A crise da economia brasileira, iniciada nos anos de 1980, fez emergir no cenário econômico-político idéias-força que procuravam explicar a crise a partir do plano interno pelo esgotamento do modelo substituidor de importações e do plano externo em decorrência da crise do petróleo. O receituário foi a aplicação de planos econômicos (Cruzado, Bresser e Verão) que objetivavam o combate à inflação, a estabilidade econômica e a competitividade. Em nome desse tripé, assistiu-se, nos anos de 1990, ao fim da liquidez da economia, à abertura indiscriminada (Plano Collor), à sobrevalorização cambial e às privatizações (Plano Real).

Esses equívocos decorrem da falta de uma análise consistente do processo de desenvolvimento econômico, político e social do Brasil. Sobretudo, pelo negligenciamento, por parte da intelectualidade e de líderes políticos, das idéias expostas pelos grandes analistas do desenvolvimento brasileiro. Dentre eles destaca-se Ignácio Rangel. Assim, este artigo procura demonstrar como a teoria da dualidade brasileira de Rangel pode ser útil não só para fazer um diagnóstico preciso sobre a presente crise, mas também para apontar com precisão as possíveis soluções.

Militante comunista e homem de Estado

Ignácio de Mourão Rangel nasceu em Mirador, no estado do Maranhão, em 20 de fevereiro de 1914. Desde cedo, dedicou-se aos estudos visando seguir a carreira de seu avô e seu pai (Juízes de Direito). No início dos anos de 1930, a partir das leituras de Marx e Engels, aproxima-se do Partido Comunista do Brasil (PCB). O espírito de luta conferido por seu pai, avós e tios o leva a participar, com apenas 16 anos, da “Revolução de 1930” e em seguida a inserir-se ativamente na tentativa de tomada do poder em 1935, pela Aliança Nacional Libertadora (ANL). Com a derrota da ALN, Rangel é preso em São Luís e enviado ao Rio de Janeiro. Atrás das grades, dedica-se a estudar as causas da derrota e também a perceber que a industrialização brasileira avançava sem reforma agrária. Assim, ele “esboçou, nos anos de cárcere, um esquema da dualidade da formação social brasileira, partindo e aprofundando a idéia da Internacional Comunista de que a revolução nos países coloniais e semicoloniais tinha duas faces, uma antiimperialista e outra antifeudal” (MAMIGONIAN, 1997, p. 136).

Libertado em 1937, retorna a São Luís, onde retoma os estudos de Direito e passa a trabalhar na Indústria Martins Irmãos e Cia. No início de 1945, livra-se do domicílio coacto em São Luís e dirige-se ao Rio de Janeiro, onde se especializa na tradução de romances policiais e passa a militar no PCB, na Célula Theodore Dreiser, com Graciliano Ramos, Gilberto Paim e outros intelectuais. No interior da Célula, Rangel discordou das teses do PCB, segundo as quais a reforma agrária era indispensável à industrialização brasileira, provocando posteriormente sua saída do partido.

Em 1950, com apoio de Rômulo de Almeida, é indicado para trabalhar na Confederação Nacional da Indústria (CNI) e “em 1952, dada a qualidade de seu trabalho e o interesse despertado pelos inúmeros artigos publicados por Rangel a partir de 1947, seu nome foi sugerido por Rômulo de Almeida ao então presidente Vargas, que o convida para a sua Assessoria (…). Nessa assessoria, entre as inúmeras tarefas, colabora na elaboração do Projeto da Petrobras e da Eletrobrás” (BRESSER PEREIRA; REGO, 1998, p. 16).

Após redigir sua tese da dualidade, em 1954, Rangel vai a Santiago do Chile realizar um curso de pós-graduação na CEPAL. Um ano depois ingressa no Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e coordena o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Diante dessas experiências, é convidado, em 1964, por João Goulart, para ser ministro.

Segundo Rangel (1985, p. 09), “no dia 20 de fevereiro de 1964 – 40 dias antes do Golpe de Estado (…) – o Presidente João Goulart fez-me chamar à sua presença no Palácio das Laranjeiras. Achava que já era tempo que eu assumisse maior responsabilidade no governo (…), deixava-me a vontade para escolher entre o Ministério Extraordinário do Planejamento e a Superintendência da Moeda e do Crédito: a poderosa SUMOC, atual Banco Central. Eu agradeci efusivamente a lembrança de meu nome”. Ademais, ele negou-se, afirmando que o corpo técnico da SUMOC era subordinado a Roberto Campos.

O Golpe Militar de 1964 e o debate que se seguiu chamaram a atenção para as idéias de Rangel, pois o estagnacionismo de Celso Furtado e a busca de bodes-expiatórios por Caio Prado Jr., demonstraram o esgotamento teórico de parte da esquerda. Assim, “após 1964 alguns cepalinos passaram a considerar a existência de Rangel, como foi o caso de muitos economistas, às vezes sem dar os devidos créditos e freqüentemente em misturas indigestas de idéias”.

Em 1976, Rangel aposenta-se no BNDE, mas continua a dar consultoria ao banco até o final dos anos de 1980. Ainda no segundo lustro dos anos de 1970, intensifica-se o processo de reavaliação das importantes contribuições de Rangel para o pensamento econômico brasileiro (Bresser Pereira, Davidoff da Cruz, Mantega, Mamigonian, Bielchowski, entre outros). Tal processo se acelera na década de 1980, a partir de dissertações e teses sob a orientação de Armen Mamigonian.

A dualidade inerente à formação social brasileira

A contribuição do pensamento de Ignácio Rangel à interpretação da realidade brasileira é muito vasta e rica, mas se pode destacar algumas de suas idéias fundamentais: 1) a dualidade básica da economia brasileira; 2) o papel dos ciclos longos ou Kondratieffs; 3) o papel dos ciclos breves ou Juglar; 4) capacidade ociosa e pontos de estrangulamentos na economia (MAMIGONIAN, 1987).

Ignácio Rangel, em sua análise marxista radical da sociedade brasileira, cria um conceito singular de dualidade – inteiramente distinto das definições mais comuns atribuídas ao termo (dois brasis de Lambert e a dualidade cepalina). “A novidade analítica da conceituação de Rangel reside na subdivisão do conceito marxista de relações de produção em relações internas e relações externas” (BIELSCHOWSKY, 1988, p. 251). Essas relações na “concepção rangeliana” são denominadas de pólo interno e pólo externo. Cada pólo é composto por um lado interno e um lado externo.

A tese da dualidade brasileira demonstra o caráter dialético e original da compreensão do materialismo histórico, à medida que afirma que a seqüência da história universal – comunismo primitivo, escravismo, feudalismo, capitalismo e socialismo – se reproduziria de forma distinta nos países de economia complementar ou periférica. Assim, a história do Brasil não retrata fielmente a história universal, especialmente a européia, porque nossa evolução não é autônoma, não é produto exclusivo de suas forças internas (RANGEL, 1981).

Rangel percebeu que os diferentes modos de produção (comunismo primitivo, escravismo, feudalismo e capitalismo) podem coexistir num mesmo período e que há sempre dois deles unidos e representados por elites políticas e econômicas em torno de um pacto de poder interno. Ou seja, a “dinâmica histórica se distingue, portanto, dos casos clássicos porque os processos sociais, econômicos e políticos não decorrem apenas da interação entre desenvolvimento das forças produtivas e relação de produção interna ao país, mas também da evolução das relações que este mantém com as economias centrais” (REGO, 1997, p. 55-56).

Ele quis demonstrar que o desenvolvimento brasileiro é complementar ao externo, formando uma dualidade que sofre consecutivos processos de mudanças. As mudanças internas são muito mais aceleradas do que as externas, o que significa que o Brasil tem assimilado e ultrapassado os modos de produção clássicos muito mais rapidamente (em 500 anos) do que o mundo antigo (em torno de 4.000 anos), numa tentativa de alcançar o modo de produção mais dinâmico, atualmente o capitalismo financeiro, predominante no “centro do sistema”. Conforme avançam os modos de produção internos vão ficando para trás rugosidades; por isso encontram-se várias relações sociais típicas de modos de produção passados, combinando-se, assim, ao longo do processo histórico brasileiro quatro grandes dualidades, abertas, sobretudo, na crise da economia mundial.

Portanto, para Rangel, “os modos de produção no Brasil são as dualidades”. Isto é, não existe no Brasil modo de produção feudal, modo de produção escravista, modo de produção capitalista. Existem sim, as dualidades, ou seja, combinações de modos de produção e relações de produções.

A teoria da dualidade oferece ainda subsídios para a interpretação da composição das classes sociais ocupantes do Estado e as suas diretrizes no direcionamento dos regimes político e medidas político-institucionais. Assim, o Estado brasileiro é composto por duas delas: uma hegemônica politicamente e outra dominante economicamente. Os pactos de poder que se estabeleceram teriam a tarefa de garantir: 1) a perpetuação de certas relações de produção (sócio hegemônico politicamente); 2) o radical desmantelamento daquelas mais retrógradas e atrasadas e; 3) ao mesmo tempo promover o desenvolvimento das forças produtivas (sócio dominante economicamente) com efetiva capacidade de serem implantadas. O latifúndio, por exemplo, seria internamente feudal (da porteira para dentro) e externamente funcionava como uma empresa comercial (da porteira para fora), à medida que se insere no comércio internacional. Este mercado, por sua vez, pressiona constantemente aquele instituto para modificar suas relações internas (salário, por exemplo). Como demonstrado esquematicamente no quadro.

A dualidade, o governo Lula e as Parcerias Público-Privadas

Feitas essas considerações sobre a teoria da dualidade, pode-se perguntar: De que forma ela vislumbra o atual pacto de poder, esboçado no governo Lula? Para responder a tal questão é necessário um comentário sobre o pacto de 1930. Em 1930, o latifúndio feudal voltado para o mercado interno associa-se ao iniciante capitalismo industrial brasileiro e de forma planejada conduz o processo de substituições industriais de importações. Do ponto de vista político e econômico o pacto formado não mexeria na questão fundiária, mas estimularia o abastecimento do crescente mercado urbano.

Para os industriais, a reserva de mercado, promovida por Getúlio Vargas (instrução 70 da SUMOC e posteriormente a instrução 113), garantiu a formação de oligopólios industriais. Estes passaram gradativamente a competir no mercado internacional com os países do centro do sistema capitalista. Como bem disse Barros de Castro (1985), “a economia brasileira caminhou em marcha forçada”, ou seja, fruto da revolução de 1930.

O fim do governo militar e a conjuntura internacional obrigaram o Brasil, um dos maiores crescimentos da produção industrial no mundo, a novamente fazer um rearranjo do pacto de poder político. A quarta dualidade prenunciada por Rangel tenderia a se concretizar, desde que a burguesia industrial, agroindustrial e a classe trabalhadora urbana e rural viessem a buscar um objetivo comum, ou seja, a retomada do crescimento econômico aos patamares do Milagre (1968-73) e do II PND (1974-79).

Contudo, o que se viu foi um acovardamento por parte da burguesia industrial em lançar-se como classe hegemônica politicamente. Essa situação somou-se à incapacidade de setores da esquerda em propor medidas para a retomada do crescimento econômico (necessidade de combater a inflação supondo demanda superaquecida), juntamente com a reprimida demanda social (exigindo reforma agrária, não pagamento da dívida externa etc). O resultado foi, nos anos de 1990, dois governos que promoveram o desmantelamento do projeto nacional-desenvolvimentista.

Em termos conclusivos, pode-se afirmar que o atual governo não consegue constituir a quarta dualidade. Mas por quê?

Do ponto de vista político, a aliança de PT e PL com os demais partidos de esquerda foi fundamental, mas faltou uma coligação mais sólida com nacionalistas, como Itamar, Quércia e com intelectuais, como Belluzzo.

Pelo lado econômico, o problema foi mais grave. Verifica-se, no governo, um grupo de lideranças políticas e empresariais defendendo o crescimento econômico (Lessa, Furlan, Rodrigues, Amorim, Pinheiro Guimarães, Aldo Rebelo, entre outros) e um grupo, politicamente mais forte, representante de uma política macroeconômica que tem como meta manter o velho receituário de controle da inflação, visando à estabilidade econômica (Palocci e Meirelles). Ora, isso se constitui numa dualidade dentro do governo Lula, pois enquanto parte das classes produtivas e dos trabalhadores almeja a retomada do crescimento econômico, parte do governo submete-se aos desígnios do FMI e do Banco Mundial.

Apesar dessa contradição dual, o governo Lula apresentou avanços consideráveis, como: 1) suspensão das privatizações; 2) política externa independente; e 3) comércio externo sob o controle do Estado e das empresas, promovendo acordos bilaterais (da forma como sugeriu Rangel há mais de 30 anos atrás); entre outros. É sobre essas contradições que a presente crise brasileira requer solução. A priori, segundo Rangel, ter-se-ia que partir do princípio de que o governo Lula administra um Estado falido e uma economia nacional com grande capacidade ociosa (produtiva e poupança) e nós de estrangulamentos. Ora, cabe ao dirigente ou ao pacto de poder um esforço concreto na resolução dos problemas via transferência de poupança potencial presente para áreas carentes de investimentos. É, pois, nesse sentido, que a proposta das Parcerias Público-Privadas (PPPs) constitui-se na chave-mestra para a retomada do crescimento econômico.

Mas como fazer?

Na visão de Rangel a concessão de serviços públicos à iniciativa privada nacional, sob o controle do Estado, deve ter como ponto de partida a criação de um novo aval, ou seja, o Estado assumindo a condição de “credor hipotecário” e também de poder concedente. Assim, bilhões de reais poderão ser emitidos e terão como lastro o patrimônio imobilizado das empresas privadas. Essa possibilidade representaria, para a macroeconomia brasileira, um grande avanço e, para os trabalhadores, a construção de milhares de empregos, ou seja, se geraria, na economia nacional, um vigoroso “efeito multiplicador”, tirando o país da presente crise. Ora, a saída da crise está no investimento de bilhões de reais em infra-estrutura, com a construção de milhares de quilômetros de estradas de ferro, centenas de quilômetros de linhas de metrôs, milhares de quilômetros de duplicações de rodovias, milhares de quilômetros de construções de linhas de transmissão de energia, construções de hidrelétricas e termoelétricas, ampliação das redes de saneamento básico, reequipamento dos portos etc.

O resultado, portanto, levaria a uma nova fonte de riqueza, gerando recursos para sair do sufoco presente. Criando condições para renegociação da dívida interna e externa, a partir de uma rigorosa auditoria e praticando política pública ativa no setor de reforma agrária, financiamento das exportações, desenvolvimento científico e tecnológico.

Este programa não se implementará sem a mobilização de amplas forças da sociedade no sentido de mudar o rumo da atual política econômica.

Carlos José Espíndola e José Messias Bastos são professores-doutores do Departamento de Geociências da UFSC.

Bibliografia
BIELCHOWSKI, Ricardo. O pensamento econômico brasileiro – o ciclo ideológico desenvolvimentista. Rio de Janeiro: IPEA/INPES, 1988, p. 251.
CASTRO, A. B. de & SOUZA, F. E. P. A economia brasileira em marcha forçada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
MAMIGONIAN, Armen. “Notas sobre as raízes e originalidade do pensamento de Ignácio Rangel”. In: MAMIGONIAN, Armen (Org.). O pensamento de Ignácio Rangel. Florianópolis: PPGG/UFSC, 1997. p. 133-140.
PEREIRA, Luiz Bresser Pereira; REGO, José Márcio. “Um mestre da economia brasileira: Ignácio Rangel”. In: MAMIGONIAN, Armen; REGO, José Márcio (Orgs.). O pensamento de Ignácio Rangel. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 13-38.
RANGEL, Ignácio. Economia: milagre e antimilagre. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.
RANGEL, Ignácio. “História da dualidade brasileira”. Revista de Economia Política, São Paulo, v. 1, n. 4, p. 05-34, 1981.
REGO, José Márcio. “Precursores da teoria da dependência”. In: MAMIGONIAN, Armen (Org.). O pensamento de Ignácio Rangel. Florianópolis: PPGG/UFSC, 1997. p. 49-58.

EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 72, 73, 74, 75, 76, 77