Tornou-se lugar comum a afirmação de que o Brasil manteve-se, historicamente, de costas para os seus vizinhos hispano-americanos – a recíproca é também propagada – e com o olhar voltado para a Europa e, em tempos mais recentes, para os Estados Unidos da América do Norte. Segundo tal perspectiva, esse comportamento expressaria um arraigado sentimento no mínimo de indiferença mútua nas relações externas entre o Brasil e os demais países latino-americanos. E, assim, explicaria uma tendência a se enfatizar e enaltecer em tais relações muito mais os elementos de rivalidade, divergência e diversidade, em detrimento dos elementos de unidade e de identidade de propósitos.

Obviamente tal atitude tem produzido reflexos negativos para qualquer projeto de integração regional no âmbito da América Latina – não restrito apenas à esfera econômica e comercial.

Algumas possíveis raízes históricas de tal sentimento podem ser sumariamente exploradas. Desde o período colonial, as coroas ibéricas adotaram compulsoriamente o princípio do “exclusivo comercial”, segundo o qual as colônias americanas deveriam estabelecer relações comerciais unicamente com as metrópoles européias, vetando, assim, possibilidades de trocas mercantis e, conseqüentemente, de contatos de qualquer outra ordem entre as áreas coloniais. Dessa forma, apesar de terem mantido certa unidade e integração de um ponto de vista administrativo, obviamente impostas pelas metrópoles como forma de racionalizar a exploração de suas riquezas naturais, essas áreas coloniais americanas acabaram por manter entre si, durante mais de três séculos colonização, um altíssimo nível de isolamento.

Mais tarde, com as independências das colônias americanas nas primeiras décadas do século XIX, verificou-se – sobretudo nas áreas outrora sob o domínio hispânico – um rápido e dramático processo de desagregação e fragmentação das antigas unidades administrativas coloniais e de sua substituição por um grande número de pequenos Estados republicanos. Mas, mesmo antes, no contexto de crise do colonialismo espanhol e português, no final do século XVIII e início do XIX, talvez como uma reação antecipada a esse risco desagregador, já se evidenciavam aspirações por uma integração latino-americana paralelamente aos propósitos e ações independentistas. Exemplo disso é o fato de um dos precursores do movimento de emancipação da Hispano-América, o venezuelano Francisco de Miranda (1750-1816), desde o final do século XVIII já sonhar com uma América espanhola “independente e unida”, que se chamaria Colômbia. Suas idéias unificadoras influenciaram os principais libertadores da América do jugo ibérico, no início do século XIX. É o caso – para ficarmos apenas com alguns exemplos – do chileno Bernardo O’Higgins (1778-1842), que defendeu uma Grande Federação dos Povos da América, bem como do argentino San Martín (1778-1850), que propôs a integração do Rio de Prata, Chile e Peru.

Mas o sonho de uma integração americana, no contexto imediatamente pós-independência, alcançou seu maior vigor e dimensão com outro venezuelano: Simon Bolívar (1783-1830). Com o propósito de efetivar seu audacioso plano de integração daquilo que denominou América Meridional, Bolívar convocou em 1826 o Congresso do Panamá, que contou com a participação de representantes de territórios que atualmente compreendem doze repúblicas latino-americanas. Interessante destacar, a propósito, que o império brasileiro, embora convidado para esse conclave, não enviou representantes.

Apesar do fracasso do Congresso do Panamá, a proposta unificadora reaparece nas décadas seguintes do século XIX em inúmeros outros congressos realizados em várias partes da América Latina. Principalmente na área hispano-americana, vários líderes políticos e intelectuais de diversos matizes de pensamento, influenciados em maior ou menor medida pelo ideal bolivariano, lançaram propostas semelhantes de integração regional. Em 1850, o argentino Domingo Faustino Sarmiento (1811-1888) chegou a propor a criação do que chamou de Estados Unidos da América do Sul, numa tentativa de integração dos países da região do Prata. Ainda no final do século XIX, surgiu e se difundiu na área do Caribe, sobretudo com o porto-riquenho Eugenio María de Hostos (1839-1903), a proposta de uma Confederação Antilhana. E, assim, outras iniciativas semelhantes se seguiram ao longo do século XIX.

Num rápido balanço desses apelos e projetos de integração latino-americana do século XIX, podemos extrair pelo menos três conclusões bastante significativas. Em primeiro lugar, tratava-se de projetos que extrapolavam o âmbito econômico e comercial e se apoiavam na evocação de um sentimento latino-americanista, de inspiração bolivariana, ao reivindicarem uma identidade latino-americana assentada em uma história comum, assim como em problemas (sociais e econômicos) e projetos de futuro comuns. Tais projetos, além de abarcarem uma dimensão cultural e identitária, visavam em última instância à edificação de uma verdadeira unidade política de cunho supranacional, que não se reduziria a um mero formalismo de institucionalização política e administrativa. Em segundo lugar, nenhum desses projetos jamais se concretizou e todas essas iniciativas de integração latino-americana nos moldes sonhados por Bolívar foram fracassadas. E, em terceiro e último lugar, todas essas propostas de integração regional no âmbito da América Latina no século XIX não apenas tiveram origem como, sobretudo, se referiram apenas às áreas das repúblicas hispano-americanas. Ou seja, nenhuma proposta partiu do Brasil e tampouco nosso país foi incluído em qualquer dos projetos apresentados, nem mesmo nos primeiros momentos do seu período republicano.

Mais tarde, no século XX, a dimensão político-cultural desse ideal bolivariano de integração latino-americana, lançado no século XIX, começou gradualmente a ser esquecida e a ser substituída pela ênfase na dimensão econômica e pela perspectiva eminentemente pragmática e instrumental, em suma, por uma integração segundo as determinações do mercado. Assim, a idéia de integração latino-americana passa a ter como principal – e quase que exclusivo –, eixo articulador a economia: obviamente, não se trata de desmerecer a integração econômica, mas apenas de ressaltar a redução dos horizontes dos projetos mais contemporâneos de integração em relação às propostas originais do século anterior.

É verdade que os tempos são outros e, em muitos aspectos, as sociedades latino-americanas do século XX são muito mais diferentes entre si do que eram aquelas do século XIX. O fato é que um novo cenário internacional (histórico, político e econômico) impôs novos e sérios desafios e problemas para os esforços de integração econômica no âmbito da América Latina do século XX. Inúmeras organizações e associações foram criadas, sobretudo na segunda metade do século, visando a algum tipo de pacto ou tratado de cooperação ou integração econômica em escala regional. Porém, além da essência economicista de tais projetos, há que se destacar: a desigualdade dos níveis de desenvolvimento industrial entre as economias latino-americanas envolvidas; a interdependência com os países hegemônicos centrais; o forte apego aos interesses localistas e a uma visão demasiadamente estreita de nacionalismo; a disputa entre as principais economias da América do Sul pela posição de supremacia política e econômica na região; bem como a ausência de uma tradição de relações sólidas (não apenas comerciais) e de cooperação entre os países latino-americanos. Sem dúvida os obstáculos para a integração foram, e continuam sendo, bastante fortes – o que é atestado pelos vários fracassos das tentativas anteriores.

Mais recentemente, entretanto, em pleno século XXI tem ganhado força entre alguns setores da diplomacia latino-americana a idéia de uma integração mais ampla entre os países da região, mediante a criação de uma Comunidade Sul-Americana de Nações, como uma reação à proposta norte-americana da Alca. Retomando talvez um espírito muito comum entre projetos de integração do final do século XIX e início do XX, tal proposta emerge com uma preocupação comum em preservar a soberania das nações latino-americanas dos efeitos permanentemente ameaçadores da política continental neocolonialista levada a cabo pelos Estados Unidos. Contudo, a grande novidade da recente proposta é exatamente o nível de abrangência da nova comunidade, que praticamente abarcaria todo o continente sul-americano. O que é inédito, se considerarmos os alcances mais limitados dos projetos anteriores. Mas, contudo, o dado que mais nos chama a atenção nos discursos em defesa do atual projeto de integração sul-americana, é uma tentativa de se resgatar, ainda que dotando talvez de novos conteúdos e alcances, o ideal bolivariano de integração. Nesse sentido, como um contraponto à integração anexionista, expressa pela Alca, assentada em relações verticais de dependência e subordinação, a nova perspectiva se apresenta como um projeto de integração solidária, assentada em relações horizontais de fraternidade e de comunidade de propósitos.

Em que pese o significado e o imperativo histórico que revestem tal proposta, é preciso ter claro, porém, que o sentimento de comunidade, de unidade e solidariedade regional – princípio bastante caro a Bolívar – não se estabelece por simples decreto ou acordo diplomático. Assim, o sucesso da proposta dependerá fundamentalmente da participação e envolvimento efetivo de diversos setores organizados da sociedade civil (incluindo os parlamentos), como uma forma de lhe conferir um conteúdo inclusive mais popular e menos elitista, não restrito apenas às ações dos diplomatas, técnicos e empresários envolvidos nas negociações da nova proposta de integração.

Por outro lado – e aqui reside o ponto capital –, o sucesso de tal proposta dependerá da nossa capacidade em médio prazo de superar o sentimento de indiferença e desconhecimento mútuo que ainda persiste entre as nações latino-americanas, ao qual nos referimos no início deste texto. Dependerá da nossa capacidade de superar os elementos de rivalidade e de disputa, alimentando os ideais de comunidade, fraternidade e cooperação. Somente assim, como uma condição para a fundação de verdadeiras comunidades de nações, poderemos estar em condições de enfrentar a atual ameaça da Alca, avançando e consolidando um projeto alternativo de integração de caráter supranacional que seja capaz de fazer frente aos desafios e problemas de parte considerável da grande família de povos latino-americanos. Caso contrário, a evocação do ideal bolivariano não passará de mera retórica diplomática.

Eugênio Rezende de Carvalho é professor do Departamento de História e do programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás (UFG).

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 45, 46, 47