Anteprojeto de Reforma da Educação Superior: um novo rumo político
O Anteprojeto proposto pelo MEC -ainda em discussão -, já encontra fortes reações das forças conservadoras que, em nome da liberalização absoluta e da mercantilização da educação, ameaçam – com argumentos de inconstitucionalidade e de ingerência absurda do Estado nas instituições educacionais -, usar todo seu poderio histórico, fortalecido pela política educacional nas últimas décadas, e impedir que o projeto de reforma caminhe no rumo das mudanças e da democratização da Educação superior brasileira. O que se encontra em confronto são posições antagônicas.
De um lado, o projeto político implementado nas últimas décadas, que efetivou uma ampla reforma neoliberal na Educação superior brasileira. Promoveu uma vasta expansão da educação privada; criou mecanismos legais de fortalecimento da mercantilização da educação; retirou o Estado de suas obrigações constitucionais; deu ampla autonomia às mantenedoras em detrimento das instituições educacionais; rebaixou a graduação; não exigiu responsabilidade social das instituições de educação superior que se afastaram da sua função social – orientando sua expansão e as profundas mudanças estruturais para cumprir a agenda do projeto econômico e social neoliberal de submissão ao capital financeiro internacional, negando a educação como bem público e instrumento de democratização e como estratégica para a construção de um projeto de desenvolvimento nacional.
De outro, encontra-se o projeto político defendido pelas amplas forças de resistência que, nas últimas décadas, desenvolveram propostas e uma extensa agenda política formuladas nos CONEDS (Congressos Nacionais de Educação), sintetizados na luta pelo fortalecimento e expansão da educação superior pública, pela democratização do acesso e permanência, pela democratização da educação superior brasileira e pela regulamentação da educação superior privada baseada em parâmetros de resgate da responsabilidade social e da educação como bem público.
O Anteprojeto ainda em debate já recebe raivosas ameaças. Desde sua divulgação já instigou dois editoriais do jornal 0 Estado de S. Paulo – "Reforma Delirante", de 16/01 e "O Ranço Ideológico", de 17/01 -, vários artigos e uma capa da revista Veja com respectiva reportagem, nos quais, sem exceção, se condenam os rumos da reforma contidos no Anteprojeto.
Em "Reforma assusta particulares", artigo d'O Estado de São Paulo, as considerações feitas pelo presidente da Associação Brasileira das Mantenedoras do Ensino Superior e Coordenador do Fórum Nacional da Livre Iniciativa na educação, Senhor Gabriel Mario Rodrigues, deixam clara não somente a mobilização do setor contra o Anteprojeto, mas também os principais argumentos que vão sendo construídos.
Um dos argumentos mais enfatizados é de que o Anteprojeto apresentado tem caráter ideológico – como se a contraposição a ele não fosse também ideológica.
Esses projetos em confronto, historicamente, representam interesses sociais e bases sociais e políticas e, nesse sentido, representam também concepções ideológicas. De fato, o Anteprojeto assusta os setores privatistas, principalmente aqueles que vêem a educação como mero meio de obtenção de lucros; exigem a liberalização total do setor como qualquer setor comercial; e consideram todas as exigências de qualidade e de democratização interna como ingerência absurda do Estado.
O problema é que o setor educacional não pode ser considerado meramente como mercantil e comercial. A própria Constituição Brasileira impede tal interpretação, restringindo a liberdade da iniciativa privada à regulamentação da educação nacional e à observância de sua responsabilidade social.
A informação, colocada em artigo publicado na Folha de S.Paulo de l°/02 último – "Reforma que não reforma" – assinado por Arnaldo Niskier, de que a Confederação Nacional do Comércio já se mobiliza através de um grupo de trabalho, para justificar a premissa de inconstitucionalidade, é reveladora -, principalmente pelo argumento a que se apega – de que a reforma descrimina a livre iniciativa, uma vez que "cumprir as normas gerais da educação nacional não elimina o que tem sido na prática uma cláusula pétrea", ou seja, para a Confederação Nacional do Comércio, a educação é livre à iniciativa privada e o fato de existir no texto constitucional o adendo "desde que cumprindo as normas gerais da educação nacional" não restringe a liberdade da iniciativa privada. Dito de outra forma: as normas da educação nacional, a que deveria estar submetida a livre iniciativa, não podem impedir a principal regra que é meramente mercadológica – se isso ocorre é considerado inconstitucional.
Segundo essa lógica, o governo não deverá estabelecer normas para a educação nacional que impeçam a lógica meramente de mercado para a iniciativa privada e, portanto, a responsabilidade social desse setor deve ser considerada na medida de seu caráter mercantil, portanto, já regulamentada pelo código do consumidor e pelas regras do Comércio.
Conforme outro argumento que tem sido usado, o Anteprojeto contém uma ingerência absurda do Estado na educação. Aqui, novamente encontramos uma concepção ideológica sobre o papel do Estado, expressa na concepção do chamado Estado mínimo, que deve se desincumbir da garantia universal dos direitos sociais e da sua regulamentação e como orientador de um projeto de desenvolvimento regido pelos interesses nacionais, devendo ser máximo para garantir os interesses do capital, principalmente o internacional e dirigir suas ações dentro da lógica do mercado.
Os mesmos setores que defendem o Estado Mínimo souberam torná-lo máximo para seus interesses.
Promoveram uma liberalização total da iniciativa privada na educação superior brasileira, souberam dirigi-lo no sentido do sucateamento da educação superior pública e utilizaram grandes e vantajosos financiamentos do BNDS para a expansão do seu capital. E, recentemente, em que pese novamente as vantagens desse setor no programa PROUNI, promoveram um lobby, buscando ainda mais vantagens na isenção de impostos e na diminuição da contrapartida.
E esses mesmos setores consideram ingerência absurda do Estado a exigência de qualidade, de democracia interna, de autonomia das mantidas, ao invés de autonomia das mantenedoras, de acompanhamento da sociedade de suas atividades etc.
No Anteprojeto aparecem, de forma destacada, as particularidades e exigências para o setor público e privado; no entanto, para os empresários da educação o Estado não tem direito de regulamentar a educação privada – interessa-lhes regras gerais, difusas, propícias às suas interpretações, como existem hoje. Com esse intuito, através de suas inúmeras entidades, em todos os encontros promovidos pelo MEC – que, segundo declaração de seus representantes, também amplamente divulgados -, se concordou sobre a importância da educação superior brasileira na construção de um projeto de desenvolvimento nacional democrático. Inclusive, em muitos discursos foram enfatizados a responsabilidade social e o papel social da educação e seu caráter de bem público.
É claro que todas essas declarações de princípio estão agora em xeque quando se busca a sua efetiva aplicação.
Uma análise mais detalhada do Anteprojeto exigiria necessariamente descrever em seus 100 artigos tanto as propostas para a educação superior pública quanto as para a particular; no entanto, aqui destacaremos os aspectos que mais diretamente desenvolvem os pilares para uma regulamentação da educação superior privada.
O que propõe o Anteprojeto, que tem assustado os setores privatistas e conservadores?
O Anteprojeto apresentado para o debate revela avanços significativos, alguns dos quais passamos a destacar.
1-Estabelece normas gerais para a educação superior e regula o sistema federal; nesse sentido, estão subordinadas à lei tanto as instituições públicas (federais, municipais e estaduais) como também as instituições privadas de todos os tipos, além das entidades de fomento e as fundações de apoio.
2-A lei tem como princípios básicos: o papel social da educação superior, a educação superior como direito e de interesse público, sendo, nesse sentido, obrigação do Estado prover e regulamentar; destaca, ainda, o papel da educação superior dentro de um projeto de desenvolvimento nacional.
3-Estabelece objetivos claros, e importantes, frente à responsabilidade social das instituições de educação superior. Controle externo (participação da sociedade civil – conselho comunitário) e Estado e controle interno da comunidade acadêmica.
4-Estabelece, na forma da lei, objetivos para a expansão da educação superior pública e obriga a aplicação de ações afirmativas na promoção de igualdade de condições.
5-Compromisso com a liberdade acadêmica, gestão democrática das atividades acadêmicas, ao mesmo tempo em que estabelece a responsabilidade das instituições com o atendimento de políticas públicas de direitos e com os outros níveis de ensino.
6-Obrigatoriedade de concursos públicos para a contratação de docentes, técnicos e administrativos, tanto para as instituições públicas como privadas (art. 28 inciso 1, alínea V).
7-Garantia do contraditório e ampla defesa para professores alunos e funcionários, garantia da liberdade de organização e associação, inclusive assegurando-lhes condições físicas de funcionamento, garantia da livre expressão para estudantes, professores, técnicos e administrativos.
8-Estabelece critérios para a constituição dos órgãos colegiados deliberativos, exigindo proporcionalidade menor para os representantes das mantenedoras. Exige eleições diretas para pelo menos um pró-reitor nas instituições privadas.
As eleições diretas devem ser secretas e unitárias com a participação proporcional de alunos, professores, técnicos e administrativos. Estabelece a garantia da livre expressão de professores, estudantes e técnicos administrativos e de suas entidades representativas, assegurando o livre acesso de dirigentes sindicais de entidades regionais e nacionais.
9-No corpo da lei relaciona-se a liberdade de ensino à iniciativa privada na razão e nos limites da função social da educação superior.
10-Restabelece o caráter de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão para as universidades e entre ensino e extensão para os Centros Universitários. Estabelece três tipos de instituições de educação superior: Universidades, Centros Universitários e Faculdades. Acaba com os Institutos superiores e faculdades integradas. Retira ao mesmo tempo a possibilidade de universidades por área de saber. Substitui na lei, área de saber, por campo de saber, exigindo que as Universidades ofereçam cursos em pelo menos três campos de saber, possuam pelo menos três cursos de mestrado e um de doutorado, além de programas de extensão em todos os campos de saber.
Nas universidades serão obrigatórias a gestão democrática e colegiada e a valorização profissional dos docentes e servidores, técnicos e administrativos da instituição. Na lei distingue-se autonomia administrativa e de gestão financeira e patrimonial de autonomia didático-científica subordinando a primeira à segunda. Segundo ela, o estatuto da universidade deverá garantir liberdade de pensamento, livre produção e transmissão de conhecimento e assegurar, entre outras coisas: a) organização da comunidade acadêmica em colegiados e órgão de direção com capacidade decisória, com a participação de estudantes, professores, técnicos e administrativos e sociedade civil; b) organização do conselho comunitário; c) planos de carreira do corpo docente, técnico e administrativo.
11-Restabelece a importância dos cursos de graduação, fazendo uma distinção na lei desse tipo de curso, com os de caráter seqüencial, conferindo direito de diploma apenas aos cursos de graduação, que deverão ter no mínimo três anos e, em alguns casos, no mínimo quatro.
12-Coloca a obrigatoriedade da avaliação interna e externa, com a composição dos representantes da comunidade acadêmica na comissão de avaliação, escolhidos democraticamente, e vincula o credenciamento ao controle externo e interno.
13-Cria a comissão de acompanhamento externo (conselho comunitário), da qual devem participar representantes dos trabalhadores. O Conselho comunitário será constituído pelo reitor, que o presidirá; o vice-reitor, que o substituirá; por representantes do poder público de qualquer nível de governo; e sempre com participação majoritária de representantes de entidades de fomento científico e tecnológico, entidades corporativas, associações de classe, sindicatos e da sociedade civil.
14-Exige que cada instituição elabore um PDI (Plano de desenvolvimento institucional), que deverá ser necessariamente aprovado pelo colegiado superior de gestão da instituição e que será avaliado e acompanhado pelo MEC, levando em consideração a qualidade de ensino pesquisa e extensão, a gestão democrática, a valorização profissional dos trabalhadores e as necessidades de desenvolvimento nacional e regional.
15-Estabelece critérios diferenciados de autonomia para mantidas e mantenedoras, colocando na lei distinções entre as duas e obrigações e restrições das mantenedoras com relação à vida acadêmica e a organização democrática.
Estabelece normas e regulamenta as entidades mantenedoras, exigindo entre outras coisas que: as entidades mantenedoras de instituições de educação deverão contar em seus conselhos com pelo menos 30% de doutores ou profissionais de comprovada experiência educacional, controle patrimonial e do capital total e volante a brasileiros natos ou naturalizados a pelo menos 10 anos; a transferência de cursos e instituições de educação superior entre mantenedoras deva ser previamente aprovada pelo MEC; e não exista a remuneração ou concessão de vantagens ou benefícios, por qualquer forma ou título, a seus instituidores, dirigentes, sócios, conselheiros, ou equivalentes (art. 67 inciso 1, alínea b).
Estabelece, ainda, que no decorrer do período de autorização prévia para ofertas de cursos superiores, as instituições de educação superior, bem como suas mantenedoras, serão submetidas aos processos de supervisão, verificação e regulação (art.79 – inciso 1) e, uma vez credenciadas as instituições e suas mantenedoras, serão periodicamente recredenciadas, mediante processo permanente de avaliação de qualidade na forma da lei (SINAES) (art.83).
16-Coloca exigência de plano de carreira, compromisso com a qualificação profissional e percentual de contrato de tempo e titulação para as Universidades e Centros universitários.
17-Cria um Sistema Nacional de Educação Superior, designado Sistema Federal, que será constituído por: seu órgão normativo (Conselho Nacional de Educação) como órgão executivo (Ministério da Educação); e o Fórum Nacional da Educação Superior (órgão consultivo da Câmara de Educação Superior do CNE), como instância de articulação com a sociedade, que deverá ser convocado periodicamente e ouvido obrigatoriamente na elaboração do PNE.
18-Define, com clareza, as Instituições privadas de educação superior dos tipos comunitária e confessional, dando características diferenciadas entre os dois tipos. As comunitárias pelo seu caráter devem ser objeto de políticas especiais de qualificação promovidas pelo Ministério da Educação (Seção II, art. 69, 70, 71).
19-Estabelece para todas as instituições de educação superior privadas a exigência de constituição de um conselho superior composto de forma colegiada, responsável pela elaboração das normas e diretrizes acadêmico administrativa. Regula que na composição desse colegiado deve existir: representação docente, discente e dos técnicos administrativos e da comunidade; com exceção dos representantes da comunidade, todos devem ter vínculo comprovado com a instituição, e os que têm somente vínculo administrativo não devem ultrapassar o nível de representatividade de 10% (art. 72, parágrafo único – alíneas I, II, III, IV e V).
20-Estabelece norma restringindo a passagem de um tipo de instituição para outro, ou seja, somente poderão reivindicar a passagem para a categoria de Universidade as instituições que forem Centros universitários há pelo menos 5 anos e que estiverem com todos os requisitos cumpridos.
Em que pesem as várias observações, é fundamental a defesa decidida dos avanços já contidos
Estes são, resumidamente, os aspectos que mais "assuntam" nos 100 artigos da proposta de Anteprojeto os setores privatistas e conservadores. Basicamente os que democratizam as instituições colocando-as em consonância com a formação de profissionais e pesquisadores para uma sociedade democrática; os que exigem das mantenedoras de instituições educacionais diferenciações próprias chamando-as à responsabilidade de quem pretende exercer atividade educacional; os que redefinem as diferenciações entre os diferentes tipos de instituições exigindo relevância social, qualidade e compromisso diferenciado das que, por serem universidades, a Constituição Brasileira concede autonomia; os que impedem o rebaixamento da graduação ocorrido nas últimas décadas através dos cursos de curta duração e de rebaixamento da formação dos docentes para ensino fundamental – como os cursos seqüenciais e os promovidos pelos chamados Institutos Superiores de Formação de Professores -, tão lucrativos para a iniciativa privada e tão nocivos para formação de profissionais e a qualidade da educação fundamental.
O Anteprojeto está em debate e estão sendo chamados a mandar suas observações não só os setores ligados à educação como também os movimentos populares do campo e da cidade, as organizações sindicais nacionais, de profissionais, científicas e acadêmicas, que já participaram da etapa anterior e que agora, diante da proposta de Anteprojeto, devem enviar ao MEC suas discordâncias e observações.
No entanto, em que pesem as várias observações e discordâncias que serão enviadas ao Ministério
pelo movimento educacional e social organizado, é fundamental a defesa decidida dos avanços já contidos no Anteprojeto. Nesse embate, dois campos de luta vão se demarcando. Num deles, estão as entidades e organizações que historicamente se definem pela resistência e luta contra a privatização e mercantilização e sempre resistiram à implementação do projeto neoliberal na educação e que lutam por uma mudança de orientação política na educação no geral e na educação superior, em particular.
No outro, os setores que pretendem manter a orientação da política educacional das últimas décadas – a eles extremamente favorável -, os representantes da liberdade absoluta de aferir lucro e do rebaixamento do papel estratégico do ensino superior brasileiro. Neste campo, encontram-se os setores antidemocráticos e conservadores que não se dividirão na contraposição aos avanços.
Madalena G. Peixoto é diretora-geral do Centro de Educação da PUC-SP e coordenadora-geral da CONTEE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Educação).
EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 75, 76, 77, 78, 79