Os Estados Unidos e a guerra contra o terrorismo
A expressão ”guerra contra o terrorismo” surgiu apenas alguns dias depois do ataque de 11 de setembro de 2001, sob a forma de uma tarja elucidativa nos principais programas de noticiários da TV americana, acompanhando a onda nacionalista que atingiu a imprensa americana. Vinha substituir a primeira tarja, inaugurada pela CNN ainda no próprio 11/9, a América sob Ataque, e visava claramente mostrar ao povo americano que o país possuía um governo e estava em ação após o impacto do bárbaro ataque contra Nova York e Washington.
Após os primeiros dias de perplexidade e dor, o governo começa a se movimentar. Com as primeiras informações apontando para a organização Al Qaeda – a mesma que já havia atacado o World Trade Center em 1993, além de inúmeros outros atos terroristas como o ataque simultâneo contra as embaixadas no Quênia e Tanzânia, além do US Cole -, as atenções dos órgãos de segurança voltavam-se para o Afeganistão onde estariam as bases e os campos de treinamento da organização.
Por sua vez, o Departamento de Estado começa a construção de uma ampla frente diplomática – a expressão aliança seria forte demais – para enfrentar o terrorismo islâmico, enquanto nova ameaça global. Coube à Inglaterra de Tony Blair tomar a iniciativa na frente internacional, de certa forma substituindo com maior habilidade o próprio presidente W. Bush na costura de uma ampla frente antifundamentalista, num momento em que a América parecia prescindir, voluntariamente, de qualquer ação diplomática, optando conscientemente pela resposta militar ao desafio terrorista. Com rapidez, a Rússia e a China Popular – ambos países também alvo da ação do fundamentalismo islâmico, um na Chechênia e outro em Xinjiang – alinham-se com os americanos, enquanto a Europa invoca, pela primeira vez, os artigos de defesa militar da Otan. E o Brasil convoca os membros do Tratado do Rio de Janeiro, declarando o Tiar (Tratado Interamericano de Assistência Recíproca) em vigor. Mesmo o mundo islâmico manifesta seu apoio aos Estados Unidos, com declarações de solidariedade de Turquia, Egito, Jordânia etc… Os tradicionais adversários americanos, Iraque e Irã, lamentam os atentados e conclamam os Estados Unidos a refletirem sobre sua política para o mundo islâmico, buscando na ação externa dos americanos a causa de tanto ódio.
Israel e Índia assumem, por sua vez, uma postura muito semelhante: transformam seus próprios conflitos contra resistências armadas de palestinos e islâmicos da Caxemira respectivamente, em parte da Guerra (agora denominada de Internacional) contra o Terrorismo. Logo em seguida, a Rússia e a China Popular seguirão o mesmo caminho, criminalizando os guerrilheiros chechenos, no caso da Rússia, e uigures, do Xinjiang (Turquemenistão chinês), no caso da China Popular, como terroristas. Cresce, assim, rapidamente a frente diplomática antiterror, com a junção oportunística de todos os países em dificuldades, com oposições armadas.
A formulação mais clara, entretanto, da Guerra contra o Terrorismo se fará com o discurso do presidente Bush, na noite de 20 de setembro de 2001, ao lançar o Partnership of Nations. Entre poucos acertos – como a distinção óbvia entre terrorismo e Islamismo – o presidente alinhou uma série de lugares comuns e alguns equívocos; chegou a falar em cruzada, esquecendo-se de que num passado bastante vivo a denominação recobria uma ação agressiva e pirata de cristãos contra o Mundo Árabe.
Boa parte dos discursos das autoridades americanas, visando explicar as razões do ataque à América, estava eivada de crenças fundamentalistas cristãs, beirando fortemente às teses relativas ao chamado “Choque de Civilizações”. O grave em todo o procedimento reside no fato de o principal efeito – tanto em plano doméstico quanto internacional – do atentado de 11 de setembro – cruel e injustificável – ter estreitado todo o espaço de crítica e dissentimento com os procedimentos da administração Bush no plano da política internacional, bem como no tocante aos temas de segurança doméstica. O discurso oficial americano tornou-se peremptório, recusou os diversos fóruns (ou fora) internacionais – em especial a ONU – em favor da exigência de um alinhamento automático de todos os países do mundo com os Estados Unidos, bem expresso na frase de Bush: “cada país tem uma decisão a tomar: ou está do nosso lado ou do lado dos terroristas”. Assim, o espaço da negociação internacional, da busca de acordos, encolheu face à ameaça generalizada de confundir discordância (de métodos, alvos, oportunidades etc) com apoio ao terrorismo. A este Diktat em política internacional somar-se-ia a postura interna: o então líder do partido republicano, Trent Lott, repetiu – logo após o discurso do presidente – a mesmíssima frase, agora no contexto americano, com que o Kaiser (Imperador) da Alemanha anunciou a I Grande Guerra Mundial em 1914: “Não vejo mais partidos de oposição na América”. Da mesma forma, o ministro da Justiça John Ashcroft, que gerou imensa polêmica quando de sua nomeação por causa de suas posturas ultraconservadoras (contra o aborto médico, a união civil do mesmo sexo, o controle de armas e favor do controle dos meios de comunicação e da prece obrigatória nas escolas), anuncia que a América deve buscar um novo equilíbrio entre “democracia e segurança”, lembrando os velhos ministros da justiça das ditaduras latino-americanas.
Em pouco tempo o próprio Congresso americano aprovou o denominado Patriot Act, um conjunto de leis que ampliavam imensamente a ação do Estado em setores considerados de segurança, permitindo a limitação das liberdades civis.
Bush equivocou-se, ainda, em esclarecer o povo americano sobre a razão do atentado: de forma ambivalente referiu-se retoricamente a duas motivações. De um lado, são atos de pessoas amorais e doentes, relegando as razões ao plano do irracional, o inexplicável; de outro, insistiu em que a América foi atacada por suas virtudes, a liberdade e a democracia. Ora, nenhum grupo terrorista está interessado na forma com que a América elege seus governantes, ou se a eleição de Bush foi mais ou menos produto de uma oligarquia partidária manipuladora do voto popular. A América foi atacada por ser um poder mundial, com interesses e objetivos em todo o mundo. Tais interesses levaram os sucessivos governos americanos a intervirem, apoiarem, derrubarem, armarem e punirem regimes, partidos e líderes em todos os continentes, como, por exemplo, a derrubada do primeiro-ministro do Irã Mohammed Mossadegh, em 1953, instalando no seu lugar o regime pró-ocidental, corrupto e opressor do Xá Reza Pahlevi, que será derrubado em 1979 pelo fundamentalismo islâmico. Tudo para defender os interesses dos acionistas da Anglo-Iranian Oil Company. Aqui, pela primeira vez, os governos da América despertaram, contra si mesmos, o eterno ódio de milhares de muçulmanos. Assim, o terrorismo cruel e indesculpável busca punir a América, seus dirigentes, levando ao coração dos Estados Unidos a destruição cega. A América foi atacada por aquilo que há de pior em seus governos: a ingerência generalizada nos negócios de outros países para a defesa dos interesses corporativos americanos.
Equivocou-se, ainda, o presidente Bush ao estender a outros países a razão do ataque, afirmando que o terrorismo luta contra os governos livres da Arábia Saudita ou Egito: na verdade, tais aliados americanos em nada se aproximam de regimes da “democracia e da liberdade”, constituindo-se em ditaduras arcaicas, exploradoras do povo e dos recursos naturais dos seus países e servindo para manter uma opulenta elite familiar (com estreitos laços econômicos com a própria família Bush). O presidente, entretanto, estava certo quando acusava o regime talibã de reacionarismo, intolerância e opressão (“um homem pode ser preso se sua barba não for grande o suficiente”, afirmou o presidente); mas, contraditoriamente, guardava silêncio frente aos países árabes “moderados” que desrespeitam os direitos humanos, como o aliado, membro da Otan, a Turquia, que exige prova de virgindade para moças serem matriculadas em escolas. Ou mesmo o Egito, que tortura gays e permite a circuncisão feminina. Ou os Emirados Árabes, que punem mulheres por participar de provas olímpicas e aceita a escravidão de mulheres filipinas.
Os ataques terroristas de 11/9 fortaleceram a postura fundamentalista de inúmeras figuras em altos postos em Washington, com a ascensão do grupo mais conservador em torno de Bush, formado pelo vice-presidente Dick Cheney, o ministro da defesa, Donald Rumsfeld e o ministro da justiça, John Ashcroft. Homens pertencentes à direita do Partido Republicano, com uma visão muito estreita de mundo, e com fortes interesses na indústria petrolífera e de armamentos, viram nos atentados uma ocasião para resolver de uma vez por todas os problemas pendentes na política externa americana.
Assim, afastando ao máximo o secretário de Estado, Colin Powell, e atraindo a conselheira de segurança nacional, Condoleeza Rice, aboliram o multilateralismo enquanto política externa americana e assumiram uma postura duramente imperial na condução das relações externas da América. Dessa forma, Bush denuncia o Tratado de Limitação de Mísseis Intercontinentais, com a Rússia, causando grande mal-estar, em especial da China Popular. Conduz o ataque e a ocupação do Afeganistão contra todas as advertências dos aliados, quase levando à implosão do Paquistão, colocado entre a pressão americana e a opinião pública islâmica, embora fracassando em pôr as mãos em qualquer figura importante da Al Qaeda.
Em 30 de janeiro de 2002, no discurso sobre o Estado da Nação, Bush avança o unilateralismo americano, anunciando a próxima punição das nações do Eixo do Mal, o Iraque, Irã e Coréia do Norte, aos quais se somaram mais tarde Síria, Somália e Yemen. As relações entre Al Qaeda e tais países não é, de forma alguma, evidenciada, o que obriga os Estados Unidos a uma nova formulação. No discurso do Estado da Nação Bush volta-se, não só contra as nações que não cooperam na luta contra o terrorismo, como ainda formula uma doutrina militar que prevê a intervenção armada prévia contra qualquer país que procure se dotar de armas capazes de colocar os Estados Unidos em risco. Tal postura implica em romper com uma tradição secular em política externa, que remonta ao Tratado de Westphalia de 1648, assumindo como provável o ataque militar convencional, de caráter preventivo.
Tradicionalmente os Estados Unidos sempre entraram em conflitos em resposta a ataques sofridos ou com mandatos de organismos internacionais, o que é descartado agora pela nova Doutrina Bush. Na mesma ocasião, Bush confirma as assertivas de D. Rumsfeld e J. Ashcroft, de que a derrota do regime talibã, em 2001, não poria fim à Guerra contra o Terrorismo, que deveria ser longa e continuada.
É neste sentido que anuncia a Operação Balikatan, o desembarque de tropas americanas nas Filipinas, para combater a organização terrorista Abu Sayyaf, responsável por inúmeros seqüestros e mortes e suspeito de atuar em conformidade com a Al Qaeda. Da mesma forma, fortalece o financiamento do governo colombiano e classifica as Farc como organização terrorista, desconhecendo o caráter nacional e popular da guerrilha colombiana. A mais dramática mudança, contudo, dá-se no Oriente Médio, onde o primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, dirige uma violenta política de aniquilamento da Autoridade Nacional Palestina.
Do ponto de vista militar, a Guerra contra o Terror é uma larga operação que combina os meios mais variados possíveis. Contra o Afeganistão travou-se uma guerra nos moldes daquela feita contra o Iraque em 1991, com abundância de meios tecnológicos e pouca ação de terra. Seguiu-se, aí, claramente a chamada Doutrina Powell, visando evitar ao máximo baixas americanas, através do uso de meios tecnológicos sofisticados. A parte terrestre do conflito foi realizada pelos guerrilheiros da Aliança do Norte que, desde 1996, lutavam contra os talibãs. Ao mesmo tempo, o governo americano desencadeia uma larga operação de controle dos fluxos monetários que pudessem ser usados pelo terrorismo, como da instituição somaliana Al Barakaat, acusada de ser fachada financeira da Al Qaeda. Operações policiais são levadas a cabo em vários pontos do planeta, com intervenções pontuais na Tríplice Fronteira (Argentina, Brasil, Paraguai), na Alemanha, Inglaterra, Bélgica e França, enquanto iniciam-se as conversações para criar bases permanentes no Tadjiquistão e Turquemenistão, além de iniciar o treinamento de tropas filipinas envolvidas na luta contra Abu Sayaff.
A Administração Bush, contudo, não considera a Guerra contra o Terrorismo circunscrita e, desde os começos de 2002, inicia os preparativos de ataque ao Iraque, acusado – como parte do Eixo do Mal – de abrigar terroristas e desenvolver armas de destruição em massa. Ambos os argumentos resistem fragilmente aos dossiês apresentados em Londres e Washington, enquanto, na verdade, talibãs e membros da Al Qaeda encontram refúgio em Paquistão, Somália, Yemen e Sudão. A insistência americana em derrubar o ditador Saddam Hussein mal encobre, desta forma, os profundos interesses americanos nas gigantescas reservas petrolíferas iraquianas.
Por fim, a guerra desencadeada contra o Iraque – embora se constituísse em retumbante sucesso na sua primeira fase (até 1º de maio de 2003) -, resvala perigosamente a partir daí para uma clássica guerra de libertação nacional. Malgrado o horror que as autoridades americanas – e alguns jornalistas e scholars – votam a esta comparação, hoje o Iraque lembra, em seus traços mais gerais, o atoleiro americano no Vietnã, entre 1964 e 1975: forte resistência guerrilheira; uma ideologia unificadora e dedicada ao martírio; vastas áreas “libertadas”; enclausuramento do exército americano; um exército local ineficiente e um governo local títere e corrupto.
Para muitos, depois de mais de mil mortos americanos e onze mil iraquianos, dos terríveis atentados em Bali, Istambul, Casablanca, Madri, Moscou e Beslan, deve-se considerar que a Guerra contra o Terrorismo mostrou-se, até o momento, inepta, incapaz de atingir o inimigo de forma contundente. Para muitos, a guerra no Iraque, com seus objetivos corporativos, acabou por desviar esforços e recursos da luta principal, favorecendo as células terroristas espalhadas pelo mundo.
Assim, envolvendo um universo variado de meios, os mais desiguais possíveis, a Guerra contra o Terrorismo afigura-se nitidamente como uma guerra assimétrica ou netwar, que já se desenvolveria como enfrentamento entre os Estados Unidos e o fundamentalismo islâmico desde 1993 e que teve em 11 de setembro de 2001 um dos seus ápices.
Francisco Carlos Teixeira Da Silva é Professor Titular de História Moderna e Contemporânea da UFRJ e Professor Emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército, e coordenador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente.
EDIÇÃO 75, OUT/NOV, 2004, PÁGINAS 27, 28, 29, 30