Uruguai: integração regional, projeto nacional e unidade popular
A América Latina continua a virar a página da história de governos neoliberais. Ao som de “cambia, todo cambia”, refrão de música cantada por Mercedes Sosa, o Uruguai viveu um triunfo histórico das forças progressistas.
O povo do Uruguai elegeu maioria parlamentar de senadores e deputados da Frente Ampla, e vai dar posse em 1º de março ao primeiro presidente de esquerda da história do país, que governará os próximos cinco anos: o médico Tabaré Vazquez, nascido e criado no bairro pobre de La Teja, em Montevidéu, ex-dirigente do Partido Socialista (PS).
Tabaré foi eleito com o lema “O governo da mudança”.
No dia 31 de outubro, a previsão do tempo errou e não prognosticou o dia ensolarado que fez jus à bandeira do Uruguai. No seu discurso de posse, Tabaré Vazquez dedicou a vitória a todos os que se sacrificaram para possibilitar o triunfo em nome de Liber Seregni, e disse: “Festejem, uruguaios, festejem, a vitória é de vocês”. A massa seguiu a orientação à risca.
O carnaval frenteamplista iniciou-se ao anoitecer e atravessou a madrugada. Animado por atabaques, o povo festejou entupindo as ruas e avenidas de Montevidéu, cidade portuária separada de Buenos Aires pelo gigantesco Rio da Prata. O escritor Eduardo Galeano considerou a explosão popular um “orgasmo nacional”.
A maioria dos jovens pintava o rosto com as cores da bandeira da Frente Ampla. Havia bandeiras tricolores em casas, apartamentos, carros, motos e bicicletas. Por todo lado. Montevidéu foi tingida de vermelho, azul e branco.
Uruguai nasceu progressista
A República Oriental do Uruguai teve um nascedouro avançado e progressista, que foi sendo alterado pela dominação secular das oligarquias político-econômicas do Partido Colorado e do Partido Nacional. A República foi fundada no século 19 na culminância de uma luta liderada por José Artigas. O Uruguai nasceu como um Estado laico que, ao longo dos anos, conquistou um elevado nível educacional e cultural, uma desenvolvida cultura política que orgulha seu povo desde o início do século 20.
O projeto de Constituição artiguista era avançado para a época, pois continha a possibilidade de revogação de mandatos e o direito à sublevação popular para derrubar o governo se o governante descumprisse a Constituição. Na reforma agrária conduzida por Artigas, prócer uruguaio, havia prioridade na distribuição de terras para mestiços, negros, indígenas, pobres e viúvas.
Depois de 174 anos de República, marcados pelo bipartidardismo com um revezamento de governos do Partido Colorado e do Partido Nacional (os brancos), o povo uruguaio elege um governo da Frente Ampla, como é conhecido o partido Encontro Progressista-Frente Ampla-Nova Maioria. Também é a primeira vez na história do país que um governo terá a simpatia dos sindicatos de trabalhadores e dos movimentos populares.
A esquerda historicamente unida
A Frente Ampla (FA) não é a primeira experiência unitária da esquerda uruguaia. Os comunistas e a esquerda lançaram em 1962 a FI de L (pronuncia-se Fidel), sigla em espanhol que significa Frente de Esquerda de Libertação, predecessora da FA. Com a Fidel “começamos a transitar os caminhos da unidade política”, diz Marina Arismendi, secretária-geral do Partido Comunista do Uruguai, em entrevista ao semanário Carta Popular, em 22 de outubro.
O primeiro presidente da FA, general Líber Seregni – o General do Povo –, líder frenteamplista desde a sua fundação em 5 de fevereiro de 1971, faleceu poucos meses antes da vitória eleitoral. É inevitável o paralelo com o líder comunista João Amazonas que também faleceu pouco tempo antes da vitória da coligação Lula presidente.
A FA é formada pela união de muitos partidos, organizações e movimentos políticos. Quase todas as forças progressistas e de esquerda dela fazem parte. Os frenteamplistas têm uma rica experiência em termos des valorização da unidade política das forças progressistas, de método e estilo de trabalho unitário. Segundo um dirigente da FA, as reuniões para “amassar o barro”, nas quais passam horas e horas, são fundamentais para construir pacientemente consensos e conscientemente valorizar o que une.
Há grande respeito entre as forças da Frente e não são permitidos hegemonismos. Os frenteamplistas só se dividem em público quando o assunto é futebol, entre os maiores clubes, o Peñarol e o Nacional. A política é tão popular quanto o futebol, que são as duas paixões de nosso povo irmão.
Outra característica da FA é uma forte militância de base. O construtor maior da Frente, Seregni, escreveu a um militante certa vez: “O Comitê de Base é o simples e milagroso caminho que une o privado e o público, o cotidiano e o histórico”.
Bem avaliadas pelo povo, as experiências de administração de departamentos (o equivalente a municípios, já que no Uruguai a República não é federativa, não há estados) foram importantes para o crescimento da FA. Tabaré Vazques foi intendente (prefeito) de Montevidéu, um dos 19 departamentos, e implementou em sua gestão uma espécie de vereador de bairro. Cada uma das 18 zonas da capital elege seus próprios “vereadores”. Essa democratização impulsionou em muito a participação política do povo nas decisões.
Dos oito partidos uruguaios somente três elegeram senadores: a Frente Ampla, os brancos e os colorados. Os deputados eleitos também pertencem aos três maiores partidos e um é do Partido Independente (PI). Os demais não têm representação parlamentar. O mandato de senador e deputado é caracterizado como mandato do partido e seus suplentes de lista também participam dele – é um mandato coletivo.
As forças políticas da Frente Ampla
O sistema eleitoral uruguaio é marcado pela história de bipartidarismo. Em cada partido há sublegendas que funcionam como coligações internas entre listas de candidatos, que serviram no passado para manter unidos os partidos tradicionais dominantes. Mas, o que serve para unir a direita também serve, neste caso, para unir as forças progressistas.
Por exemplo, na Frente Ampla nestas eleições houve 10 sublegendas com a participação de 20 listas.
O voto é vinculado e o eleitor só pode votar em um partido, escolhendo uma das listas que participam daquele partido. Nos partidos colorado e branco também concorreram várias listas, agrupadas em algumas sublegendas.
O Movimento de Participação Política (MPP) é hoje a maior força política da Frente Ampla em termos eleitorais. É liderado por ex-dirigentes do movimento guerrilheiro tupamaro, como José “Pepe” Mujica, senador carismático com muita presença na mídia.
Mujica fez uma sábia declaração em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, publicada na edição de 24 de outubro: “A esquerda, quando chega no poder, corre o risco de sofrer dois desvios. Um é a vontade de ser tão, mas tão pragmática, que acaba ficando na ‘calçada’ da direita e abandona sua identidade. O outro é que, por querer aferrar-se a um conjunto de bandeiras, pode isolar-se socialmente. Ou seja, pode ficar entre a infantilidade e a queda para a conservadorismo. Não há receita para evitar isso. É preciso ter a bússola mais ou menos centrada. Essa é a arte da política.”
O Partido Comunista do Uruguai (PCU) já foi maioria duas vezes na FA, por ocasião da criação desta e, depois, em 1989. É a principal força militante nas instâncias da FA, inclusive nos Comitês de Base. Sua secretária-geral, Marina Arismendi, que liderou a Lista 1001, denunciou a campanha anticomunista. “Hoje, em 2004, no século 21”, disse ela, “os comunistas seguem sendo tão uruguaios, frenteamplistas e comunistas, como sempre. Os que ficaram sem discurso, e apesar de tudo, tratam de tirar do velho baú fantasmas anticomunistas tentando de maneira vã encobrir suas despudoradas atitudes antipopulares, antinacionais e antidemocráticas, não podem convencer a nosso povo com argumentos insustentáveis”. “Somos parte do povo uruguaio”, disse ela, “(…) e pela Pátria deram a vida nossos companheiros. Por ela dedicamos nossa vida hoje, até a vitória da FA, que é a vitória do povo” (Carta Popular, 22/10/2004).
Outras listas importantes da FA são a Assembléia Uruguai, do futuro ministro da Economia, Danilo Astori, a do Partido Socialista e a da Vertente Artiguista.
A luta para superar o modelo neoliberal
A “bronca”, como dizem os “orientais”, com os anos neoliberais era muito grande, especialmente com o último período do governo do colorado Jorge Batlle. Nos últimos anos o Uruguai passou por uma tremenda crise recessiva e até mesmo por uma crise bancária em 2002, colocando largos setores do empresariado objetivamente no campo da oposição às políticas neoliberais.
Hoje há 1 milhão de pobres, 31% da população. A renda dos trabalhadores caiu 31% nos últimos 5 anos, mas a renda dos 20% mais pobres caiu 37% no mesmo período. O desemprego entre os jovens atinge quase 40% destes.
O fracasso do governo Battle e sua política neoliberal alimentaram o enorme sentimento de mudança que tomou conta do país e que foi capitalizado pela FA. O programa da FA propõe um outro modelo de desenvolvimento econômico e social no qual o Estado jogue um papel mais ativo e se realize uma aposta mais firme no setor produtivo.
Duas idéias-chave, sob o signo maior da mudança, estão presentes no discurso e foram a chave para a vitória da Frente Ampla: a valorização da unidade popular e a definição de um projeto nacional para o Uruguai, de caráter antineoliberal e integracionista.
O Uruguai tem tradição na realização de plebiscitos para defender o Estado Nacional, o regime democrático, o caráter público dos bens e serviços e a garantia dos direitos sociais.
Entre as mais importantes consultas estão: o plebiscito sobre as privatizações – que foram barradas por conta disso na década passada – e agora a consulta sobre a água e o saneamento.
No dia 31 de outubro o povo não votou somente para presidente, senador e deputado. Votou também pelo sim ou pelo não em um plebiscito de iniciativa popular sobre a água e o saneamento, que incluiu na Constituição – com mais de 60% de apoio à água e ao saneamento como direitos humanos (portanto, não passíveis de privatização) e de responsabilidade do Estado – o caráter público dos recursos hídricos nacionais e a gestão ambientalmente sustentável destes.
O programa integracionista da Frente Ampla
O programa do Encontro Progressista-Frente Ampla-Nova Maioria levanta cinco bandeiras: Uruguai Social, Uruguai Produtivo e Inovador, Uruguai Democrático, Uruguai Integrado e Uruguai Cultural. Ele pode ser acessado na íntegra no endereço eletrônico www.epfaprensa.org.
A proposta programática de política externa do Uruguai Integrado é bastante avançada e muito similar à política desenvolvida pelo Itamaraty no governo Lula. Propõe uma “política externa independente, de Estado e baseada em valores e princípios como: paz, soberania, não intervenção, multilateralismo, respeito ao direito internacional”.
Dá grande ênfase ao Mercosul, propondo “uma política de forte apoio e compromisso com o Mercosul como sistema de integração e plataforma de inserção da região no mundo”, e a “ampliação do mesmo e sua interação com outros processos de integração em marcha na América Latina”.
O Uruguai otimizará as suas relações com todas as nações latino-americanas, incluindo Cuba, que era hostilizada pelo governo Batlle, subserviente aos ditames imperialistas.
Ricardo Abreu é economista e membro do secretariado do Comitê Central do PCdoB.
EDIÇÃO 76, DEZ/JAN, 2004-2005, PÁGINAS 48, 49, 50, 51