A trajetória instável da economia brasileira, nestes últimos 20 anos, esteve associada a um baixo desempenho do produto. Ao contrário do período 1930-1980, quando o Brasil manteve taxas de crescimento muito acima das médias dos países desenvolvidos e em desenvolvimento, nota-se que, desde 1980, seu desempenho fica aquém daquele observado para esses mesmos países.

O fraco desempenho da economia brasileira pode ser facilmente atestado em uma comparação bastante simples. Em 1980, a Coréia tinha uma renda per capita inferior à brasileira; enquanto, em 2000, era quase 2 vezes superior (ver Gráfico 1). Ademais, a estabilidade da distribuição de renda durante o crescimento observado na Coréia é contrastada com a sua deterioração no contexto de baixo desempenho da economia brasileira.

A trajetória recente desse país o tem levado a se distanciar da situação de renda dos países desenvolvidos. De aspirantes a uma vaga no clube das economias desenvolvidas, nos anos 1980, corremos o risco de perder posição entre os países em desenvolvimento, caso essa condição seja mantida nos próximos anos.

Podemos afirmar que o crescimento, embora não resolva automaticamente os problemas sociais, é condição indispensável para a formulação e a implementação de políticas que os ataquem adequadamente.

As conseqüências do reduzido dinamismo econômico são ao menos duas. Em primeiro lugar, a possibilidade de maior bem-estar da população brasileira aumenta mais lentamente que aquelas observadas para os demais países, independe da evolução da distribuição de renda. Em segundo lugar, o incremento lento do PIB per capita reflete uma evolução desfavorável da produtividade social. Isto é, cresce lentamente a contribuição de cada brasileiro na geração da riqueza nacional. A tendência geral é caracterizada por um distanciamento do padrão de consumo nacional daqueles consolidados, pelo melhor desempenho, nas economias desenvolvidas, mas também, nas em desenvolvimento. Em especial, daquelas do sudeste asiático.

Se a tese de empobrecimento absoluto não pode ser sustentada, inegavelmente o país tem trilhado um caminho de empobrecimento relativo. A consolidação dos dados para 18 países desenvolvidos e em desenvolvimento, para o período de 1980-2000, mostra o desempenho brasileiro somente superior ao encontrado para a Tailândia. O Brasil é um dos quatro países com renda per capita inferior a US$ 10 mil, convertidos pelo indicador de Paridade de Poder de Compra do Banco Mundial. Podemos afirmar que – ao contrário do veiculado pelo governo anterior –, o Brasil é um país pobre. Isso em razão de estarmos ficando para trás no indicador de renda per capita, comparativamente àqueles observados para os países do sudeste asiático.

Não temos renda per capita, portanto, para viabilizar um padrão de consumo semelhante ao encontrado nos países em desenvolvimento com melhor desempenho econômico. A distribuição de renda desfavorável prevalecente no país somente agrava esta situação. Os mais ricos brasileiros podem realizar, talvez, um padrão de consumo menos desvantajoso que aquele conhecido pelos ricos dos países em desenvolvimento com maior dinamismo, enquanto os pobres de nosso país ampliam a distância em relação aos pobres desses mesmos países.

Analisemos, um pouco melhor, os argumentos gerais apresentados até o presente momento.
Para tratar da distribuição de renda, precisamos fazer inicialmente um pequeno esclarecimento. Duas perspectivas, ao menos, podem ser adotadas para o tratamento da distribuição de renda. Uma primeira restrita à distribuição individual da renda, que na experiência brasileira encontra-se limitada à renda oriunda do trabalho. Uma outra que considera a distribuição funcional da renda, expressa na sua apropriação pelos principais atores institucionais (governos, capital e trabalho)(1).

A primeira forma de tratamento da distribuição da renda é a mais conhecida. A cada ano, o IBGE divulga os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios e os indicadores de concentração de renda elaborados. Esta base de dados informa basicamente a renda do trabalho. Em 2002, 95% da declaração da população ocupada eram renda do trabalho, auferida como salário dos empregados, rendimento do trabalho autônomo ou pró-labore dos empregadores. As rendas de propriedade correspondiam aos 5% restantes.

Quando analisada a distribuição individual de renda, notamos que, após um incremento da desigualdade na primeira década de 90, ela tem permanecido praticamente estável desde então. Podemos afirmar, então, que a distribuição individual da renda do trabalho não tem sofrido maiores alterações nestes últimos 10 anos. Essa estabilidade tem se traduzido em um achatamento sistemático da estrutura de remunerações, caracterizado por um movimento de perda de poder de compra dos diversos estratos de renda, em especial dos segmentos médio e alto. Assim, tem se processado, desde a década passada, uma sistemática desvalorização do rendimento médio do trabalho, ocorrida em um ambiente de desemprego elevado.

Contudo, essa constatação expressa parcialmente possíveis mudanças na distribuição de renda observadas no país. De fato, ela nos permite perceber que a estabilidade, pela desvalorização dos níveis de renda ou pelo desemprego, vem corroendo a massa de rendimentos do trabalho. Como o Produto Interno Bruto não conheceu uma redução absoluta, cabe perguntar: qual segmento ou ator institucional foi beneficiado pela desvalorização da renda do trabalho.

Para responder a essa questão precisamos assumir uma visão mais abrangente sobre a distribuição de renda, associada à análise da apropriação do produto nacional, que somente pode ser analisada se avaliarmos a participação dos atores institucionais na renda gerada. Graças aos esforços do IBGE na consolidação de uma nova metodologia para mensuração das Contas Nacionais, podemos analisar a distribuição funcional da renda no Brasil desde 1990.

Nessa perspectiva, exploramos a composição do produto apropriado pelos atores institucionais: governo, capital e trabalho. Isto é, não estamos analisando a distribuição de renda interna ao ator institucional trabalho, mas a relação da renda por ele apropriada e as auferidas via impostos pelo governo e como renda de propriedade de alguma forma de capital.

São grandes as surpresas quando analisamos a distribuição funcional da renda. Entre 1990 e 2002, a participação da renda do trabalho caiu de 43% para 31% do produto nacional, enquanto aquelas do governo e de capital cresceram, respectivamente, de 23% para 25% e 34% para 44%, segundo o IBGE.
Isto é, o achatamento da estrutura de rendimentos e a desvalorização de seus níveis resultaram em uma queda da massa de rendimentos do trabalho que se traduziu em uma redução acentuada da participação do trabalho na renda nacional.

Quando analisamos a renda do governo percebemos que o aumento da carga tributária bruta de, aproximadamente, 25% para 36% entre 1995 e 2003, constituiu mecanismo central para a transferência de receita pública para os interesses financeiros, em face da razoável estabilidade do gasto público no período.

Quando consideramos a renda de capital, constatamos um salto de, aproximadamente, 10 pontos porcentuais ao longo do período.

A elevação da participação da renda de capital e da transferência do governo de receita para os interesses financeiros não explicita a dimensão da mudança na apropriação no âmbito da renda de propriedade. Em 2002, a renda das empresas financeiras representava quase 60% do total da renda de propriedade. Depois de 1999, famílias, Governos e empresas não-financeiras cederam renda em favor das empresas financeiras.

Para termos uma idéia da situação brasileira, é importante mencionar que, segundo a OCDE, a participação da renda do trabalho nos países desenvolvidos é superior a 60%.
Constatamos, portanto, uma brutal mudança na distribuição funcional da renda, com uma crescente participação da riqueza financeira e uma desvalorização da renda do trabalho e mesmo da empresas não financeiras na riqueza nacional. O consumo e o investimento têm cedido espaço à valorização da riqueza no circuito financeiro, comprometendo produção e renda no presente e impondo restrições às mesmas quanto ao seu comportamento no futuro.

Aqueles que são base de geração de riqueza perderam renda. Enquanto aqueles que auferem sua renda na esfera financeira ganharam participação. Confirmamos, portanto, que o empobrecimento do país atingiu de modo diferenciado sua população. Para aqueles dependentes do trabalho recaiu o empobrecimento. Para aqueles dependentes da renda financeira foi possível se proteger desse processo, através da ampliação de sua participação na renda nacional.

Mesmo assim, essa proteção foi relativa. Os detentores de ativos de capital defenderam sua riqueza daqueles que possuem somente o trabalho para sobreviver, mas perderam para seus congêneres internacionais. Enquanto em 1980 o país possuía um conjunto de empresas, mesmo que restrito, com capacidade de internacionalização, ele, atualmente, conta somente com algumas consideradas de porte médio no mercado externo, excetuando a estatal Petrobras. Ademais, as empresas brasileiras passíveis de internacionalização pertencem ao núcleo básico da Segunda Revolução Industrial. Ao contrário, a Coréia que, em 1980, possuía empresas de porte menos desenvolvido que aquele observado no Brasil, tem hoje um conjunto de empresas internacionais e em setores considerados de ponta da nova estrutura industrial e tecnológica. Estas invadem o mercado brasileiro de eletroeletrônicos e telecomunicações, transformando empresas nacionais em meras fornecedoras de componentes de menor valor agregado.

O movimento antropofágico observado entre as esferas de interesses nacionais permite preservar os mais fortes, ou melhor, os mais ricos, em detrimento do trabalho e em face da deterioração do Estado.

Contudo, ele não é capaz de garantir que a preservação dos mais fortes viabilize a estes uma posição de destaque dentre as empresas capitalistas mais dinâmicas dos países em desenvolvimento. Resta-nos, contudo, perguntar se a estrutura econômica do país continuará a suportar a dinâmica de enxugamento da renda do trabalho em favor da renda financeira, como mecanismo de proteção capitalista em uma economia de baixo desempenho. E, também, se o crescimento sustentado pode ser retomado se forem mantidas essas condições de distribuição da riqueza produzida. Levando-se em conta os argumentos anteriormente expostos, parecem ser pouco plausíveis ambas as perspectivas.

No curto prazo, é possível que a perversidade deste movimento seja suportada pelo país e que algum crescimento seja observado. Contudo, é impossível no longo prazo ele se manter.
A drenagem de renda em favor dos interesses financeiros impôs patamares extremamente baixos para a renda do trabalho e o gasto público. Esta dinâmica tem levado o desempenho da economia brasileira à dependência dos mercados externos, como ocorre neste ano de 2004. Nosso desempenho depende da demanda externa, em razão dos baixos níveis de consumo corrente, de investimento e gasto público.

Se no presente é viabilizado um crescimento via mercado externo, temos para o futuro restrições de capacidade produtiva e infra-estrutura devido ao baixo investimento privado e público no momento atual. Mesmo para aqueles que apostam no projeto de parceria público-privado, como forma de superar tal gargalo, restam as perguntas seguintes: feitos esses investimento, haverá demanda local para a capacidade produtiva e a infra-estrutura disponível criadas na presença de um mercado interno reduzido e de baixo dinamismo? Haverá interesse nesses investimentos em um contexto de crescimento dependente dos humores do mercado externo?

Caso o desempenho futuro do país se mostre dinâmico mesmo sem um mercado interno robusto, o Brasil, sem dúvida, revolucionará as tendências mais gerais do desenvolvimento capitalista que caracteriza o desempenho das economias desenvolvidas e em desenvolvimento. Pois – como demonstra a Organização de Cooperação para Desenvolvimento Econômico –, essas economias, mesmo com um volume elevado de exportação, continuam tendo em seus mercados internos a base que permite dar maior estabilidade ao seu dinamismo econômico, embora a taxas moderadas de crescimento.

Não existe experiência mundial que comprove um elevado grau de desenvolvimento e dinamismo econômico sem um mercado interno virtuoso e sem uma distribuição de renda com uma participação dos salários inferior a 50%(2). Caso o governo atual consiga tal proeza nas condições atuais brasileiras, sob a égide da política econômica vigente nestes últimos 14 anos, ele não realizará uma revolução, mas finalmente um verdadeiro milagre.

Claudio Salvadori Dedecca é professor do Instituto de Economia da Unicamp ([email protected]).

Notas
(1) Infelizmente, não é possível consolidar a apropriação das diversas esferas de governo através do gasto público, o que permitiria restringir a distribuição de renda ao capital e o trabalho.
(2) Ver OECD (2004) National Accounts of the OECD Countries, Paris: OECD.

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 28, 29, 30, 31, 32