Diferente do que era, aquém do possível, melhor do que parece
O balanço da metade do governo Lula tem se realizado nos marcos das várias disputas políticas que hoje atravessam a sociedade brasileira. E seria ingênuo acreditarmos no contrário. Mas exatamente por esse motivo não deixa de ser um sinal muito expressivo o fato de que este balanço público tem sido, em larga medida, sobredeterminado por uma áspera polêmica que envolve diretamente o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o próprio Lula.
E não deixa de ser paradoxal que os juízos de FHC se aproximem de um diagnóstico sobre o governo Lula – sistematicamente tecido por uma crítica sectária, com argumentos compostos à esquerda. O paradoxo tem uma explicação: no sentido de se apropriar de resultados do governo Lula, obtidos em 2004, FHC quer desvalorizar os elementos de descontinuidade entre este e os seus governos; com a finalidade de justificar a necessidade da criação de um outro partido, a crítica sectária tem olhos apenas para aqueles elementos que marcariam uma continuidade entre o governo Lula e os do período neoliberal.
Se, no entanto, trabalha-se com o conceito de transição o desafio é exatamente discernir o que há de continuidade e o que há de descontinuidade entre as duas experiências. O balanço da metade do governo Lula presta-se exatamente a esse difícil trabalho de ponderar, estabelecer o peso e a dinâmica dessas duas dimensões.
Em sua coluna de final de ano, Voto de confiança, FHC afirma: "O governo atual colhe hoje na economia
o que outros plantaram no passado e ele soube continuar e aperfeiçoar.
Se assim é, por que não esperar que as áreas sociais melhorem e a gestão governamental como um todo se torne mais competente? Por que não esperar que o governo finalmente se convença de que andou para trás nas políticas de transferência de renda para os mais pobres, de que a pobreza e a fome não são a mesma coisa, de que o grande problema do Brasil é a primeira, pois a segunda é decorrência, o que não significa que não se deva e não se possa combater a fome onde e na dimensão em que ela existe, o que já vinha sendo feito e poderia ser reforçado? Por que não esperar que o governo finalmente se convença de que, na área de saúde e de educação, perdeu-se foco, rumo e velocidade?".
O acento na descontinuidade foi, no entanto, a tônica do discurso de Lula de 10 de dezembro perante os ministros de seu governo; no início do qual, ele afirma: "Não demos continuidade às políticas do governo anterior, fizemos o que deixou de ser feito, reconstruímos a economia, fortalecemos as instituições e, sobretudo, conquistamos credibilidade no país e no exterior. Tão importante quanto a transformação objetiva foi a mudança em um sentimento de prostração, quando não de desesperança, que se apossara do nosso povo. Tudo começa a mudar. Estamos recuperando nossa auto-estima, voltamos a ter orgulho de ser brasileiro, começamos a enxergar que há novo caminho a ser trilhado (…)."
E, ao longo desse discurso, volta a enfatizar: que "Nestes 24 meses pudemos viver a situação de nosso país, principalmente o desaparelhamento do Estado. Herdamos uma máquina administrativa ineficiente, desprovida, em boa parte, do sentido republicano, sem vocação para realizar políticas em proveito da maioria". E, ao final, retorna ao tema: "Que ninguém se iluda sobre as prioridades deste governo. Elas vão na direção de uma grande transformação econômica e social do país. Que ninguém se iluda sobre a minha fidelidade a minhas origens. As dificuldades que enfrentei e os êxitos que alcancei me deram a convicção de que o melhor que possuímos é o nosso povo. Que não se confunda paciência e cordialidade com passividade. Que se entenda que somos um povo composto de homens e mulheres fortes que apenas necessitam de uma circunstância histórica que nos permita mostrar todo nosso potencial. Este momento chegou".
Essa polêmica sobre a continuidade/descontinuidade entre os governos Lula e FHC não deveria ser vista como artificial, mas como propriamente emblemática de um período de transição. Na pesquisa CNI/Ibope, divulgada em 8 de dezembro de 2004, para 49% dos entrevistados, o governo Lula é melhor; para 31%, é igual; e para 17% pior que o governo FHC.
Descontinuidades fundamentais
O governo Lula no início de seu terceiro ano revela com crescente nitidez a diferença de fundamentos programáticos, de base social e política, de valores com os governos FHC em cinco dimensões básicas.
A primeira delas diz respeito à própria origem e base político-social do governo Lula. Surgido de um confronto político com o neoliberalismo brasileiro, capitaneado pelo PSDB/PFL, ele continua ainda marcado por essa dinâmica política fundamental de disputa, como se revelou nas eleições municipais de 2004. Sua base política-social policlassista ainda tem o seu centro nas classes trabalhadoras e populares, do campo e da cidade. São incorporados representantes orgânicos dos setores financeiro, industrial, do grande agro-negócio em posições-chave, ou importantes, de governo. E sua base social não está claramente centrada nesses setores, como era o governo FHC – que se compôs desde sempre como uma ampla frente das classes dominantes, excluindo praticamente qualquer relação orgânica com os setores populares. A Força Sindical, que em um determinado momento se propôs a ser quase um braço "trabalhista" do PSDB, foi sempre a caricatura de uma relação importante deste governo com as classes trabalhadoras.
A segunda dimensão, estreitamente ligada à primeira, está na relação do governo Lula com os movimentos sociais organizados. O governo FHC iniciou-se com um confronto, que mobilizou tanques do Exército, contra os petroleiros. Sua política central fixou-se na flexibilização dos direitos e na desregulamentação. Congelou salários e fechou as portas de negociação com o funcionalismo público federal. Se no primeiro mandato procurou estabelecer um flanco de negociação com o MST e os movimentos de luta pela reforma agrária, no segundo trabalhou determinadamente uma agenda de criminalização dos movimentos sociais e de criação do Banco da Terra.
É de outra qualidade a relação do governo Lula com os movimentos sociais. Em boa medida, suas equipes de governo, de várias áreas fundamentais, trazem para o Estado brasileiro a memória, a sensibilidade e o compromisso de toda uma geração de lutadores sociais. A sua agenda tem sido – mesmo em momentos de conflito como a reforma da Previdência –, pautada pelo esforço de legitimação, diálogo e negociação com os movimentos sociais. Não se trata apenas do fato de pela primeira vez na história do país um governo federal não reprimir trabalhadores e pobres: em uma medida importante a própria ação de governo passou a ser construída em um diálogo, ou respondendo parcialmente a expectativas dos movimentos sociais brasileiros. A descriminalização do MST e o diálogo permanente com suas lideranças, a criação de fóruns institucionais de diálogo com o mundo do trabalho, o estabelecimento de mesas permanentes de negociação com o funcionalismo público federal, agendas de diálogo com os movimentos ecológicos e indígenas, diálogo construtivo com o movimento estudantil e com a comunidade universitária, apoio fundamental à realização do Fórum Social Mundial: este padrão é exatamente o contrário das políticas de Estado neoliberais, que, a partir do diagnóstico do "excesso de democracia" e da "inflação de demandas", são conduzidas pelos critérios da democracia delegativa, dos arranjos corporativos pelo alto, do afunilamento das agendas pró-mercado.
Mesmo onde a continuidade do governo Lula em relação ao segundo mandato do governo FHC é visível e incontestável – a gestão macroeconômica das políticas monetária, cambial e fiscal – a dinâmica econômica resultante não é a mesma. Isto nos leva à terceira dimensão decisiva de descontinuidade do governo Lula em relação ao governo FHC.
Trata-se de uma intuição interpretativa, aqui ampliada, que partiu do tino analítico de Maria da Conceição Tavares, em sua fala por ocasião de uma homenagem recente a Getúlio Vargas no BNDES. Para ela, o que diferencia o governo Lula dos governos FHC na economia é a ausência atual de convergência entre os princípios de regulação macro-econômica e a gestão de operadores estatais fortes na economia, como seria o caso do BNDES. Essa intuição pode e deve ser ampliada: reconhecendo-se o peso central do Banco Central na gestão macro-econômica, não seria correto analiticamente tratar como contrapontos fracos, tópicos ou residuais, um conjunto de dinâmicas desencadeadas pelo governo Lula nos dois últimos anos, em particular em 2004.
Os espaços econômicos abertos pela nova política externa (que repercutem diretamente na formação da pauta exportadora, como tratou O Globo do dia 26 de dezembro de 2004 na interessante matéria "Política externa agressiva teve um peso favorável na balança comercial"); as políticas de inclusão social, como o Fome Zero (enquanto o orçamento de 2003 para as áreas de segurança alimentar, assistência social e para o Bolsa Família foi de 8 bilhões de reais, em 2004 já chegou a 15 bilhões de reais); o BNDES (que liberou 35 bilhões de reais de empréstimos em 2003, 40 bilhões de reais em 2004 e liberará 60 bilhões de reais em 2005); a CEF (repasse de 6 bilhões de reais para o financiamento habitacional e de 2 bilhões de reais para o saneamento em 2004, recursos que serão multiplicados para 2005); o crédito à agricultura familiar (que triplicou desde 2003, passado a 7,6 bilhões de reais); e a expansão do crédito consignado (de 6,3 bilhões de reais em 2003 para cerca de 12 bilhões de reais em 2004) introduzem novas dinâmicas econômicas de expansão, inclusão social e distribuição de renda, que, em parte, certamente, explicam a dinâmica forte da economia e do emprego em 2004, mais além do boom exportador.
Segundo o economista Cláudio Dedecca, pesquisador e professor do Centro de Estudos Sindicais e do Trabalho (CESIT) da Unicamp, o reajuste de 15,4% do salário-mínimo previsto para 2005 vai injetar na economia nacional 82,4 bilhões de reais, a partir dos mais de dez milhões de trabalhadores que ganham até dois salários-mínimos e os 14,4 milhões de aposentados e pensionistas. Para 2005, o Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) aprovou um orçamento de 11,2 bilhões de reais para as áreas de habitação, saneamento e infra-estrutura, um aumento de 38,2% em relação ao ano que passou. São todos fatores contra-restantes ou de contratendência, no sentido do crescimento, à gestão ultraconservadora e ortodoxa do BC, que, em geral, não existiam ou existiam timidamente durante os governos FHC.
A quarta dinâmica diz respeito ao reposicionamento do Brasil frente aos Estados nacionais e ao mercado mundial. Mesmo entre aqueles que centravam a sua crítica ao governo FHC em sua dinâmica de inserção passiva na ordem internacional, em geral não se atribui às mudanças muito substantivas operadas pelo governo Lula nesta área tem um valor estruturante ou central. Seriam ou uma exceção ou apenas um fator de menor conta diante das dinâmicas de continuidade que existiriam entre o governo Lula e os governos FHC. Há aí certamente uma sub-apropriação analítica: no mundo de hoje, a relação entre os Estados ou entre os Estados nacionais e os mercados definem em uma medida importante os espaços possíveis de governo.
A quinta dinâmica a introduzir uma descontinuidade fundamental é o reforço do caráter público e tendencialmente universalista das políticas sociais do governo Lula em contraposição ao caráter focalista ou dual e privatista dos governos FHC. Esta contraposição está no centro das polêmicas conduzidas, em geral de um ponto de vista neoliberal, ao programa Fome Zero. Como FHC repete sempre, critica-se o caráter centralista ou estatal desse programa e a sua direcionalidade não focalizada em grupos restritos. A reforma universitária, proposta pela comissão formada pelo MEC, vai exatamente na direção inversa dos programas privatistas, projetando o crescimento das vagas do sistema público para 40% do total ao longo dos anos. Não se contrapõe mais, no MEC ou no Ministério da Saúde, uma política para os pobres (básica e pública) a uma política para os ricos (privada e mais sofisticada). A criação do Ministério das Cidades significou, de fato, a criação de uma política pública para uma área social (saneamento, financiamento para moradores de baixa e média renda) praticamente abandonada pelo Estado brasileiro nas últimas décadas.
Estas cinco dimensões, de conjunto, tornam o governo Lula de qualidade político-social diverso dos governos FHC, configurando uma dinâmica histórica de transição de paradigma de fundamentos do Estado neoliberal para um Estado republicano.
Limites das mudanças
Se há transição, precisamos reconhecer que até agora ela tem sido parcial, limitada, contraditória e desigual.
Parcial porque a gestão macroeconômica do país tem se apoiado em formatos institucionais (autonomia operacional do BC voltado unicamente ao controle da inflação, desregulamentação do fluxo de capitais e altos superávits primários), agendas, equipes de governo e defesa de valores que expressam claramente a continuidade do ideário neoliberal. Como se trata de uma das políticas estruturantes do Estado brasileiro, submetido a uma volumosa dívida pública, ela tem a capacidade de condicionar o conjunto das políticas de governo. Apesar de os juros fixados pelo BC, mesmo elevados, em particular no segundo ano do governo Lula, estarem abaixo da média dos anos FHC – como eles incidem sobre um montante da dívida pública acumulada e crescente –, o Estado brasileiro teve encargos da dívida de 145 bilhões de reais em 2003 e provavelmente de 130 bilhões de reais em 2004.
Destes, uma parte não desprezível volta ao Estado sob a forma de impostos. Como a taxa Selic influencia o movimento de todas as taxas de juros praticadas no mercado, ela acaba também por estimular a transferência de renda para o setor financeiro. Estes ganhos do setor financeiro e dos grandes aplicadores em títulos públicos funcionam, então, como um forte mecanismo de concentração de renda, em alguma medida amortecendo o impacto de políticas distributivistas.
Esse alto compromisso do Estado brasileiro com o pagamento da sua dívida financeira tem uma imediata contrapartida na realização de altos superávits primários e na compressão dos gastos orçamentários. Áreas como educação e saúde, programas como o de reforma agrária ou de saneamento, reajustes salariais do funcionalismo público, das tabelas de imposto de renda e do próprio salário-mínimo, vindos de uma década de severo arrocho, continuam com seus patamares de recomposição e crescimento estruturalmente contidos. São todas áreas muitos sensíveis aos movimentos sociais e ao cotidiano da população, das classes médias assalariadas aos setores mais pauperizados, que funcionam muito aquém das demandas represadas.
A transição é contraditória porque dentro do governo, com seus espaços de poder e pressão, agem forças que querem a manutenção e a reprodução, ou ampliação, das reformas neoliberais; e outras que trabalham no sentido da republicanização do Estado brasileiro. As agendas do governo passam claramente a ser fruto dessa disputa de lógicas contrastantes permanentemente arbitradas pelo presidente.
Por fim, ela é desigual porque, refletindo essas forças contrastantes, o grau, o ritmo e as perspectivas de superação do paradigma neoliberal não são simétricos, concomitantes ou paralelos nas diversas áreas de atuação do governo.
Seria importante verificarmos que o condicionamento e a limitação exercidos pelas resultantes das opções da gestão monetária, cambial e fiscal devem ser compreendidos dinamicamente segundo a evolução da conjuntura internacional e o ritmo de crescimento da economia. Uma crise financeira internacional certamente exigirá medidas fortes segundo a lógica da atual gestão macroeconômica (brusca elevação dos juros para frear a saída de capitais especulativos, por exemplo). Taxas de crescimento econômico mais elevadas, com seus efeitos no aumento da arrecadação do Estado e na diminuição da vulnerabilidade externa, permitem aumentar o espaço de acomodação das contradições permanentemente arbitradas pelo governo (elevações do gasto público, do salário-mínimo etc mais além da inflação).
Melhor do que parece
O diagnóstico de que há uma transição, mas parcial e limitada, deve ser completado por uma visão de que o governo é melhor do que parece.
Isto por três razões. Em primeiro lugar, porque tem contra si, relativizando os seus feitos, exacerbando os seus defeitos, uma mídia predominantemente editorializada a partir de um viés oposicionista liberal-conservador.
Em segundo, porque tendo dentro de si visões contrastantes, o próprio governo tem dificuldade de construir, através de um diálogo democrático com a sociedade brasileira, uma identidade e visão de sentido que lhe permita apropriar-se politicamente de forma mais plena de suas conquistas e mesmo de seus limites.
Em terceiro, porque agindo aquém do possível o governo cria uma tensão permanente, com uma ampla rede de movimentos sociais que, através de suas lideranças, intelectuais e militantes, tem cumprido historicamente um papel ativo na formação da opinião pública. De certo modo, essa ampla rede, nacional e enraizada, fica relativamente neutralizada como construtora ativa das bases sociais do governo potencialmente em expansão.
Qualitativamente diferente dos anos FHC, bem aquém do possível, muito melhor do que parece: esta aparenta ser uma caracterização que procura, de modo equilibrado e totalizante, caracterizar a novidade histórica do governo Lula em seu complexo dinamismo no terceiro ano de seu mandato.
Juarez Guimarães é professor de Ciências Políticas da UFMG. Esse texto foi publicado no boletim Periscópio, da Fundação Perseu Abramo.
EDIÇÃO 77, FEV/MAR, 2005, PÁGINAS 35, 36, 37, 38, 39