisamente o dilema em que se encontram atualmente: se não cooperam serão excluídos futuramente das benesses da reconstrução e se cooperam acabam, ainda que indiretamente, legitimando a invasão.

Teria sido esse, sem dúvida, um golpe de mestre se acaso três fatores não tivessem conspirado contra o brilho de tão astuta operação. Em primeiro lugar, os Estados Unidos não contaram com a resistência diplomática de alguns de seus principais aliados europeus, que firmemente se opuseram a um ataque ao Iraque não precedido por um mandato da ONU. A fissura na aliança atlântica representada pela defecção de França e Alemanha, e mais tarde da Espanha, custará ainda muito esforço diplomático por parte dos EUA para ser restaurada. Além disso, a própria ONU saiu desmoralizada do episódio e também é pouco provável que recupere seu prestígio como entidade pacificadora, em curto prazo.
Em segundo lugar, os estrategistas responsáveis pela operação militar em si mesma falharam redondamente ao subestimarem a resistência patriótica do povo iraquiano.

Apostaram na fragmentação étnica do país, e de modo ainda mais bizonho, num levante anti-Saddam, que transformaria num passe de mágica as tropas “ocupantes” em “libertadoras”. Para finalizar, as cenas de tortura e humilhação de civis iraquianos divulgadas pelo mundo afora, acabaram por minar qualquer resquício de legitimidade na ocupação – e o fiasco ideológico, neste caso, abriu um precedente muito perigoso, pois, como vimos, a ideologia constitui o cerne do mito norte-americano de sua vitória na Guerra Fria.

É, pois, esta “ilusão de grandeza”, que auto-imagina o poder americano como inexpugnável, o principal fator que tem impedido os dirigentes dos Estados Unidos de se darem conta de que o caminho natural do descongelamento da bipolaridade é o avanço em direção a uma ordem mundial multipolar, e não o retrocesso a qualquer tipo de monopolaridade de feição imperial. Esta presunção, inclusive, contraria as mais caras tradições americanas. Como lucidamente concluiu Gore Vidal: “O destino da América não é ser Roma ou o Reino Unido, mas a própria América”.

O nível político

Se no plano estratégico é perceptível uma linha de continuidade entre os “grandes” e os “pequenos” formuladores da opinião pública estadunidense, em favor da perpetuação da condição dos EUA como única e perene potência mundial, salvo as honrosas exceções de praxe representadas pelo exíguo grupo de pensadores de esquerda, no plano político partidário, em contraste torna-se possível vislumbrar algumas variações significativas de posição que merecem ser detalhadas melhor.

Afora a habitual e clássica distinção entre “democratas” e “republicanos”, existem dissensões internas a cada partido, que transformam as “eleições primárias” no grande momento da democracia americana. É lá, no corpo-a-corpo com os delegados partidários, que as lideranças se afirmam e o resultado final é sempre a escolha do candidato que, sem ofender as características básicas de cada partido, mostrar-se capaz de atrair eleitores situados na periferia do partido concorrente e, com isso, vencer as eleições. Por essa razão os postulantes finais ao cargo de presidente não costumam apresentar programas tão discrepantes, remetendo a escolha do eleitor ou à tradição partidária das famílias ou à empatia pessoal com este ou aquele candidato. A decisão final recai, assim, no aspecto psicológico e comportamental, despolitizando significativamente o embate eleitoral.

Trata-se a rigor de uma estratégia muito bem articulada com os interesses “do mercado”, já que os negócios têm que fluir independentemente de quem ocupe o governo. O mito da “liberdade de escolha” fica, assim, preservado e assemelha-se àquele dos consumidores junto às gôndolas dos supermercados, onde só as grandes marcas estão bem expostas à contemplação. Além disso, como é sabido, em última instância trata-se de uma eleição indireta, cabendo aos delegados estaduais a decisão final. Este modelo resulta de um arranjo federativo muito peculiar, no qual os grandes Estados acabam tendo a primazia na escolha do presidente, mas o grande número de pequenos Estados os torna dominantes no Congresso.

São mecanismos que possuem o condão de neutralizar as posições mais radicais, que porventura surjam no interior de cada um dos grandes partidos, bem como praticamente liquidam as chances de surgimento de uma terceira força no plano nacional. Configura-se dessa forma um sistema na realidade bipartidário e não multipartidário, incapaz de afetar os interesses das grandes corporações. Tal situação leva muitas pessoas a reagirem com indiferença frente às eleições presidenciais, pois parece que nada mudará, substantivamente, com a troca de mandatários.

Um exame mais detido da situação não pode, porém, corroborar tal leitura. Apesar de o sistema político se encontrar fortemente protegido com relação a maiores turbulências, o que, aliás, é encarado como uma vantagem, as nuances em torno das políticas sociais, da política econômica e, em especial, das políticas externa e de defesa, embutem desdobramentos que fatalmente atingirão, positiva ou negativamente, milhões de pessoas, em todo o mundo. A experiência histórica, sobretudo a mais recente, deixa bem claro não ser a mesma coisa quando os democratas ou os republicanos estão no comando.

Para começar, note-se que os vínculos de interesse que unem os partidos e as grandes corporações são distintos. Enquanto os democratas estão mais vinculados à indústria do entretenimento, à eletrônica e ao capital financeiro, os republicanos, em contraste, representam mais diretamente os interesses do setor petrolífero, da indústria bélica e do complexo do tabaco. O leitor pode, aqui, fazer suas próprias ilações a respeito das conseqüências que têm para o homem comum um mandato democrata ou republicano.

Além disso, no plano externo, é verdade que a tradição democrata é mais multilateralista, ao passo que os republicanos têm uma visão mais messiânica do papel dos Estados Unidos no mundo e, por isso, conservam-se orgulhosamente unilateralistas. Tais posições, combinadas com as diferentes visões em torno das políticas sociais, costumam apresentar um resultado que, normalmente, é interpretado da seguinte maneira pela mídia latino-americana: os democratas seriam mais protecionistas por defenderem os empregos dos trabalhadores norte-americanos. Logo, para a América Latina seria sempre preferível uma administração republicana menos preocupada com o desemprego interno e mais aberta às importações dos produtos vindos de nossos países.

Trata-se de uma interpretação bastante simplista, que não consegue esconder os vícios de origem de uma relação de subordinação, a qual vincula diretamente o latifúndio exportador latino-americano ao imperialismo industrial e financeiro do “grande irmão do Norte”. Ela omite, ainda, a possibilidade de virmos a incrementar as exportações de produtos com maior valor agregado, que possam alcançar os assalariados norte-americanos, bem como sonega informações a respeito das relações financeiras e do balanço de pagamentos entre as duas economias.

Para finalizar, lembremos que o tradicional binômio da política econômica republicana: menos impostos e mais gastos com defesa, representa uma combinação bastante restritiva à expansão econômica da periferia, já que o déficit público norte-americano acaba sendo financiado pela poupança externa, que migra da periferia para o centro. Ir além desse ponto requer mergulharmos novamente no interior das dissensões intrapartidárias, a que aludimos anteriormente. Para tanto, faz-se necessário introduzir um novo elemento, que abarca a personalidade dos candidatos em disputa.

O nível psicológico

Uma campanha presidencial nos Estados Unidos só está completa quando são escolhidos os “vices” de cada chapa. Apesar de todo o individualismo da cultura norte-americana, a decisão sobre o comando da nação assemelha-se antes a um torneio entre “duplas” do que a uma disputa de tipo tête à tête, como talvez preferissem os franceses. De modo que o mais conveniente é procurar, antes de tudo, apreender o significado simbólico de cada dupla e não tentar esmiuçar com uma lupa as eventuais “taras” ou desvios de personalidade de cada um dos postulantes. Este último exercício, aliás, tem sido muito comum na cobertura da campanha por parte da imprensa mais sensacionalista, mas para os objetivos bastante específicos deste artigo é algo que julgamos absolutamente dispensável.

De que nos serve, por exemplo, o comentário de um psicólogo, recentemente divulgado, de que Bush é um “alcoólatra que parou de beber, mas não curou-se do alcoolismo?”

O que vale frisar, e que carrega um significado tanto para as possibilidades eleitorais em si quanto para as formas de atuação governamental futura de cada dupla, é o simbolismo social e político que ambas encerram. Assim, para iniciarmos, vale sublinhar que a “dobradinha” George Bush/Dick Cheney já é conhecida dos eleitores e se apresenta como uma equipe homogênea, isto é, alinhada por afinidade de temperamento. Ambos são vistos como “durões” e visceralmente conservadores no plano comportamental. São, por exemplo, contrários ao casamento entre homossexuais, e bastante intolerantes com relação à proibição às drogas. Além disso, apóiam a pena de morte e compartilham a mesma origem profissional, como executivos de empresas do setor petrolífero. A única diferença de personalidade importante é o perfil mais técnico e profissional de Cheney, que já serviu a outros presidentes, em contraste com a natureza mais passional e a informalidade de George W. Bush. Para completar, vale dizer que o presidente é um homem profundamente religioso e está plenamente convencido de que chegou aonde chegou imbuído de uma “missão”. Em contrapartida, Dick Cheney é um homem bem mais pragmático. A conclusão é de que os republicanos vão para a disputa eleitoral, de posse de uma dupla que compartilha as mesmas opiniões, mas que se completam dialeticamente como expressões da “emoção” (Bush) e da “razão” (Cheney), do campo (Bush) e da cidade (Cheney).

A dupla democrata, ao contrário, caracteriza-se pela heterogeneidade. Trata-se, antes, de um “casamento por complementaridade” do que por “afinidade”. O que pode produzir o receio no eleitor de que se trata de uma associação instável, na qual os desentendimentos e o divórcio são apenas uma questão de tempo. John Kerry vem de um dos estados mais progressistas da União, Massachussets, mas não consegue entusiasmar esse eleitorado. Isto porque não tem demonstrado possuir convicções muito firmes, como prova sua posição ambígua em relação à guerra contra o Iraque, já que inicialmente apoiou a intervenção e, pouco depois, passou a criticar o processo de pacificação daquele país.

Nesse sentido, a escolha do senador John Edwards, como candidato a vice-presidente veio sem dúvida “apimentar” a disputa. Ele representa um novo tipo de líder, oriundo do Sul conservador, mas que possui posições bastante liberais. É enérgico, um bom orador e todos concordam possui muito mais carisma que seu colega Kerry. A dupla democrata simboliza, assim, uma América mais despojada e disposta ao risco; este último, aliás, um valor bastante caro à cultura econômica responsável pela grandeza do país. O eleitorado negro e hispânico, a partir da escolha de Edwards, passou a ter também mais motivos para se identificar com a chapa democrata. E, como Kerry às vezes se mostra um homem conservador, ele pode vir a roubar um bom número de votos teoricamente republicanos. Em conclusão, a maior heterogeneidade da chapa democrata parece constituir-se, no caso, antes uma vantagem do que uma desvantagem.

Como de costume, o maior perigo para a chapa democrata repousa, em primeiro lugar, no cultivado desinteresse de grande parte do eleitorado e, em segundo, na provável dispersão de votos, caso venha a se confirmar a candidatura do independente Ralph Nader, cujos eleitores jamais votariam na dupla republicana.

À guisa de conclusão, restaria dizer que o grupo encabeçado por George W. Bush representa uma fração bastante radical dentro do próprio Partido Republicano, e que suas posições “fundamentalistas” em defesa da sociedade “wasp” e da hegemonia mundial dos Estados Unidos estão longe de expressar uma unanimidade. Isto é positivo e mostra haver vitalidade no interior da democracia americana.

Em contrapartida, é forçoso admitir que mesmo uma vitória democrata não terá condições de alterar profundamente o quadro internacional. Os “excedentes de poder” de posse da nação americana ainda são muito expressivos, e não se vislumbra no horizonte de curto prazo a emergência de outra nação desafiadora. A União Européia e a China, hoje principais candidatas àquela posição, ainda precisarão, na melhor das hipóteses, de uma década inteira de crescimento contínuo para que possam perfilar-se à altura dos Estados Unidos. Isto não quer dizer, entretanto, que as atuais eleições nada possam trazer de novo no plano estratégico. Muito ao contrário. Um segundo mandato para George Bush, certamente, será interpretado como um apoio à sua “cruzada antiterrorista”, o que o deixará de mãos livres para novas ações. E Donald Rumsfeld, a esse respeito, já vaticinou: se depender dele, Irã e Coréia do Norte serão, em breve, atacados simultaneamente, pois uma vitória militar norte-americana em duas frentes tão distintas deverá inibir por décadas a disposição de resistência dos pequenos povos contra os desígnios do “Império”. Além disso, deixará atordoadas e sem capacidade de iniciativa as demais potências.

Em suma, para este grupo de republicanos, só a guerra é capaz de garantir a vitória da monopolaridade contra a multipolaridade.

Uma vitória da dupla John/ John, ao contrário, trará inevitavelmente um maior desanuviamento do cenário internacional e Washington necessariamente deverá buscar reatar sua anterior política de alianças, a fim de encontrar uma solução negociada internacionalmente para o conflito no Iraque. Isso terá reflexos positivos na recuperação do abalado prestígio da ONU e, ao contrário do que pensam as elites conservadoras aqui no Brasil, o “que é bom para o mundo” não pode ser visto como algo ruim para o nosso país. Se for correto esperar dos democratas um certo desvio da atenção, hoje depositada no Oriente Médio, para um retorno do seu olhar em direção à América Latina, isto não configura, em hipótese alguma, qualquer espécie de fatalismo em direção à “inexorabilidade” da Alca, ou do recrudescimento do combate ao narcotráfico, ou mesmo a inevitabilidade de retaliações em função do nosso desapreço pela conservação da Amazônia. Tudo depende da clareza e da firmeza com que os nossos governantes, aqui na América Latina, venham a identificar e defender os nossos interesses. Os democratas, por tradição, são bons negociadores. E, quanto a nós, deveria valer a máxima maquiavélica: “quem não conhece suas próprias razões, termina refém das razões dos outros”.

*André Roberto Martin é professor doutor do departamento de Geografia da FFLCH-USP.

EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17